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RODRIGUES DÓRIA E A TOXICOMANIA DOS SERTÕES

Maconha é um dos nomes pelos quais é chamada a Cannabis sa-

tiva, também conhecida como cânhamo, planta que há muito tempo

era utilizada para fins têxteis no rasil, tendo sido seu cultivo ob eto de iniciativas da corte portuguesa que buscava explorar seu aspecto econômico. É conhecida a história da Real Feitoria do Linho Cânhamo, instalada em 1783, no sul do país, região cujo potencial para o cultivo da planta foi destacado em um relatório do Marquês do Lavradio, de 1799. Do mesmo modo, a Cannabis sativa também se adaptou às ter- ras do norte do país e sua cultura foi importante para o primeiro surto de industrialização do estado do Maranhão, servindo de matéria prima para uma florente indústria têxtil no final do século X X. A tentativa de industrialização daquele estado levou ao desenvolvimento de plantações de algodão e cânhamo, que eram utilizados pela Companhia de Fiação e Tecidos Cânhamo, que entrou em funcionamento em 1893. Além do uso têxtil, também eram conhecidas aplicações terapêuticas da Cannabis

sativa, que eram descritas em manuais médicos do século XIX, como o

famoso Formulário Chernoviz, e publicitadas em revistas especializadas, como o Brazil Médico.

Apesar da longa história da planta no rasil, seu uso para fins recreativos era praticamente ignorado. Não que tal uso inexistisse, mas essa prática era comum entre escravos africanos e seus descendentes, o que explicaria a pouca atenção dedicada a tal uso. Foi a partir do tra-

balho de Rodrigues Dória que a medicina brasileira passou a levar em consideração os perigos do uso da maconha no Brasil. O sergipano José Rodrigues da Costa Dória (1859-1938) nasceu na cidade ribeirinha de Propriá-SE e diplomou-se médico na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1882, com a tese “Das febres intermitentes complicadas do elemento tífico . Durante três anos, exerceu clínica na cidade de aran eiras-S , importante centro produtor de açúcar. Rodrigues Dória voltou à Bahia para concorrer ao lugar de adjunto à cadeira de Medicina Legal e Toxi- cologia, quando foi aprovado em primeiro lugar e nomeado por decreto imperial, em 1885. Com a criação da Faculdade Livre de Direito, foi indicado para exercer a cadeira de Medicina Legal e nomeado lente cate- drático da cadeira de Botânica e Zoologia médicas, em 1892. Rodrigues Dória pertenceu a várias instituições culturais e científicas, dentre as quais o nstituto Histórico e eográfico de Sergipe, o nstituto eográfi- co e Histórico da Bahia e a Academia Nacional de Medicina.

Rodrigues Dória participou ativamente dos debates da medicina legal de sua época e também teve uma importante atividade política, tendo sido eleito deputado federal por Sergipe por quatro legislaturas seguidas, de 1897 a 1908, quando foi eleito e empossado presidente do estado de Sergipe, cargo que exerceu até 1911. Foi da sua experiência com a população interiorana que Rodrigues Dória tomou conhecimento do uso da Cannabis sativa e passou a interessar-se pelo assunto, até então praticamente desconhecido da literatura médica brasileira. Em verdade, o uso da Cannabis sativa já era do conhecimento de Rodrigues Dória há muito tempo, como escreveu ao Jornal de Sergipe contando que “desde criança via fumar a erva em Propriá e que a excitação que essa provocava muita vez desperta a veia poética de alguns, outras vezes era causa de rixas, brigas, pancadaria, intervenção da polícia”. (CASTRO, 2009) A partir de seus estudos médicos e de seu conhecimento teste- munhal do uso da planta, Rodrigues Dória escreveria Os fumadores de

maconha: efeitos e males do vício, em 1915, que se tornaria o texto para-

digmático para a discussão do problema da maconha no Brasil.

A Cannabis sativa, porém, não foi imediatamente associada à ma- conha na obra do médico sergipano, como pode ser observado em um trabalho apresentado no VI Congresso Brasileiro de Medicina e Cirur- gia, realizado em São Paulo, em 1907. Intitulada Toxemia e crime, a comunicação analisava a relação entre a embriaguez provocada pelo consumo de determinadas substâncias tóxicas com a prática criminosa. A embriaguez, que na opinião de Rodrigues Dória (1907) poderia “ser to- mada como sinônimo de narcomania”, é apresentada como sendo uma

“moléstia constitucional caracterizada por forte impulso mórbido para a intoxicação”. Apesar da sinonímia, Rodrigues Dória não utilizaria em seus trabalhos o termo toxicomania – que fazia referência à noção psi- quiátrica da mania –, preferindo utilizar o termo embriaguez, que reme- tia à discussão médico legal da capacidade civil e da responsabilidade penal do indivíduo que cometia crimes sob o efeito de drogas. As drogas causadoras da embriaguez eram as bebidas alcoólicas e as drogas nar- cóticas, substâncias como o éter, a morfina, a cocaína e outras. ntre as outras drogas, Rodrigues Dória (1907) incluía a “ganja e o hashisch”, informando que o “agente principal destes tóxicos é a Cannabis indica, planta da família das cannabináceas” e que seu uso é a principal causa da loucura em Bengala e no Cairo. As referências a lugares distantes mostram que, nesse momento, Rodrigues Dória ainda não associava a canabis com a maconha que era fumada nos canaviais sergipanos, o que iria fazer alguns anos mais tarde em seu famoso estudo sobre o vício da maconha. A argumentação que associava o vício da embriaguez à degeneração racial, no entanto, á estava presente e definida na comu- nicação de 1907.

Rodrigues Dória (1907) dividia as causas da embriaguez em duas classes: a das causas excitantes e a das causas predisponentes. As cau- sas excitantes eram as formas variadas de choque nervoso, como as perturbações domésticas, comerciais e financeiras, a histeria, a puber- dade, a gravidez e o esgotamento nervoso. Porém, mais importante do que essas seriam as causas predisponentes, pois essas resultavam da influência, entre outras coisas, do sexo, da idade, do temperamento, da raça, das circunstâncias pecuniárias, da ocupação, dos hábitos associa- dos. Rodrigues Dória afirmaria, na comunicação de , que o álcool e as drogas não eram um mal absoluto, podendo prestar bons serviços ao homem. O perigo resultaria principalmente do abuso da embriaguez que, nesses casos, poderia ter, além das causas internas individuais, poderosas causas externas, físicas, morais e sociais que favoreceriam os indivíduos ao crime. O enquadramento da embriaguez produzida por bebidas alcoólicas e drogas narcóticas como uma “doença social” torna- va mais grave o problema, uma vez que eram “bem estreitas as conexões entre a toxemia, em geral, e o crime”. (DÓRIA, 1907, p. 1)

A ideia da existência de uma predisposição inata para o vício e para o crime, uma influência das teorias científicas baseadas nos preceitos da hereditariedade, do atavismo e da degenerescência que dominaram o debate médico da segunda metade do século XIX, levava a medicina a ocupar-se com o indivíduo e sua prole. Essas teorias, por intermédio

da categoria degeneração, viam o vício e o crime não mais como des- vios morais, e sim como manifestações de um psiquismo perturbado, de uma determinação orgânica que se impunha às escolhas individuais, impossibilitando qualquer liberdade humana essencial. Loucos, perver- sos sexuais, homicidas, todos passavam a ser vistos como fruto de um mesmo processo degenerativo. A noção de degenerescência, associada à embriaguez alcoólica e narcótica, aproximava o consumo de bebidas e drogas à alienação mental e ao crime. Também inscrevia esses males na natureza dos indivíduos, especialmente em suas características raciais com suas predisposições inatas ao vício. Assim, para Rodrigues Dória (1907), a embriaguez alcoólica – muito comum na Inglaterra e nos Esta- dos Unidos – estaria relacionada à “raça anglo-saxônica” devido ao “seu esforço intelectual e consequente esgotamento nervoso, que reclama um excitante externo” e “à vida extremamente ativa e intensa dos habitan- tes” daqueles países, fatores coadjuvantes da raça.

A discussão sobre a relação entre raça e vício, especificamente a relação entre a raça negra e o vício de fumar maconha, foi retomada por Rodrigues Dória em Os fumadores de maconha: efeitos e males do

vício, seu trabalho apresentado no Congresso Científico Pan-Ame-

ricano, reunido em Washington, nos Estados Unidos, entre os dias 27 de dezembro de e de aneiro de . Desde o final do século XIX, os congressos médicos latino-americanos representaram um es- paço de discussão e legitimação científica da medicina, reunindo cen- tenas de médicos e concluindo com a aprovação de moções para cobrar dos governos nacionais ações sobre os temas médicos mais sentidos. Os congressos científicos pan-americanos, por sua vez, eram reuniões onde os mais variados temas eram apresentados por profissionais das mais variadas áreas do conhecimento, sendo menos seguidos pelos médicos. A comitiva brasileira que participou do Congresso de Wa- shington era formada, além do próprio Rodrigues Dória, pelo médico sanitarista Vital Brazil e pelo inventor Santos Dumont. Um aspecto in- teressante da participação de Rodrigues Dória, no evento em que apre- sentou pela primeira vez o trabalho sobre os fumadores de maconha, foi a participação, na mesma sessão, do médico americano Harvey W. Wiley, que teve um papel importante na cruzada pela regulamentação das drogas na América e ficou conhecido como the father of the Pure Food and Drugs Act”.2

2 Aprovada em 1906, a Pure Food and Drugs Act era uma lei que proibia o comércio interestadual de alimentos e drogas adulterados.

No texto apresentado ao congresso, Rodrigues Dória conta como sua atenção foi chamada para o uso da maconha e revela que foi somente em que ele fez a identificação da maconha com a Cannabis sativa:

Minha atenção foi chamada para a maconha, e seu uso no Brasil, depois da leitura de um trecho da obra de Bentley – A manual of botany – no qual, tratando da família das cannabinaceas, e referin- do a Cannabis sativa, e a sua variedade índica, diz o autor: ‘Esta planta e igualmente conhecida sob o nome de liamba, na África oc- cidental, onde é empregada para fins intoxicantes sob os nomes de maconia, ou makiah.’ consequintemente, o fato de ser o vegetal lar- gamente usado pelos pretos africanos nas antigas províncias, hoje Estados, onde eles abundavam, a paridade dos nomes que aqui so- freu ligeira modificação, mudança apenas de uma letra – maconha, liamba ou riamba –, e o apelido de fumo d’Angóla, indicam bem a sua importação africana. Em 1910, quando estive na presidência do stado de Sergipe, pude fazer a identificação da maconha com o canhamo, cultivando ali a planta com sementes adquiridas nas margens do rio São Francisco. (DÓRIA, 1958, p. 2)

Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício foi explicita-

mente inspirado na leitura da obra Les opiomanes, do francês Roger Du- pouy. Em seu livro, Dupouy faz um estudo dos vários usos do ópio e de alguns usuários ilustres, como especificado no subtítulo do livro – estu- do clínico e médico-literário sobre comedores, bebedores e fumadores de ópio. m seu livro, após descrever as características da morfinomania, Dupouy ( ) analisa a influência do ópio na obra de alguns dos prin- cipais escritores da época, como Edgar Alan Poe, Samuel T. Coleridge, Gerard de Nerval, Thomas De Quincey e Charles Baudelaire. Sobre esse último, o autor diz que é venerado como um Deus pelo toxicômano e re- provado como um libertino odioso pelo burguês.3 O estudo de Dupouy,

associando a toxicomania à literatura decadentista do fim do século X X se enquadra claramente entre aqueles que vão contribuir para a criação do tabu da droga.

Escrevendo sobre a origem do tabu da droga e de sua proibição no mundo contemporâneo, o historiador alemão Wolfgang Schivelbusch propõe que a forte presença das bebidas alcoólicas como um compo- nente estável da cultura ocidental, desde a antiguidade, explicaria a re- sistência às tentativas de sua proibição e, ao mesmo tempo, a limitação do espaço para a introdução de novas substâncias inebriantes, como o ópio. O tabu da droga também teria sido consolidado pela representação

Charles audelaire que le fin toxicomane vén re à l égal d un Dieu et que le bourgeois sentencieux réprouve comme un odieux libertin”. (DUPOUY, 1912, p. 269)

particular daquelas drogas, que foi elaborada pela vanguarda artística e literária do século XIX, que igualava a produção artística à experiência da droga. Essa vanguarda romântica e decadentista proclamava o ar- tista como figura antissocial que procurava se destacar do mundo bur- guês; o artista, cuja vida e obra deveriam se fundir para criar realidades belíssimas e irreais, como os sonhos produzidos pelo ópio. Contraria- mente à intenção dos poetas que as criaram, dirá Schivelbusch, essas descrições de um mundo fantasioso e antissocial e a imaginação de paraísos artificiais produzidos pelo consumo de droga, que afastavam o indivíduo da moral burguesa, seriam utilizadas pelos formuladores do tabu da droga para construir a atmosfera emotiva de temor que cercou a adoção de medidas contra o consumo daquelas drogas.

Inspirado pela obra de Dupouy, Rodrigues Dória estabeleceu uma analogia entre a maconha e o ópio para criar a figura do fumador de maconha. A definição do vício de fumar maconha como uma patolo- gia transferia a sensibilidade vivida pela vanguarda artística europeia às margens do Sena para as margens do rio São Francisco; uma sensi- bilidade que, no Brasil, porém, era vivenciada por uma raça condena- da por sua própria natureza não à arte e à poesia, mas sim à loucura e ao crime.

Entre nós a planta é usada, como fumo ou em infusão, e entra na composição de certas beberagens, empregadas pelos feiticeiros, em geral pretos africanos ou velhos caboclos. Nos candomblés – festas religiosas dos africanos, ou dos pretos crioulos, deles descenden- tes, e que lhes herdaram os costumes e a fé – é empregada para produzir alucinações e excitar os movimentos nas danças selva- gens dessas reuniões barulhentas [...] Do inquérito que tenho pro- cedido a respeito do uso de fumar as sumidades floridas da planta que faz o objeto deste trabalho, é ele muito disseminado entre pes- soas de baixa condição social, na maioria analfabetos, homens do campo, trabalhadores rurais, plantadores de arroz, nas margens do rio São Francisco, canoeiros, pescadores, e também nos quar- téis pelos soldados, os quais ainda entre nós são tirados da escória da nossa sociedade. (DÓRIA, 1958, p. 5)

Para Rodrigues Dória (1958), a disseminação do uso da maconha entre a população sertaneja dos estados do Nordeste representava uma ameaça, pois o seu uso “deprime consideravelmente as funções nervo- sas, ao ponto de levar a um verdadeiro estado de estupidez, no qual se dissolve para assim dizer a personalidade moral”, incapacitando o indi- víduo para o trabalho. O vício da maconha era destacado em seus está- gios, sua motivação, suas condições facilitadoras e suas consequências.

Rodrigues Dória dividia o vício em dois estágios – o agudo e o crônico –, sendo os efeitos perniciosos mais marcados neste último estágio. Os pe- sares, as dores e a busca de prazeres são apresentados como motivado- res do vício e as taras degenerativas como condição facilitadora. Assim, a embriaguez da maconha apresentaria efeitos orgânicos e psíquicos, sendo esses últimos caracterizados por uma ordem de manifestação que passaria da sensação inicial de bem-estar ao delírio e, por fim, à agres- sividade, que tornava esses indivíduos “rixosos, agressivos, e vão até a prática de violências e crimes, se não são contidos”.

Rodrigues Dória foi o primeiro a defender a tese do uso da maco- nha como um mal externo, estranho à cultura brasileira, introduzido no país pelos escravos africanos. Ao relacionar a “origem da maconha brasileira” com a “raça negra”, Rodrigues Dória atribuía um status ét- nico à planta e, dessa associação entre planta e raça, ele faria inferên- cias sobre os perigos sociais inerentes ao seu consumo. Estabeleceria, assim, uma simetria entre as qualidades da maconha e as qualidades da raça negra, responsável pela introdução do vício no país. As qualida- des raciais postuladas baseavam-se na crença de que cada grupo racial ocuparia um lugar determinado na história da humanidade, sendo es- sas posições ditadas por diferenças biológicas intrínsecas a cada grupo. Assim, enquanto a raça branca estaria em um estado de civilização, a raça negra estaria em um estado de selvageria. Esta última, como vin- gança por ter sido subjugada pela primeira, teria inoculado em seu meio o vício da maconha, uma espécie de “vendetta africana”:

A raça preta, selvagem e ignorante, resistente, mas intemperan- te, se em determinadas circunstâncias prestou grandes serviços aos brancos, dando-lhes, pelo seu trabalho corporal, fortuna e comodidades, estragando o robusto organismo no vício de fumar a erva maravilhosa, que, nos êxtases fantásticos, lhe faria rever talvez as areias ardentes e os desertos sem fim de sua adorada e saudosa pátria, inoculou também o mal nos que a afastaram da terra querida, lhe roubaram a liberdade preciosa, e lhe sugaram a seiva reconstrutiva; e, na expressão incomparável do grande e genial poeta americano, o mavioso Longfellow, a raça expoliada, como o Sansão da Bíblia: ‘The poor, blind slave, the scoff and jest of all/Expired, and thousands perished in the fall’.4 (DÓRIA,

1958, p. 13)

4 O pobre escravo cego, desprezado e ridicularizado por todos/Morreu e milhares pere- ceram na queda.