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Segundo Valença (2010, p. 290), a primeira manifestação pública pela descriminalização da maconha no Brasil ocorreu em 1976, na Fa- culdade de ilosofia, etras e Ciências Humanas da USP. Ademais:

Ainda no final dessa década , estudantes de Ciências So- ciais da UFRJ editaram o jornal de teor antiproibicionista, O Patuá. Também foi emblemático o Primeiro Manifesto Brasileiro pela Lega- lização da Cannabis que ocorreu na aculdade de ilosofia da PUC de São Paulo no começo da década de 80, assim como o Primeiro Simpósio Carioca de Estudos sobre a Maconha, o ‘Maconha em Debate , que teve curso no nstituto de ilosofia e Ciências Sociais da UFRJ. (VALENÇA, 2010, p. 291)

Alguns campi universitários foram palco para demandas de mu- dança de normas que representam a origem do que eu postulo como sendo mais um ciclo de atenção. O momento de diversificação de inte- resses foi marcado pela emergência de outros tipos de contestação e, permanecendo como contravenção às leis, o ato de fumar maconha per- deu muito da imagem revolucionária a que o professor Salinas Fortes fazia referência. (MACRAE; SIMÕES, 2000) É provável que, assim como indica Becker (1963) para o caso norte-americano, os policiais brasilei- ros tenham passado a considerar o uso dessa droga como um problema menor e menos importante do que muitos outros que devem conter. Não havendo forte pressão para fazer cumprir as leis que impedem o uso da droga, a “luta contra os fumadores de maconha” foi perdendo vigor ao final do período de Ditadura Militar e a repressão ao uso foi concreta e progressivamente limitada a situações em que se identifica a perturba- ção da ordem pública ou o tráfico . Mesmo que a configuração dessas situações dependa da interpretação feita primeiramente por agentes da ordem (policiais) e, em última instância, pelos interpretadores oficiais da lei (juízes), parece-me razoável postular que a prática de fumar essa droga em muitas grandes cidades brasileiras se aproximou do que Goff- man (1971) denomina de “aparência normal”:

Quando o mundo que cerca o indivíduo não insinua nada que fuja do ordinário, quando parece que este mundo lhe permite dar con- tinuidade a seus hábitos..., pode-se dizer que o indivíduo sente as aparências como ‘naturais’ ou ‘normais’. Então, para o indiví- duo, as aparências normais significam que não há perigo em dar continuidade às atividades que vem realizando [...]. (GOFFMAN, 1971, p. 239)

Entretanto, no período de redemocratização do país, consolidou- -se uma inversão das prioridades relativas à maconha e outra transação passou a ser considerada alvo prioritário: o tráfico. esse contexto em que o consumo deixa de simbolizar uma grave transgressão, consoli- dou-se um movimento internacional em defesa das transações com essa droga. Reivindicando não somente mudanças legislativas, a “Global Ma- rijuana March” ou “Million Marijuana March” (MMM) surgiu em Nova Iorque, em 1998, e tem se difundido em diversas partes do mundo. Enfatizando a diversidade dos atores reunidos pela intenção de mudar normas relativas à maconha, a continuidade da MMM no Brasil se apoia na afirmação do direito à livre expressão de opinião. sses defensores de mudanças se esforçam para destacar a legalidade da causa. Mesmo que suas manifestações tenham sido judicialmente impedidas em diver- sas cidades, o movimento experimenta um relativo vigor e engaja cada vez mais apoiadores do direito a reivindicar novos direitos. Motivando processo judicial, a MMM se fortaleceu com a decisão tomada pelo Su- premo Tribunal Federal, em 15 de junho de 2011, que declarou por unanimidade a legalidade de manifestações como a Marcha da Maconha cu o foco se a a reunião pacífica para difundir opinião.

Como em todos os lugares onde o MMM se faz atuante, os brasi- leiros agregaram particularidades. De início, a denominação e o calen- dário foram modificados. O movimento se tornou Marcha Mundial da Maconha” e as datas de manifestação têm sido frequentemente desloca- das do dia mundial de luta pela descriminalização da canabis (primeiro sábado de maio) por causa do Dia das Mães, das finais de campeona- tos estaduais de futebol, mas sobretudo devido às medidas impeditivas apresentadas aos poderes judiciários que, por diversas vezes, seguiram o raciocínio de que essas manifestações representavam uma apologia ao ato ilícito de consumir ou realizar qualquer transação com maconha. As medidas judiciárias eram geralmente apresentadas poucos dias an- tes da data planejada para a realização de uma manifestação, assim os organizadores não tinham tempo suficiente para organizar sua defesa. De acordo com a Associação Brasileira de Estudos Sociais sobre o Uso de Psicoativos, em 2008, a Marcha da Maconha foi interditada por juízes regionais em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, João Pessoa, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. Em 2009, novas inter- dições judiciais impediram a marcha em Curitiba, Fortaleza, Goiânia, João Pessoa, Salvador e São Paulo.

Os anos seguintes registraram novos impedimentos, mas, em Re- cife, a marcha segue ininterrupta desde sua primeira edição em 2008.

No ano seguinte, o Ministério Público (MP) de Pernambuco tentou im- pedir a manifestação, mas o juiz responsável pelo caso foi favorável aos manifestantes. Segundo o magistrado, sua decisão apoiava-se no direito de realizar reunião pública pacífica e no direito à livre expressão de opinião”, assegurados na Constituição Federal e em acordos internacio- nais. (CARVALHO FILHO, 2009) Em 2011, nova tentativa de interdição foi iniciada por religiosos, que se congregaram em torno de um vereador e de um deputado estadual, para apresentar a demanda ao MP. Entre- tanto, a experiência anterior desse órgão parece ter desencorajado os que tentavam cercear a MMM e provavelmente foi um dos motivos de sua ausência no momento de produzir um “Termo de Ajustamento de Conduta” que adiou a manifestação em uma semana devido ao fato de haver uma ampla reunião pública planejada pela prefeitura municipal para o mesmo horário e local previsto pelos organizadores da marcha.

Assim, Pernambuco emerge como um caso paradigmático do que estou chamando de novo ciclo de interesses relativos à maconha. A con- solidação democrática que o país tem vivido desde a derrocada da Di- tadura foi acompanhada da ampliação do espaço para a expressão de diferenças e potencialização de conflitos. esse estado, as diferentes posições relativas ao tema são bem representadas e coexistem prin- cipalmente na capital. Juntamente com o restante do sertão do São Francisco, Pernambuco é reconhecido como principal zona de produ- ção nacional dessa droga, que atualmente é apontada como alternativa econômica para a região. (IULIANELLI; FRAGA, 2011) Esse potencial foi referido durante a marcha em Recife, em 2011. Os militantes entoaram que “O latifúndio é uma vergonha, libere a terra pra plantar maconha!”. Assim, o cultivo, o beneficiamento e o comércio de maconha têm voltado a ser publicamente tratados sob interesses econômicos. Contudo, as finalidades á não se limitam à aplicação têxtil.

Conhecendo inúmeras “terapias de substituição” – como as que têm sido experimentadas em Paris na Organização Não Governamental coordenada pela pernambucana Lia Cavalcanti –, a maconha também aparece nas manifestações recifenses como sendo um importante agen- te terapêutico no tratamento da dependência a outras drogas que são apresentadas como potencialmente mais danosas. Ela é indicada como agente redutor de danos decorrentes do uso de crack.

A ascensão de um novo governo estadual, em 2007, foi marca- da por amplas discussões sobre o futuro da região. A discussão sobre o plano de segurança pública do Pernambuco, intitulado “Pacto pela Vida”, culminou em plenária presidida pelo governador que contou com

participação de 15 representantes do Estado (incluindo executivo, le- gislativo e judiciário) e 15 indivíduos escolhidos por organizações da sociedade civil. Em aproximadamente 8 horas de reunião, o governador leu as 158 propostas que compunham o plano e cada passagem em que encontrou divergência foi discutida visando à produção de consen- sos que só não foram possíveis em dois casos: erradicar o plantio de maconha do Pernambuco e desmantelar as redes de comércio ilícito de drogas por meio da prisão de seus líderes. A resistência se sustentou na hipótese de que essas medidas agravariam o problema porque impulsio- nariam traficantes a se armar para defender seus negócios e, sobretudo, porque as transações com essa planta e seus derivados gerariam me- nos danos que drogas comercializadas legalmente como álcool e tabaco. Os que propuseram suprimir as propostas mencionadas trataram como urgente a discussão sobre o tema, acrescentando que o governo deve- ria estimular o debate. Esses argumentos foram defendidos por apenas dois participantes da plenária, ambos representantes da sociedade civil. Os representantes dos poderes públicos ressaltaram o papel das agên- cias do Estado na manutenção da ordem, tal como estabelecida em lei. Outros participantes tentaram ajustar o texto sem alterar os aspectos substanciais das propostas. Assim, não houve consenso e o resultado foi 2 votos favoráveis à supressão, 25 contrários e 3 abstenções.

Essa arena a que chegou o debate em Pernambuco é reveladora da importância da questão que já havia sido discutida por parlamenta- res, operadores do direito e estudiosos, no ano 2000, na Comissão Par- lamentar de nquérito estadual do narcotráfico. ( U A ; RA A, 2011) O “Pacto pela Vida” envolveu não somente atores tradicionalmen- te relacionados com a segurança pública, mas também as secretarias de educação, de saúde e de cultura, bem como representantes de as- sociações civis ligadas a essas e outras áreas, como mulheres, negros e jovens. O debate revelou um respeito mútuo que permitiu a expressão de controvérsias oriundas de três polos geradores de argumentos sobre a maconha: um focado na noção de desvio que deve ser extirpado da sociedade; outro apoiado na importância econômica e no direito indivi- dual do cidadão bem informado decidir se deve ou não se envolver com maconha e, por fim, um terceiro polo enfatizou o potencial terapêutico da planta.

Junto a forças religiosas-moralizadoras e agências promotoras da “lei e ordem” que defendem o respeito à legislação em voga e aos ditos “bons costumes”, poderíamos talvez situar, por meios diferentes, os su eitos que se beneficiam das atuais condições em que as transa-

ções acontecem. O plantio de maconha representa uma alternativa de esconderijo e de manutenção econômica para cidadãos que se sentem banidos do seu meio de origem por alguma contravenção anteriormen- te praticada. Quanto àqueles que atualmente a comercializam, a mu- dança de leis pode alterar bastante seu “meio de vida”. As práticas de corrupção, que atravessam notadamente a produção e o comércio de maconha em zona rural e urbana, indicam a existência de atores que se beneficiam com a atual legislação. Se considerarmos as diversas “mercadorias políticas” que integram essas transações, podemos pos- tular que esses sujeitos provavelmente não se interessam em mudar as normas que disciplinam a questão.

Por outro lado, alguns atores organizam novas demandas de lega- lização que partem da constatação de que as atuais formas de enfrentar dificuldades relacionadas com a maconha não alcançam o êxito preten- dido e agravam problemas. Contando com importante suporte de coad- juvantes que colaboram com argumentos, informações e outros recursos necessários à ação, a MMM congrega uma boa parcela dos insatisfeitos com o atual ordenamento legal e social. Esse movimento propaga uma contestação diferente dos tempos de ditadura, suas manifestações dão visibilidade a sujeitos e argumentos favoráveis a mudanças, bem como facilitam o acesso de novos atores ao debate. Os manifestantes afirmam que a possibilidade de expressar diferentes opiniões acerca dos proble- mas relacionados ao tema é indispensável à ordem democrática. Esse processo repercute em diversos espaços públicos, inclusive nos meios de comunicação de massa e nas instâncias judiciárias que buscam dar visibilidade a opiniões contrárias e assim contribuem para tornar o de- bate público.