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Antonio Manzatto, em “Teologia e Literatura: Reflexão teológica a partir da antropo- logia contida nos romances de Jorge Amado”, move-se em direção da literatura no intuito de descobrir nesta, vantagens que enriqueçam o que-dizer teológico. Para isso, Manzatto aponta um locus comum e central entre teologia e literatura, a saber, o antropocentrismo radical, presente na arte literária e no teologizar63. Segundo o autor, esta interseção é o que mais aproxima a teologia da literatura, uma vez que “a teologia é uma ciência e a literatura uma arte e, portanto, as duas são independentes uma da outra”64.

A partir daí, Manzatto analisa a literatura, com enfoque especial sobre os romances amadianos, em especial Tenda dos Milagres, para depois analisar a teologia e, ao final da primeira parte, aproximar teologia e literatura. Julga-se de grande importância a elucidação que o escritor intentou em sua obra, ao mostrar o que ele compreende por teologia e por literatura.

O que, todavia, deveria ser um movimento dialógico entre teologia e literatura, com um horizonte comum e central – a questão antropológica nos romances amadianos – torna- se movimento unilateral, no qual a teologia vê na literatura elementos importantes para seu que-dizer e, com isso, aproxima-se desse saber para usar seus recursos em benefício pró- prio. Isso se dá principalmente porque a literatura tem uma linguagem muito mais penetran- te na sociedade do que a linguagem teológica, de forma mais clara, é desta maneira que Manzatto se expressa sobre essa característica e especificidade literárias:

“(...) a especificidade que distingue a literatura das ciências e das outras ar- tes, e que contribui na pesquisa teológica é sua capacidade de refletir qualita- tivamente e em profundidade o ser humano, através da palavra. (...) Mais a- inda, a literatura atinge o coração do homem. Nesse sentido, seu poder de apelo e indignação é muito maior que o das ciências”.65

Essa unilateralidade reside no fato de, a despeito do característico antropocentrismo e da riqueza da linguagem literária, a teologia ter o dever vocacional e intelectual de continu-

63 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos roman-

ces de Jorge Amado. São Paulo: Edições Loyola, 1994. pp. 7, 69 e 73.

64 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos roman-

ces de Jorge Amado, p. 13.

ar a elaborar seus pressupostos a partir do prisma científico, ou seja, a partir de seu próprio locus, o qual se analisa e exprimi em linguagem conceitual66.

Com isso, mesmo reconhecendo que a teologia não pode abrir mão do seu caráter mis- sionário – o qual seria propício espaço à difusão da linguagem literária67 –, Manzatto insiste na característica científica do labor teológico. Tal insistência ocorre, porque o teólogo en- tende o antropológico como propriedade do teológico e não como uma das características fontais do mesmo, que é, por outro lado, como ele compreende o antropológico em relação à literatura. Para elucidar a compreensão do escritor, leia-se:

“Qualquer obra literária, porque representa uma experiência humana, pode então ser usada teologicamente por causa de seu caráter antropológico. (...) A antropologia, por sua vez, revela-se um lugar privilegiado para a teologia. (...) A literatura torna-se, então, um verdadeiro ‘locus theologicus’”.68

Aqui se dá, na avaliação desta pesquisa, o grande entrave que Manzatto encontrou pa- ra estabelecer um diálogo entre teologia e literatura. Diferentemente da crítica de Magalhães e Eli Brandão69, os quais focam o problema da cientificidade do fazer teológico expresso por meio da opção teológica de Manzatto70; para nós esse entrave se dá, pois, mesmo admi- tindo a significativa contribuição que uma reflexão interdisciplinar geraria, a teologia foi compreendida como superior ao locus que a ligaria em equivalência com a literatura. Em outras palavras, enquanto a literatura é constituída pelo antropológico, a teologia é constitu- idora do antropológico. Trata-se de uma lógica de pensamento que perpetua a abordagem

66 Id. Ibidem, p. 91.

67 Em vários momentos, principalmente após analisar as contribuições da ficção e da poesia, Manzatto reco-

nhece naquela o poder antecipativo e criativo, os quais ele relaciona com mensagem cristã do Reino, e nesta o poder do paradoxo, que serviria à comunicação da experiência mística da fé, uma vez que “a poesia existe para comunicar”. Id. Ibidem, pp. 75-78.

68 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos roman-

ces de Jorge Amado, p. 73.

69 MAGALHÃES, Antonio. Deus no espelho das palavras: Teologia e literatura em diálogo, pp. 83-89; Id.

Notas introdutórias sobre teologia e literatura. In: MAGALHÃES, Antonio (org.). Teologia e Literatura, pp. 30-38 e SILVA, Eli Brandão da. O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano como re- velação poético-teológica da esperança: Hermenêutica transtexto-discursiva na ponte entre teologia e litera- tura, pp. 41-49.

70 Aplicando o método da teologia da libertação é que Manzatto tenta aproximar a literatura da teologia. O

escritor afirma que a “teologia da libertação exprime-se por obras mais próximas da literatura que a teologia conceitual”. Id. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado, p. 88. É justamente neste ponto que Magalhães e Eli Brandão anotam a maior fraqueza de Manzatto, uma vez que “sua opção por uma teologia mediada pela ciência e sua conseqüente definição do que é e de quem faz teologia, o conduz à limitação do uso da literatura apenas como lugar teológico”. Id. O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano como revelação poético-teológica da espe- rança: Hermenêutica transtexto-discursiva na ponte entre teologia e literatura, p. 49.

pergunta-resposta, em outras palavras, a teologia faz uso da literatura para melhor conhecer e poder responder às perguntas da realidade71.

Além disso, ao tratar da realidade em termos literários, especialmente da realidade fic- tícia e da realidade na linguagem poética, Manzatto deixa outra pista sobre sua forma de abordagem, que privilegia em muito a teologia frente à literatura. O que parece incomodar o escritor é que:

“Mesmo que na questão da verdade tenha-se o problema de sua adequação ao real, ainda assim a ficção guarda seu interesse, pois vimos que a literatura também é lugar para o real desvendar-se, não pela verossimilhança, mas pela referência. Trata-se da duplicação do real, uma alusão indireta e simbólica ao real. (...) O homem é um ser capaz de falar do que não existe ou ao menos do que não existe no momento. É aí que o homem revela-se capaz de criação, de invenção, de sonho, de utopia. (...) Trata-se de afirmar a necessidade de uma interação dialética entre o mundo real e o mundo imaginário.”72

Manzatto compreende como problema a abordagem que a literatura de ficção faz da realidade, do real. Seria um problema para a teologia, uma vez que, na concepção do teólo- go católico, “o homem [sic] não está condenado a viver em contradições, portanto não exis- te dupla verdade, mas sim aproximações fragmentárias da verdade”73.

O perigoso horizonte, no qual o real é ambíguo (paradoxo nas palavras do autor), pa- rece ameaçar o teologizar e suas demandas eclesiásticas e dogmáticas. Por conta desta abor- dagem teológica, para o teólogo o problema divino já tem a sua resposta, por meio da tradi- ção da Igreja ou do Magistério, enquanto o problema humano é mediado pela literatura. Sendo assim, fica claro que a teologia, no caso de Manzatto a teologia da libertação, já tem as respostas e soluções estabelecidas.74 Destarte, não há interlocução.

Todavia, Manzatto segue adiante e apresenta a solução, ou melhor, a resposta ao peri- goso horizonte do ambíguo: a literatura, em especial o romance, tem sua relevância estrita- mente veiculada ao fato de se constituir em “um chamado à transformação do real, para que ele se torne melhor e mais belo.”75 É justamente neste ponto que a teologia se afasta da lite- ratura, pois, enquanto a linguagem literária é linguagem de ambigüidades (como já vimos

71 Id. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado,

p. 360.

72 Id. Ibidem, pp. 74 e 75. O que está em negrito é grifo meu.

73 MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos roman-

ces de Jorge Amado, p. 61. O que está em negrito é grifo meu.

74 MAGALHÃES, Antonio. Notas introdutórias sobre teologia e literatura. In: MAGALHÃES, Antonio, Teolo-

gia e Literatura, p. 37.

75 Id. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado, p.

no caso da poesia especificamente) e assim faz questão de se expressar76, a linguagem teo- lógica deve ser a linguagem da conversão/transformação do real, onde quem dita as regras sobre o modus vivendi é o saber teológico. Com tal pensamento estabelecido para as rela- ções interdisciplinares, justifica-se sobremodo o tipo de atitude hermenêutica que até aqui se analisou, a saber: a leitura teológica de obras literárias. Desta maneira, se estabelece uma relação unilateral de segregação, visto que uma (a teologia) é a que interpreta e a outra (a literatura) é o objeto de análise77. Numa espécie quadro onde a teologia é o cientista de branco e a literatura é o ratinho branco.

2.2. Literatura como “um campo fértil”

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: A perspectiva teológico-literária