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Correspondências entre salmos e letras: Apontamentos so bre método da correspondência

por Erich Auerbach

4. Correspondências entre salmos e letras: Apontamentos so bre método da correspondência

“(...) no diálogo entre teologia e literatura, em última instância, trata-se de aclarar o mistério da existência humana.”254

Após analisar três maneiras de se relacionar teologia e literatura, tendo em vista como tais saberes realizam a leitura e a interpretação de obras literárias, chega-se ao último tópico desse capítulo. Aqui pretenderemos observar as principais contribuições de Antonio Maga- lhães e Karl-Josef Kuschel à interface que orienta essa pesquisa. Em ambos os autores há críticas severas ao modelo interdisciplinar pergunta-resposta, cuja tendência principal pere- ce-nos uma espécie de consulta teológica à(s) obra(s) literária(s). Em outras palavras, tanto para o teólogo brasileiro quanto para o alemão não há interlocução quando a teologia busca na literatura a confirmação de seus dogmas ou a ratificação das respostas teológicas que tais dogmas subentendem. Com isso, estabelece-se, grosso modo, a tentativa de Magalhães e Kuschel em superar o modelo pergunta-resposta, o qual é nítido tanto no método das leitu- ras teológicas de obras literárias quanto naquelas leituras onde os métodos teológicos são enquadramento a priori.

Waldecy Tenório chama atenção para a relação primeva que faz parte da historiografia da teologia e da literatura. Ao lembrar-se de Derrida, Tenório diz que:

“(...) a letra é sempre roubada e o Deus bíblico transmigra para a literatura profana, se esconde na poesia, se disfarça no romance e, por vezes, dá as caras no cinema. (...) Porque o Deus bíblico é esperto, deixa rastros, e isso de propósito, para não o esquecermos, para ficarmos sempre no seu encalço, nessa agonia que vitimou desde os antigos profetas até uma Simone de Be- auvoir: ‘onde está ele?’. O fato é que o sagrado e o profano se encontram na literatura, sendo a poesia a última forma de êxtase (...).”255

A percepção de rastros divinos nas obras literárias – por exemplo, da poesia da Bha- gavad-Gita até o “romance teológico” Ulysses, de James Joyce – indica que a origem tanto da teologia quanto da literatura tem a mesma data e que, especialmente nos textos poéticos, as “relações profundas” entre o sagrado e o profano nunca foram temas exclusivos de algum desses saberes. Todavia teólogos e críticos ainda estão a descobrir tais rastros nas “camadas

254 KUSCHEL, Karl-Josef. Os escritores e as escrituras: Retratos teológico-literários. Trad. Paulo Astor Soethe

et alli. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 228.

255 TENÓRIO, Waldecy. “Meu Deus, meu conflito”. Teologia e Literatura. In: Revista do Instituto Humanitas

Unisinos. São Leopoldo, 17 mar. 2008. Edição 251. p. 5. Disponível em: <www.unisinos.br/ihu>. Acesso em: 18 out. 2009.

subterrâneas” dos textos. Não obstante, Tenório alerta-nos acerca do conflito característico dessa relação. Para ele, há certa desconfiança tanto da parte da teologia para com a literatura quanto o contrário. Essa desconfiança pode desdobrar-se em batalha epistemológica pelo ser humano.

De outro modo, pode-se afirmar que ao refletir sobre o ser humano em seus textos ou teses boa parte da produção teológica e literária demonstram “ciúmes” uma da outra no que tange o falar sobre o humano. Para ilustrar isso, Tenório lança mão da imagem da “respeita- da e sisuda senhora” (teologia) e da “irreverente e louca jovem” (literatura), as quais vivem numa casa comum. De fato, certo “ciúme” é percebido quando a teologia advoga em causa própria o conhecimento e a guarda da Verdade; e quando a literatura (na pessoa de seus teó- ricos) assume teorias hermenêuticas como formas últimas de interpretação da arte literária. Quando isso acontece não existe possibilidade de interlocução, antes sim há um encontro de dois “demônios”, a saber: o dogmatismo religioso e o dogmatismo laico.256 Com esse emba- te não é profícua qualquer espécie de relação interdisciplinar, especialmente quando o con- flito tem como sujeitos dois saberes que têm mais a ver com o poético do que com o empíri- co, com a criação imagética do que com a equação matemática, com o relato257 do que com o relatório científico e com a subjetividade humana do que com a objetividade científica.

No segundo semestre de 2009, o tema da narrativa sobre Deus face à sociedade pós- metafísica foi trabalhado em um simpósio internacional na universidade Unisinos de São Leopoldo. Ao trabalhar com o tema da narrativa sobre o Deus criador, Susin aponta a insu- ficiência das linguagens científicas, mesmo aquelas que são desenvolvidas em âmbito teo- lógico, como entrave às narrativas sobre Deus. Acerca disso ele diz que:

“(...) a linguagem narrativa, com suas características míticas, tem densida- de de verdade que a ciência não alcança. É narrando que se diz o mistério. (...) a narrativa da criação, como conhecimento científico, deve saber seu lugar, o seu estatuto de verdade, sem se pretender conhecimento científico

256 Id. Ibidem, p. 6.

257 O sociólogo da religião e jesuíta Jean-Luis Schlegel é a referência para nossa compreensão de relato. Em uma

conferência na Unisinos e entrevista à revista do Instituto Humanitas, Schlegel diz que: “um relato tem por virtude ser particular. Sem dúvida se pode interpretá-lo conceitualmente, mas há nele algo irredutível, singu- lar, que resiste ao conceito, ou que não pode ser reduzido ao conceito.” Para ilustrar sua concepção de relato, o escritor radicado na França afirma que “o relato da paixão não pode de modo nenhum substituir o relato narrativo da Paixão, que traz a memória do que foi Jesus e do que ele viveu.” Durante a palestra, destacou com acerto que os relatos de Deus estão sujeitos à manipulação; com respeito a Deus é necessário ter tanto o relato e o pensamento; diante de Deus precisamos tanto do conceito quanto da narrativa. Numa espécie de correspondência. SCHLEGEL, Jean-Luis. Todos os discursos sobre Deus são possíveis e imagináveis em nossa sociedade. In: Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São Leopoldo, 14 set. 2009. Edição 308. p. 16. Disponível em: <www.unisinos.br/ihu>. Acesso em: 20 out. 2009.

e sem ansiar por buscar para si a comprovação das ciências, o que continua a gerar confusões.”258

Ao pensar teologia e literatura como linguagens humanas, o teólogo católico destaca que a narratividade é traço comum, desde as origens, da literatura e da teologia. Presentes no cotidiano de homens e mulheres de fé, as narrativas que rememoram um evento estrita- mente ou indiretamente religioso podem assumir formas literárias diversas, as quais vão desde a anedota até a proclamação. De igual modo, agnósticos ou ateus ao narrarem em seu dia a dia as aventuras amorosas ou as origens de suas convicções antirreligiosas lançam mão de distintas formas literárias. Não obstante, o que chama atenção em ambas as narrativas – de crentes cristãos e ateus – é o fato delas não esgotarem os princípios de realidade sobre os quais versam e de não se encerrarem em fórmulas literárias estabelecidas, antes sim tais narrativas estão em correspondência com diversas outras fontes de percepção da realidade humana.

Em tese, as narrativas humanas se correspondem constantemente com os substratos culturais, tanto nas dimensões sócio-econômicas e político-religiosas, os quais performam a visão de mundo das pessoas e, com isso, sua maneira de narrar. Sobre a narrativa em forma de relato e o status do relato numa sociedade pós-metafísica259, Schlegel, pensando com base em Lyotard, constata que:

“(...) os ‘grandes relatos’ (as grandes ideologias) recuam ou recuaram – não somente o ‘grande relato’ cristão da salvação, mas também os outros –, e que, ao contrário, os ‘pequenos relatos’ da salvação individual estão oni- presentes. O sagrado se torna, então, difuso e a fronteira entre o profano e o sagrado desaparece ou se torna fluido [sic].”260

A verdade das narrativas, nesse contexto, se encontra na reelaboração do sentido – nem somente teológico ou filosófico –, a partir das experiências herdadas e vivenciadas por cada pessoa em face da sabedoria literária, na qual “todos os relatos sobre Deus são possí- veis e imagináveis.” A título de ilustração, podemos trazer à tona as narrativas de criação do Tanach, recordando-nos: a) da condição de exílio; b) da inserção do povo judeu numa cultu- ra social e religiosa distintas da sua; c) do contraste com as narrativas criacionais dessa

258 SUSIN, Luís Carlos. “É narrando que se diz o mistério”. In: Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São

Leopoldo, 14 set. 2009. Edição 308. p. 33. Disponível em: <www.unisinos.br/ihu>. Acesso em: 21 out. 2009.

259 “Numa sociedade pós-metafísica (lançando mão do termo abertamente utilizado por Jürgen Habermas) não se

poderia raciocinar ou pensar em termos de essência, de princípio ou de fundamento, como tem sido o caso no pensamento ocidental desde o pensamento grego até (quase) nossos dias.” SCHLEGEL, Jean-Luis. Todos os discursos sobre Deus são possíveis e imagináveis em nossa sociedade. In: Revista do Instituto Humanitas Unisinos, p. 14.

“cultura estranha”; d) do desejo pelo sentido, que surge do embate com outras sabedorias religiosas; e) por fim, das narrativas então elaboradas e editoradas de modo a ser ensina- mento (Torah) às gerações vindouras. Nessa ordenação, nota-se que a verdade sobre a cria- ção se revela mais no desejo ansioso de rememorar e codificar tradições orais sobre o Javé criador do que em alguma experiência factual com algum ato criacional desse Deus. As cor- respondências que corporificam esses relatos não estão ligadas somente ao estritamente re- ligioso, mas apresentam uma teia complexa de interpretações que se verbalizam textualmen- te, para, por fim, serem relidas por crentes ou estudiosos que poderão, de modo difuso, en- contrar com algo que lhes fale.

Susin contribui à reflexão sobre o traço difuso dos discursos (orais ou literários) em que sagrado e profano se entrecruzam, tentando exemplificar a limitação das linguagens científicas frente à crise ecológica atual. O autor afirma que:

“(...) do ponto de vista ético e estético, ao lado do discurso religioso, a lite- ratura das grandes narrativas da criação levam [sic] a posturas éticas que se tornaram urgentes em tempos de crise ecológica, tão ou mais necessárias do que as ciências.”261

Elaborar discurso, conversar ou, simplesmente, narrar a vitalidade ou a precariedade da vida estando lado a lado é o que ilustra a tentativa de refletir teologia e literatura em cor- respondência. As “grandes confusões” que se dão quando esses saberes proclamam-se supe- riores epistemologicamente são ainda presentes no âmbito das pesquisas formais, mas nunca foram impedimento para o surgimento de narrativas ou estórias significantemente verdadei- ras. Talvez aqui resida a maior “fraqueza” do denominado método da correspondência, uma vez que se compreenda o método como o caminho exclusivo de conhecimento duma reali- dade humana ou terrestre, explicada e justificada num dado sistema. A correspondência en- tre teologia e literatura se verbaliza nos textos e na trocas simbólicas do cotidiano humano narrável. Assim se compreende a possibilidade de encontro com o mistério ao narrar. A es- cuta precisa ser da teologia à literatura e também o contrário, as questões devem ser estabe- lecidas depois da escuta obedecendo a mesma dinâmica e, depois disso, talvez as respostas conseguissem ser entrecruzadas e colaborativas. Todavia, parece-nos que na tentativa de responder sobre “onde Ele está”, “como veio à lume a vida Terra” ou “o que deve-se fazer

261 SUSIN, Luís Carlos. “É narrando que se diz o mistério”. In: Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São

Leopoldo, 14 set. 2009. Edição 308. p. 33. Disponível em: <www.unisinos.br/ihu>. Acesso em: 21 out. 2009. O que está em itálico é grifo meu.

para cuidar da vida na Terra”, teólogos e literatos (mas sobretudo teólogos) esqueceram-se de escutar e de questionar um ao outro lado a lado.

4.1. Ouvindo os escritores: A analogia estrutural como método de leitura te-