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REMÉDIO JURÍDICO PROPOSTO POR “HOMENS DE SCIENCIA”

Os usuários da maconha, tratados como aliciadores, foram apre- sentados em 1915 pelo médico José Rodrigues da Costa Dória, como “raça selvagem e ignorante […] [que] inoculou também o mal nos que a afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe su- garam a seiva reconstrutiva”. (DÓRIA, 1915, p. 16) Segundo esse autor, a prática de fumar maconha fora legada por africanos que rapidamente a difundiram entre indígenas e, em menor medida, passaram a viciar também os brancos. Para ustificar a hipótese de importação da frica, Dória (1915) se apoia nos sinônimos que encontrou (maconha, liamba, riamba e fumo d’Angola) e se refere a estudos botânicos realizados na- quele continente e na Ásia. Apesar de enumerar aplicações na medicina popular, o autor não menciona os remédios importados e contesta a existência de efeitos terapêuticos. Ressalta que, no Nordeste, a planta era fumada principalmente em grupos, por meio de diferentes tipos de maricas (cachimbos). Ainda segundo Dória ( ), sem nenhuma fi- nalidade industrial no Brasil, a planta teria seu consumo concentrado no norte do país (o que à época incluía também sua região de atuação: o Nordeste). Os que utilizavam a planta por meio do fumo ou de efusões estariam em busca de alucinações, excitação, sorte, bem-estar e felici-

dade que, em caso de abuso, poderiam se reverter em depressão das funções nervosas. Dentre os efeitos ordinários, Dória (1915) destacou o aumento de apetite.

Sabendo-se que o supracitado médico foi um político importante e professor da Faculdade de Medicina da Bahia, não surpreende que suas ideias tenham sido bem recebidas. O prestígio científico prova- velmente contribuiu para que ocupasse os cargos de conselheiro mu- nicipal de Salvador, deputado e governador de Sergipe (1908-1911). O artigo resultante de conferência proferida em Washington, em 1915, é conhecido como pioneiro na análise do consumo de maconha no Brasil e expressa a doxa científica segundo a qual características somáticas se- param os seres humanos em raças, impactam seus comportamentos e atestam uma hierarquia de qualidades. Entre os que propagavam esses pressupostos que chamarei de “racistas”, destacavam-se professores da prestigiosa Faculdade de Medicina da Bahia. (SCHWARCZ, 1993) Os ensinamentos ali recebidos foram importantes para médicos, como José Lucena, que se formou entre Salvador e Rio de Janeiro, nos anos 1920 e, como veremos adiante, dedicou especial atenção ao estudo sobre os efeitos da maconha para a saúde de quem a fuma.

Tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro, os futuros médicos eram formados sob princípios semelhantes de transposição e adap- tação criativa de preceitos darwinistas para a análise de problemas sociais. De acordo com Schwarcz (1993), essas faculdades de medicina (as primeiras instaladas no país) concentravam a produção de sujeitos que se afirmavam homens de sciencia” e contribuíam com os institu- tos históricos, os museus etnográficos e as faculdades de direito para a difusão da ciência na virada de século XIX-XX. Assim, sabemos que os primeiros estudiosos desse tema tinham o prestígio de uma carreira profissional respaldada pela ciência e pelo stado. Dória, em , representou o estado da Bahia, a Faculdade de Direito, o Instituto Histórico e eográfico e a Sociedade de Medicina egal e Criminolo- gia da ahia no Congresso Científico Pan-Americano, realizado em Washington. Na ocasião, ele apresentou o pioneiro texto ao qual tenho feito referência: Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício. (DÓRIA, 1915) O artigo apresenta a prática de fumar maconha como uma sorte de vingança da “raça preta” para com seus “irmãos brancos, mais avançados em civilização”. O hábito seria, ainda segundo Dória, um vício pernicioso e degenerativo.

Representando o Brasil na II Conferência Internacional sobre o Ópio, organizada pela Liga das Nações em 1924, em Genebra, dois mé-

dicos – segundo Lucena (1934) – teriam conseguido a proibição da ven- da de maconha. Sabe-se que de fato a substância foi incluída em 1925 pela primeira vez na classificação internacional de entorpecentes difun- dida pela iga das ações. A afirmação de que a maconha era pior do que o ópio”, proferida pelo dr. Pernambuco Filho, durante a conferência de , foi um dos pontos importantes para classificá-la como en- torpecente. (LUCENA; CARLINI, 2005) Ainda segundo Lucena (1934), o referido médico afirmou haver tratado mais de uma centena de viciados e a autoridade de um profissional tão experiente não foi questionada. O país era então apresentado internacionalmente como grande consumi- dor de maconha e o interesse inicial de produzir e beneficiar cânhamo para contribuir na consolidação de domínios coloniais e no desenvol- vimento econômico, já suplantado pelo risco de degenerar a raça bra- sileira, passava à condição de problema de saúde que alguns médicos afirmavam poder tratar.

Para conter o que afirmavam ser um vício perigoso , um remédio que os médicos encontraram foi de ordem jurídica. Propagando a ne- cessidade de criar e fazer cumprir leis repressivas, alguns desses pro- fissionais se aplicaram bastante na tarefa que aqui enfoco sob o prisma da legalização , por entender que isso significa produzir leis sobre prá- ticas precedentemente realizadas à revelia de enquadramento legal. O país conhece limitações legais ao uso da planta desde 1830, quando a Câmara Municipal do Rio de Janeiro proibiu sua venda e uso, punindo vendedores com multa de 20 mil réis e usuários com três dias de deten- ção. (DÓRIA, 1915; CARLINI, 2005; VIDAL, 2009) Contudo, ao longo do século XIX, a intelligentsia jurídica e a elite político-administrativa não demonstrou grande preocupação com o tema. Nessa primeira lei brasi- leira relativa à maconha (“postura municipal” do Rio de Janeiro, datada de 1830), a pena de prisão para o usuário contrasta com a multa ao ven- dedor, demonstrando a convivência do policiamento dos costumes com um certo liberalismo econômico. Apesar das interdições se repetirem em Santos (1870) e Campinas (1876), as detenções só se multiplicaram depois das três primeiras décadas do século seguinte (VIDAL, 2009), quando alguns desses “homens de sciencia” tinham bastante apoio nas Forças Armadas.

Desde então, as normas legais têm se multiplicado e a legalização das transações com drogas levou à criação de um novo órgão, à adap- tação de agências preexistentes e ao enga amento de profissionais que, enquanto representantes do Estado, assumiram a missão de tentar fazer cumprir o novo ordenamento legal. Operando pelo menos três anos antes

de ser regulamentada, a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpe- centes (C ) foi instalada em com a finalidade de fixar a coope- ração de todos os órgãos encarregados da fiscalização do comércio e uso de entorpecentes e da repressão do seu tráfico e uso ilícitos . (CAS RO, 2009, p. 375)

“MACONHISMO” OU “CANABISMO”, DOENÇA DE PSIQUIATRA

Ao longo da primeira metade do século XX, a denominação con- tinuava incerta, mas os médicos haviam sido reconhecidos como os principais estudiosos da planta em questão. A primazia desses atores era tanta que botânicos aclamados no Brasil e no exterior, como Pio Corrêa, não tiveram textos selecionados para a publicação organizada na década de 1950 pela CNFE. Farias (1958), que presidiu essa comis- são por aproximadamente 20 anos, entre as décadas de 1930 e 1950, indica cinco prioridades das quais destaco a que estimula os médicos a estudar a “maconha sob o ponto de vista social”. Esse corte corpora- tivista indica que os especialistas reconhecidos pela comissão eram os médicos apreciados como sendo os principais profissionais autorizados a produzir um saber de valor científico que ustificasse a fiscalização e a repressão.

a elaboração e difusão do discurso científico sobre o tema, o pernambucano José Lucena desempenhou importante papel. Produzin- do a partir do mesmo local que Gilberto Freyre, Lucena assumiu em 1932 o cargo de médico da Assistência aos Psicopatas de Pernambuco e tomou um rumo diferente de seu conterrâneo no que diz respeito ao que estou chamando de racismo científico . Deslocando seu raciocínio do esquema da “degenerescência” para o da “doença”, publicou seus primeiros textos em 1934 e 1935 nos Arquivos da Assistência aos Psico-

patas. Mesmo que seus métodos e finalidades se am distintos, os resul-

tados corroboram ideias de Dória (1915) e contestam o que se difundia na imprensa. Segundo Cavalcanti (1998), entre as duas Guerras Mun- diais, os jornais difundiram bastante a ideia de que o uso da maconha impulsionava o crime.

Considerando os primeiros textos de Lucena (1934, 1935), des- taca-se a menção à multiplicidade de denominações que levam-no a inferir que a planta teria sido introduzida na região por africanos. Apre- sentando o perfil dos usuários que observou, o autor afirma que a maco- nha era usada predominante por homens, menores de 25 anos, pobres,

analfabetos, mestiços e negros. Os dois textos apresentam seu método de investigação, baseado na observação direta e na própria experiência de consumo.

m estudos posteriores, ucena ( ) ratifica que fumar cigarro preparado à base dessa planta gera “desordens perceptivas” e está “as- sociado ao desenvolvimento de psicoses”. Anos depois (LUCENA 1948, 1950), relativiza suas primeiras conclusões e indica a necessidade de pesquisa suplementar. Lucena (1968) analisou ainda as relações entre “canabismo e reações delituosas” por meio do estudo de 269 casos de “maconhistas” privados de liberdade em Pernambuco, concluindo que fumar maconha não impele ao crime, mas “libertaria o indivíduo de suas inibições e as ações resultantes seriam tão variadas quanto as personalidades subjacentes”.

Os textos de José Lucena indicam que, ao longo do século XX, a associação entre maconha e doença mental estava se difundindo en- tre especialistas e a ideia de que maconheiro era pobre se consolidava para grande parte da população que acessava as hipóteses dos médicos ou da imprensa. Lucena é somente um dos muitos psiquiatras que se- guiram a hipótese de relação entre maconha e doença mental, porém seu destaque nessa corporação profissional esclarece a difusão dessas ideias. Em 1933, ele iniciou sua atividade de professor na Faculdade de Medicina do Recife sem se afastar dos serviços que prestava à Assistên- cia aos Psicopatas de Pernambuco, onde viria a exercer as funções de diretor do Manicômio Judiciário e diretor geral. Nos anos 1950, reali- zou pós-graduação nos Estados Unidos e na França (para onde voltaria como profissional convidado na década seguinte). Participou da criação da Associação Brasileira de Psiquiatria, a qual presidiu durante três anos da década de 1970 e onde consta como um dos “grandes nomes” no Museu da Psiquiatria Brasileira. Sendo internacionalmente reconhe- cido por sua produção relacionada às drogas, ele foi nos anos 1980 pe- rito da Organização Mundial de Saúde para o tema da dependência às drogas. Seu último texto sobre a questão (LUCENA, 1987), assinala que a psicodependência do consumo de drogas é um estado mórbido de cujo tratamento a psiquiatria deve se ocupar.