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Atravessar um texto como o de Grande Sertão: Veredas não é tarefa simples e despida de introduções preliminares ao pensamento do autor. Além de trazer à tona cenários inéditos ao mundo urbano e ter como principais personagens jagunços, o maior motivo de estranheza no romance é a linguagem empregada por Rosa para desenvolver seu pensamento, ao longo de centenas de páginas, sem divisões capitulares372. Não são poucos os que, adentrando as primeiras páginas deste romance, deixam-no de lado ora por irritação ora por perplexidade.

No início a leitura é sofrida, povoada de dificuldades que, à primeira vista, parecem insuperáveis. Ao estudioso desta densa obra vem a certeza: Guimarães o fez de propósito! O texto é composto para confundir o leitor e, concomitantemente, entregar ao mesmo códigos, por meio dos quais se compreenderá a genialidade do autor ao fim da dura travessia373, por meio da trama narrativa de Riobaldo e suas estórias anamnéticas.

Vivendo num período fortemente marcado tanto pelo regionalismo quanto pela reação espiritualista374, Rosa dá um passo para além das linguagens que caracterizavam ambos os movimentos literários. Fantini destaca que a descentralização de fronteiras estáticas, pro- movida pela vigorosa experimentação da língua nos textos do escritor mineiro, se dá porque ele assume radicalmente uma posição desconstrutora. Tal posição se move “contra toda forma de demarcação cultural fixa e totalizante”, especialmente aquelas que dicotomizam ou imobilizam pólos como: a) o centro e a periferia; b) o arcaico e o moderno; c) a oralidade

371 Id. Ibidem, p. 7.

372 MACEDO, Tânia de. Guimarães Rosa, p. 22.

373 BRAIT, Beth. Guimarães Rosa, p. 100. Outro comentarista chega a falar em “itinerário labiríntico de Riobal-

do pelo Grande Sertão”. GONÇALVEZ FILHO, Antonio. Outras Veredas de Guimarães Rosa. In: O Estado de São Paulo. Cultura D7. Domingo, 9 de dezembro de 2007.

374 Para mais informações sobre as características e principais nomes dessas vertentes literárias da primeira me-

tade do século XX ver: GALVÃO, Walnice N. Guimarães Rosa, pp. 14-26 e BOSI, Alfredo. História Conci- sa da Literatura brasileira, pp. 388-428.

e a escritura, entre outros.375 A elaboração da linguagem rosiana atinge patamares tão supi- nos que, segundo Galvão:

“(...) superou ambas as linguagens, distanciando-se, foi no apuro formal, no caráter experimentalista da linguagem, na erudição poliglótica (...). E no fato de escrever prosa como quem escreve poesia – ou seja, palavra por palavra, ou até fonema por fonema. (...) foi em sua pena que nossa língua literária al- cançou seu mais alto patamar. Nunca antes, nem depois, a língua foi desen- volvida assim em todas as suas virtualidades.”376

Tal elaboração lingüística pode ser percebida em toda obra do autor, o qual se dedicou incansavelmente a atacar, ou melhor, a recriar o lugar-comum da linguagem, a fim de enfa- tizar o texto literário como organismo vivo. Segundo Finazzi-Agrò, essa virtualidade da linguagem rosiana permite que distintas partes de seu texto literário se combinem e se orga- nizem num conjunto acabado e, ao mesmo tempo, aberto para o fora e o algures. 377 Em di- reção a uma realidade a que se dá e de que se recebe, numa troca sem fim. Em outro exem- plo citado por Galvão, que clareia muito a questão da recriação do lugar-comum, tem-se a seguinte frase de Rosa: “antenasal de mim a palmo”; ao invés de: “a um palmo diante do nariz”. Destaca-se ainda um de seus personagens, chamado “Moimeichego”, que é, na ver- dade, uma experimentação de vários idiomas, o que fica nítido com a seguinte divisão: MOI – ME – ICH – EGO.378 Como se Rosa estivesse cravando nessa personagem as possíveis variações de seu Eu em distintas culturas idiomáticas. Numa espécie de Eu profundo, no qual reverbera, aqui e acolá, o próprio escritor mineiro e seus “eus” literários. Como se a biografia, ou seja, a história reflexa do Eu do escritor, refletisse também na vida do texto. Ainda mais especificamente, poder-se-ia dizer que o Eu identitário de Rosa se dilui na vida de seus personagens e, no processo de encontro com o texto rosiano, os leitores são capazes de conhecer escritor e escritura por meio de distintos “eus”, os quais, por sua vez, já não são mais nem Rosa e muito menos uma criação literária estanque379.

375 FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: Fronteiras, Margens, Passagens, p. 59. 376 GALVÃO, Walnice N. Ibidem, pp. 8 e 9. O que está em itálico é grifo meu.

377 O crítico italiano reflete nesse trecho de seu livro sobre a grandeza do texto literário a partir da obra rosiana.

Sobre o enquadramento de gênero do romance e a ambigüidade falante, imbricada no dorso de GSV, cita-se: “Definição que não define, como se vê, que não se fecha num sentido, mas que, por isso mesmo, pela sua ambigüidade e abertura, torna-se capaz de dizer – pelo menos preliminarmente – também o caráter excessivo do ‘romance’ de Rosa: torna-se, enfim, adequada a significar a sua extravagância, que vem do fato de ele não caber nas categorias habituais, do fato de ele divagar, ou ‘vagar fora’, de qualquer fronteira de gênero. FI- NAZZI-AGRÒ, Ettore. Um lugar do tamanho do mundo: tempos e espaços de ficção em João Guimarães Rosa, pp. 27 e 32.

378 GALVÃO, Walnice N. Guimarães Rosa, p. 9 e SPERBER, Suzi Frankl. Caos e Cosmos: Leituras de Guima-

rães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976. p. 40.

379 RIVERA, Tânia. Guimarães Rosa e a Psicanálise: Ensaios Sobre imagem e escrita. Rio de Janeiro: Jorge

Em Rosa, como ele mesmo afirma, “a linguagem e a vida são uma coisa só”, uma vez que “a vida é também para ser lida”380. Tais afirmações do escritor nos encaminham à com- preensão de sua tentativa de unir linguagem oral e escrita, erudita e coloquial, nacional e estrangeira, em verso e em prosa. O fenômeno do ambíguo, do duplo, manifesta-se ininter- ruptamente, o que revela a importância deste tema para o autor, o qual, além de tratá-lo no drama existencial de suas personagens, expressa-o por meio da fala destes.

Sobre esse duplo que abarca a linguagem e os textos rosianos, Rivera diz:

“A escrita, como trabalho de impressão, envolve tanto o autor quanto a obra, numa transmutação mútua. (...) A linguagem será por ele alterada – tornada alter: outra – com o uso de neologismos e diversos procedimentos narrativos que lhe conferirão um precioso toque de estranheza.”381

Pode-se dizer, portanto, que essa estranheza é programada. O grande inovador da fic- ção na era de ouro do romance brasileiro, segundo Bosi, deu-se ao labor de experimentar radicalmente as fontes vivas das linguagens não-letradas. Rosa soube explorá-las e pô-las a serviço de seu sistema de abstração e remodelagem da língua, o que redundou em uma prosa complexa, em que o natural, o infantil e o místico assumem uma dimensão ontológica. Essa dimensão transfigura os materiais de base, principalmente a compreensão do ser humano e seu sistema lingüístico382. Ao tornar outra a palavra, ou seja, ao jogar verbalmente com a alteridade; o escritor-diplomata383 nos apresenta sua compreensão do humano também de modo alterado, um outro humano possível. A linguagem rosiana, nesse sentido, especula384 a vida e, com isso, a altera. Caso concordemos que toda linguagem é também leitura, pode- se dizer que a linguagem rosiana é leitura que busca: a) tornar a vida outra; b) misturar mundos; c) ver o humano outramente. Aqui temos uma chave significativa e significante para o diálogo entre teologia e literatura. Mais classicamente, pode-se dizer que aqui nos origem da poiésis. Ao destacar a capacidade de reprodução (mimese) como ato criador de um eu-outro, Rive- ra diz que: “Pois se a mimese re-produz, trata-se da produção repetida não de uma ‘coisa’, mas da reprodução de uma ação: ação criadora do eu, a partir da imisção entre pulsão de vida e pulsão de morte. (...) Ao se re- produzir, a mimese, produz um eu-outro. É enquanto eu-outro que o poeta, ou o artista, interessa à arte, e não enquanto ‘eu mesmo’.

380 RIVERA, Tânia. Guimarães Rosa e a Psicanálise: Ensaios Sobre imagem e escrita, pp. 7 e 60. 381 Id. Ibidem, pp. 12 e 24.

382 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura brasileira, p. 388.

383 A fim de corroborar com a reflexão sobre os distintos “eus” que habitam o mundo rosiano, Daniel Piza desta-

ca que para Rosa o diplomata era como um “sonhador que tenta consertar o que os políticos estragaram. Ci- tando Rosa: “Também configuram meu mundo a diplomacia, o trato com cavalos, vacas, religiões e idio- mas”. PIZA, Daniel. O Grande sertão sem Fronteiras. In: Entre Livros, ano 1, nº 9, p. 31.

384 Tentamos com essa palavra traduzir outras duas. Primeiramente, lembramo-nos do latim speculare, que pode

ser “espreitar”, ou melhor, “observar detidamente”. Em segundo lugar, lembramo-nos do alemão nachsinnen, que pode ser “sich in Gedanken mit etw. beschäftigen” – ocupar os pensamentos com algo (tradução própria). KUNKEL-RAZUM, Kathrin, SCHOLZE-STUBENRECHT, Werner & WERMKE, Matthias (orgs.). Duden: Deutsches Universalwörterbuch, p. 1119.

deparamos com um eixo hermenêutico à relação teologia e literatura, a saber: a linguagem que especula e altera a vida, o mundo e o humano.

Segundo o próprio Rosa diz: “Como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida.”385 Essa assertiva demonstra-se mais do que um ideal teórico para reelaboração da linguagem a ser utilizada numa determinada obra. Rosa deseja, com seu “projeto restaurador”386, propor uma lingua- gem literária autônoma do português de Portugal e das metrópoles intelectuais do Brasil. Sua escritura é sinal de um diagnóstico crítico sobre: a) a linguagem dos ficcionistas brasi- leiros; b) as fontes literárias utilizadas na época; c) a estrutura temática em que se produzi- am os escritos de então. Que se faça ouvir Rosa para maior compreensão desta crítica:

“Não sou romancista; sou um contista de contos críticos. Meus romances e ciclos de romances, são na realidade contos nos quais se unem a ficção poé- tica e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramá- tica e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filologia, ciência lingüística, foram inventadas pelos inimigos da poesia.”387

Esse intento inédito foi permeado pela revitalização dos recursos da expressão poética (ritmo, rima, aliterações e etc.) e deslocamentos de sintaxe (vocabulário insólito, erudito e arcaico e neologismos), a fim de captar os valores espirituais, humanos e culturais de um povo em transição, em transformação acelerada de uma estrutura agrícola para a urbaniza- ção industrial. A linguagem em Rosa passa a ser imaginada esteticamente, com o pano de fundo da fauna e da flora, tipicamente regionais, e desenvolvida como expressão lírico- narrativa do universo humano, o qual é sempre movente e plurissignificativo388. A título de exemplo, podemos lembrar que Riobaldo usa narração, a fim de dinamizar sua busca exis- tencial, ou ainda, “a própria narração se configura como um processo de busca.”389

Alfredo Bosi destaca um princípio importante da linguagem poética, a saber, a analo- gia. Esse princípio é delineador de outro pensamento que se demonstra não somente na te- mática dos escritos rosianos, mas, sobretudo, em sua linguagem: o pensamento analógico é pensamento mítico. A poesia ao dizer analogicamente toca a dimensão mítica, uma vez que

385 Citado por: RIVERA, Tânia. Guimarães Rosa e a Psicanálise: Ensaios Sobre imagem e escrita, p. 9. 386 FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: Fronteiras, Margens, Passagens, p. 64.

387 Citado por: BRAIT, Beth. Guimarães Rosa, p. 102.

388 Id. Ibidem, p. 103 e BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura brasileira, p. 430. 389 COUTINHO, Eduardo F. Tradição e ruptura na obra de Guimarães Rosa, p. 8.

a analogia poética pode remeter a um tipo de sabedoria que está por trás de suas palavras. Doutro modo, pode-se dizer que a poesia tem a capacidade de falar sobre a liberdade huma- na, por exemplo, tendo como material literário entidades míticas do tipo: heróis e deuses. Portanto, as estórias390 rosianas são espécies de fábulas (mythoi) que velam e revelam uma visão global da existência e das relações humanas. Essa visão aproxima-se de um materia- lismo religioso, quase panteísta, isto é, propenso a fundir numa única realidade a Natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo. Esse modo de ver e interpretar literariamente o mundo assume radicalmente o elemento da ambigüidade enquanto pilar hermenêutico391. Descobre-se então a mitopoética, na concepção de Bosi, a solução de Rosa para elaboração de seu romance, o caminho utilizado para conjugar a tensão real e surreal (vista em Borges) com as dimensões pré-conscientes do ser humano (James Joyce)392.

Por fim, pode-se perceber que a linguagem rosiana (seja aquela alterada ou ainda a mitopoética) não perde de vista a referência a outro modo de ver, de narrar e de situar-se no universo material e também no universo simbólico; o que cria um espaço da indagação e da busca, e da coexistência de opostos. Ratificando esses traços lingüísticos em Rosa, Coutinho afirma que:

“Riobaldo parece consciente de que a sua visão atormentada de mundo, in- flada e nutrida na incerteza, só pode expressar-se por meio de um discurso indagador, que procura e não aponta soluções, e é na busca de uma lingua- gem dessa ordem, poética, criativa, efervescente – de uma linguagem, por que não dizer, também de busca que brota límpida e fluida no momento da narração – que ele se lança em seu relato.”393

Espaço lingüístico que coloca em xeque todo tipo de lógica calcada em construções dicotômicas394. Nesse universo de busca e indagação, onde nada se afirma ou se define com clareza, reina soberanamente a ambigüidade. Portanto, é espaço vivo, uma vez que, para Rosa a “legítima literatura deve ser vida”395 e a vida humana não é “a” ou “b”; “preto” ou

390 Foi João Guimarães Rosa quem cunhou esta palavra, utilizando-a ao longo de seus textos em diversos mo-

mentos, a fim de indicar que o texto ficcional, a despeito de suas pesquisas e aspectos históricos, tem na cria- ção e apropriação mítica, por vezes mística, seu filão característico. Daí as estórias rosianas ampliarem-se em relação às histórias acadêmicas.

391 Id. História Concisa da Literatura brasileira, p. 431. 392 Id. Ibidem, p. 432.

393 COUTINHO, Eduardo F. Tradição e ruptura na obra de Guimarães Rosa, p. 8.

394 Id. Diadorim e a deconstrução do olhar dicotômico em Grande Sertão: Veredas. In: DUARTE, L. P. e AL-

VES, M. T. A. (Orgs.). Outras margens: Estudos da obra de Guimarães Rosa, pp. 38 e 39.

395 MEYER-CLASON, Curt. João Guimarães Rosa: correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-

Clason (1958-1967). Trad. Erlon J. Paschoal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p. 14.

“branco”, mas sim “mundos misturados”.