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“O QUE É BOM PARA OS ESTADOS UNIDOS É BOM PARA O BRASIL”

Deslocando minha atenção para as redes em que estavam envol- vidos dois outros médicos fortemente atuantes entre os anos 1940 e

1960, destaco primeiramente Eduardo Bizarria Mamede. Formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1930, foi professor dessa facul- dade, deputado estadual durante os anos 1940 e 1950, secretário es- tadual de educação, saúde e assistência social da Bahia (1963-1967). Seu estudo sobre maconha, publicado em em revista científica do Pernambuco sob o título “Maconha, ópio do pobre”, traça um histórico da repressão:

De poucos anos a essa parte, ativam-se providências no sentido de uma luta sem tréguas contra os fumadores de maconha. No Rio de Janeiro, em Pernambuco, Maranhão, Piauhy, Alagoas e mais recentemente Bahia, a repressão se vem fazendo cada vez mais enérgica e poderá permitir crer-se no extermínio completo do vício. […] No Rio, em 1933, registravam as primeiras prisões em conse- quência do comércio clandestino da maconha. Em 1940, a Polícia Bahiana detia alguns indivíduos. (MAMEDE, 1945 apud CARLINI, 2005, p. 10)

Ratificando que a repressão seria o caminho adequado à erradi- cação do vício, Mamede afirmou a necessidade de concentrar esforços para combater a maconha e não outras drogas. O raciocínio expresso pelo autor evidencia uma proposta para-cirúrgica de supressão dos “fu- madores de maconha” do corpo social; a operação deveria ser realizada por policiais que deveriam expurgar a sociedade de seus usuários e co- merciantes. Os indivíduos que utilizavam a substância já vinham sen- do apresentados como escória da sociedade e seu hábito fora apartado dos demais consumos de drogas na capital nacional pelo menos duas décadas mais cedo, quando Botelho e Pernambuco Filho (1924) apre- sentaram o vício em drogas como fenômeno considerado elegante, ex- ceto pela maconha que afirmavam ser consumida principalmente pelas “classes baixas”. Entretanto, Mamede demonstra que não havia mais espaço (pelo menos nos discursos) para comerciantes da substância; estes também passavam a ser objeto de perseguição policial.

inalizando as menções biográficas desta seção, volto ao dr. Ro- berval Cordeiro de Farias, primeiro presidente da CNFE. Esse médico, nascido no Rio de Janeiro em 1893, teve pai e quatro irmãos que segui- ram carreira militar. Quando as ações da CNFE se iniciaram em 1936, ele foi o nome de consenso entre os oficiais militares que se ocupavam das relações exteriores e os médicos que comandavam a área de saú- de do Ministério da Educação e Saúde. Anos depois, tornou-se diretor geral do Departamento Nacional de Saúde e assumiu interinamente o comando do ministério em 1946, durante o governo Dutra. A coletânea

de artigos sobre maconha organizada pela CNFE, nos anos 1950 (MA- CONHA..., 1958), deve-se a seu empenho em difundir uma concepção que também servia de ustificativa para reprimir hábitos e ideias de uma parte da população. Entre os 31 artigos da coletânea, Farias (1958) assi- na três e se mostra empenhado em reprimir o que considerava um vício perigoso. Relatando missão de 1943 nos estados da Bahia, Alagoas e Sergipe, afirma que até recentemente não havia repressão à planta e seu uso era corrente entre “indivíduos da classe baixa, desamparados de assistência social e menores abandonados, os chamados ‘maloqueiros’ […] criminosos e reclusos nas penitenciárias”. Segundo o autor, o uso que se fazia entre o povo brasileiro era devido à ignorância dos riscos à saúde e os plantadores desconheciam a lei que impedia tal cultivo. Po- rém, Farias (1958, p. 112) indica a existência de:

[...] intermediários, que sabem o valor da planta pelo lucro que pro- porciona e que incentivam a sua cultura junto aos nossos ingênu- os sertanejos, aos quais pagam uma ninharia para revendê-la aos viciados, por bom preço e exportá-la em contrabando para outros pontos do país e para o estrangeiro [...].

Segundo Farias (1958), o lucro dos contrabandistas era elevado devido à situação de guerra que levara à instalação temporária no Bra- sil de estrangeiros de “categoria social mais elevada” que consumiam a planta. Citando o major Pulcherio, secretário de segurança da Bahia, o autor relatou que os estrangeiros, ligados à marinha mercante e de guerra dos Estados Unidos, pagavam preços elevados pelo produto e atraíam para o tráfico novos vendedores que ansiavam lucro fácil.

Contudo, o raciocínio do ilustre médico seria refutado por um dos marinheiros norte-americanos que, anos depois, tornar-se-ia antropó- logo. Trata-se de Harry William Hutchinson, que foi um dos assistentes de Charles agley em pesquisa financiada pela Organização das ações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre relações raciais no Brasil no início dos anos 1950. Hutchinson investigou o tema em comunidades rurais no interior da Bahia, tendo posteriormente se dedicado ao estudo da medicina tradicional dessa região. Wagley parti- lha com Eduardo Galvão (1949) a condição de primeiro antropólogo que tratou do consumo de maconha entre índios brasileiros e Hutchinson (1975) voltaria a tratar do tema em artigo que investiga os padrões de uso da maconha na região que estudava há aproximadamente duas décadas. O antropólogo apresentou diferentes modos de uso da planta, questionou se ela teria realmente sido introduzida por negros escra-

vizados, discorreu sobre a sinonímia e apresentou uma nota pessoal afirmando que ele

[...] era membro do grupo de estrangeiros que teria supostamente usado maconha em meados dos anos quarenta, enquanto estava numa região do nordeste do Brasil com a Marinha. [...] Durante aqueles dois anos, não me aproximei do uso de cannabis nem do vocabulário relacionado ao tema.

O meu primeiro trabalho no campo antropológico foi feito numa comunidade rural de cultivo de cana-de-açúcar no estado da Bahia entre 1950 e 1951. Retornei às minhas anotações de campo e não encontrei nenhuma menção aos sinônimos de cannabis em nenhu- ma das receitas farmacêuticas populares que eu coletei. Nem tam- pouco fumei conscientemente ou vi qualquer pessoa fumar canna-

bis. (HUTCHINSON, 1975, p. 173)

Assim, passados mais de anos, a afirmação relatada por a- rias (1958) é apontada como perjúrio por um dos sujeitos envolvidos no caso. Isso demonstra, a meu ver, que os dados em que se apoiava a CNFE estavam eivados de um certo “higienismo social” e da ideologia securitária que se consolidou no país após o final da Segunda uerra, sob influência e financiamento da administração norte-americana.

O movimento militar, iniciado na década de 1920 com um levante de tenentes que demandavam mais celeridade na progressão de paten- tes, repercutiu e tomou contornos ideológicos importantes a partir da ascensão de Vargas e dos militares que o apoiaram em 1930. Um irmão do dr. Roberval Cordeiro de Farias participou de todas as tentativas re- volucionárias protagonizadas por militares entre 1922 e 1964, foi chefe de polícia no contra revoltoso estado de São Paulo em 1931 e, depois de controlado o levante paulista, foi interventor federal na administra- ção do Rio Grande do Sul. Em 1945, voltando-se mais uma vez contra um antigo aliado, Osvaldo Cordeiro de Farias participou do golpe que afastou Vargas e extinguiu o Estado Novo. Depois de trabalhar no exte- rior e estagiar na Escola do Estado Maior do Exército Norte-Americano, participou da criação da Escola Superior de Guerra e foi seu primeiro comandante em 1949. Consolidava-se então o que viria a ser conhecido como “doutrina de segurança nacional”; o general Cordeiro de Farias assumia papel importante na formação e condução de uma elite militar disposta a alterar a ordem socioeconômica. (CAMARGO; GÓIS, 1981)

Tendo postulado em 1950 a presidência do importante Clube Mi- litar do Rio de Janeiro, o general Farias representava os defensores da participação de estrangeiros (supostos detentores de capital técnico e

financeiro) na exploração do petróleo em território brasileiro. Suas po- sições se tornaram evidentes ao renunciar ao governo de Pernambuco para assumir, em 1958, a presidência da Comissão Mista Brasil-Esta- dos Unidos, cargo que ocupou por dois anos até ser nomeado chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e se envolver com o golpe que depôs João Goulart e levou mais uma vez os militares ao ápice da administra- ção nacional. Dessa corrente, também faziam parte o ex-presidente Du- tra e alguns generais golpistas, como Jurandir Bizarria Mamede, irmão de outro médico supracitado.

O general Mamede ganhou notoriedade em 1955 quando, no en- terro de um ex-ministro da guerra, discursou ressaltando a resistência anti-Vargas que o falecido protagonizara e conclamando as Forças Ar- madas a impedir a posse de presidente e vice-presidente eleitos. A cam- panha pelo respeito à legislação nacional, capitaneada pelo marechal Lott, assegurou o mandato de Juscelino Kubitschek, mas nada deteria os golpistas. Alguns anos depois, levaram Castelo Branco à presidência da República e muitos generais ao comando de ministérios, incluindo Cordeiro de Farias, três futuros presidentes e o também general Juracy Magalhães, que presidiu a Petrobrás e proferiu a célebre frase que, para muitos, simbolizou a tendência militar que governou o país entre 1964 e 1984: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

Pelo suposto perjúrio em relação aos estrangeiros maconheiros, parece-me bastante provável que os interesses da doutrina de seguran- ça nacional tenham influenciado também a C . A hipótese de que havia uma intenção premeditada de associar a maconha produzida no rasil com o tráfico internacional visou produzir a impressão de que era necessário fortalecer as agências da “lei e ordem”, especialmente as For- ças Armadas. O revestimento de intriga internacional para as transa- ções com maconha reforçou a ideia de que a cooperação entre diferentes nações seria indispensável para enfrentar o problema em uma época em que a repressão às transações com essa droga se destacava justamente nos Estados Unidos.

Os interesses que aqui agrupo em volta da ideia de “segurança” são provavelmente os mais presentes nas ciências sociais que se ocu- pam de investigações relacionadas com maconha no Brasil. Entretan- to, esse ciclo de atenção é, paradoxalmente, um dos mais obscuros. A literatura que acessei não analisa as relações entre médicos e ge- nerais, mesmo que seus vínculos sejam estreitos e que a maioria dos estudos indique que a repressão à maconha se acentuou sob governos militares.