• Nenhum resultado encontrado

Nesse espaço textual tentar-se-á indicar a linguagem como lugar e eixo hemernêutico privilegiado à interpretação teológico-literária da obra rosiana em questão. A escolha da linguagem como locus interpretativo não se dá a esmo, antes sim essa escolha se baseia na centralidade que linguagem tem para o escritor mineiro e para o que-dizer teológico. No caso do escritor, Fantini afirma que:

“Rosa postula, ‘por elementar patriotismo’, o dever de restaurar a ‘língua’, no seu entendimento, o único instrumento capaz de dar dignidade à nossa literatura. Seu programa, (...), é começar pela raiz, para assegurar que a ‘nossa’ literatura recupere a seiva e o viço que ele identifica na linguagem de escritores como Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto.”354

Em GSV, a linguagem não é só um meio ou um veículo das mensagens profundas do artista, antes sim a linguagem é o campo da experimentação para o fazer literário. O cuida- doso trato da linguagem demandava de J.G.R. debruçar sobre uma única palavra durante dias355, entretanto esse trato era o que explicitava a própria compreensão daquilo que é lite- ratura. Sendo assim, como escrever literatura sem repensar, retrabalhar e distender a lingua- gem? Rosa não usa a linguagem de modo corrente ou referenciado em léxicos fixos. Para ele, é na linguagem que a arte encontra seu paradoxo espaço de realização e irrealização. O escritor é cônscio que o absoluto se realiza e se destrói em um momento fugidio. Segundo

353 FINAZZI-AGRÒ, Ettore. Um lugar do tamanho do mundo: tempos e espaços de ficção em João Guimarães

Rosa, p. 53.

354 FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: Fronteiras, Margens, Passagens, p. 63.

355 Fantini destaca uma frase de J.G.R. sobre o cuidadoso trabalho de análise, desconstrução e recriação dum

texto literário. Ele diz: “Uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias.” Id. Ibidem, p. 48.

Duarte, em Rosa “a arte literária falseia, não por mentir, mas por falar do que não sabe e do que não pode ser dito, em seu registro constante do ‘estar a morrer’.”356

Por outro lado, a teologia reconhece que a linguagem humana excede os registros do saber, do poder e da ação onde a confinaram a ciência, a técnica, uma filosofia abstrata e uma prática política de curto prazo. Para a teologia, que carrega em sua raiz etimológica o logos, a linguagem “deve possuir modos onde se exprima a existência e a esperança, onde o homem [sic] não disponha mais da linguagem, mas a escute.”357 Quelquejeu propõe-se a refletir sobre “algumas perguntas aos que ‘escrevem’ teologia”358 como maneira de se lan- çar sobre a interface teologia e literatura. O pano de fundo de sua análise parte do pressu- posto que “o império do instrumento, a dominação da técnica e o discurso da ciência” escle- rosaram a escuta poética, o que, por sua vez, “acarreta consigo a errância existencial, a as- censão do sem-sentido e o eclipse dos deuses”359. O terror de tal constatação toma conta de teólogos/as que, interessados em se aproximar de outras expressões de conhecimento do humano – como as artes plásticas (p.ex.: Guernica para Tillich) ou como a artes literárias (p.ex: Arguedas para Gutierrez) – vêem-se obrigados a “falar sobre Deus(es)” dentro do marco dum tipo de linguagem de potência imaginativa tão estreita. Ao argumentar sobre as funções da linguagem360, tendo como base o pensamento de Roman Jakobson e a reflexão sobre a natureza mito-simbólica da linguagem de Cassirer361; Quelquejeu adverte que para fazer teologia, especialmente em relação com a literatura, deve-se questionar a capacidade da linguagem racional do conceito claro e distinto, como modo único ou privilegiado da linguagem que se diz teológica. Para compreender melhor sua crítica observa-se:

“A vertigem do homem ocidental pela abstração e pela objetivação, se de lado permitiu o domínio da produção das significações e com ele notável progresso do saber científico e do conhecimento técnico, de outro restrin-

356 DUARTE, Lélia Parreira. A aventura irônica de Rosa. In: Língua Portuguesa. Ano II, nº 24, 2007, p. 46.

Outra crítica de GSV diz: “Todo o romance é, por assim dizer, carregado por uma voz que declara sua inten- ção de comunicar algo, sem, no entanto, saber exatamente o quê.” ROSENFIELD, Kathrin H. Grande Ser- tão: Veredas: Roteiro de leitura, p. 18.

357 JOSSUA, Jean-Pierre e METZ, Johann Baptist. Editorial: Teologia e Literatura. In: Teologia e Literatura.

Concilium 115, p. 4.

358 Referimo-nos ao subtítulo do artigo do dominicano francês, do qual nos apoiamos para introduzir a reflexão

sobre a linguagem teológica no esteio da interlocução teológico-literária: QUELQUEJEU, Bernard. Quando a escrita é questionada...: Algumas perguntas aos que “escrevem” teologia. In: Teologia e Literatura. Concili- um 115, pp. 54-64.

359 Id. Ibidem, p. 55.

360 São seis as funções da linguagem, as quais existem habitualmente juntas, mas também se manifestando parti-

cularmente de acordo com a função comunicativa específica que exercem no dado “momento comunicacio- nal”. As funções são: a) expressiva; b) conativa; c) fática; d) metalingüística; e) referencial ou cognitiva; f) poética. Id. Ibidem, pp. 56-58.

giu todo o leque da linguagem à única forma canônica: a forma lógica. O homem ocidental (...) viu nascer nele uma crescente surdez (...) a qualquer outra linguagem a não ser a da ciência ou da técnica.”362

O teólogo e filósofo francês não defende uma anarquia lingüística, todavia ressalta que as “linguagens do saber” (linguagem da ciência e da técnica) não devem monopolizar os ouvidos daqueles que refletem e falam teologicamente. Sobretudo, deve-se escutar a “lin- guagem da existência”. Esse tema alude à interpretação feita por Paul Tillich da Guernica, de Picasso, em Aspectos existencialistas da Arte moderna. Segundo o teólogo, essa obra de arte “mostra a situação humana sem qualquer cobertura.”363 Ressaltando o horror da história que envolve a cidade de Guernica e pontuado o protestantismo como o “olhar a situação humana em sua profundidade de alienação e desespero”; Tillich vê nessa tela “estilo religio- so em um sentido intenso e profundo.”364 Desse ponto de vista, a Guernica expressa-se365 numa linguagem existencial profunda, ou melhor, a tela fala dos aspectos cindidos da expe- riência humana diante da extrema violência (o bombardeio aéreo). Fala do existir humano nessa condição limite, linguagem que expressa horror e também revela-nos horizontes de sentido.

Com isso, a “linguagem da existência” é um modus de comunicar, cf. Quelquejeu, “ú- nico que permite unir as profundezas míticas do ser às altitudes simbólicas e espirituais do espírito”. Aqui se anota um traço com certa facilidade, a saber, a ambigüidade da linguagem da existência. Mesmo sem se referir a esse termo diretamente, o teólogo dominicano reflete sobre um tipo de linguagem que se materializa (elemento ‘a’) na comunicação imanente e, ao mesmo tempo, se prolonga infindavelmente na recepção subjetiva (elemento ‘b’). Ora

362 Id. Ibidem, p. 63.

363 TILLICH, Paul. Aspectos existencialistas da arte moderna. In: TILLICH, Paul. Textos selecionados. Trad.

Eduardo de Proença. São Paulo: Fonte Editorial, 2001. p. 40. A interpretação tillichiana de Guernica se situa no “nível existencialista”, ou melhor, diz respeito às obras de “estilo religioso e conteúdo não-religioso”. Em obras como as de Cézanne, Tillich vê “incorporado o próprio poder ser”. Por conta disso, o escritor busca “observar dentro do profundo da realidade” inscrito nas telas. Uma vez que elas são a “tentativa de ver os e- lementos da realidade como poderes fundamentais do ser, dos quais a realidade é constituída.” Id. Ibidem, pp. 38 e 39.

364 TILLICH, Paul. Aspectos existencialistas da arte moderna. In: TILLICH, Paul. Textos selecionados, p. 41.

Calvani lança mão do referencial tillichiano, a fim de se analisar aspectos substanciais da religião de algumas músicas centrais da MPB. Em sua tese doutoral, Calvani indica-nos qual é a tarefa da teologia da cultura ao dizer que: “(...) tarefa da teologia da cultura, que tem, portanto, o dever de identificar o conteúdo religioso ou a substância religiosa discernível em todas as esferas e criações da cultura. Assim a teologia da cultura é con- cebida como um método de aplicação universal para averiguar em todas as manifestações culturais o Incon- dicional nelas ativo.” Ver: CALVANI, Carlos Eduardo B. Teologia e MPB. São Paulo: Eidções Loyola e São Bernardo do Campo: UMESP, 1998. p. 47.

365 O termo expressão foi utilizado tendo em vista sua relevância no pensamento tillichiano. Segundo Calvani:

“Todo raciocínio de Tillich gira em torno da palavra ‘expressão’. Para ele, a arte é um meio de expressão que se diferencia da filosofia e da religião e lhe confere um caráter peculiar.” Id. Ibidem, p. 77.

aquele que escreve teologia, ao menos em perspectiva cristã, versa sobre uma “palavra vi- vente” ou um “verbo encarnado” (con-fusão dos elementos ‘a’ e ‘b’). Em outras palavras, conforme Quelquejeu:

“A linguagem teológica, tal como linguagem cristã, provoca em primeiro lugar, como o Verbo do Evangelho, o abalo do ser. Ou seja, exige a voz do paradoxo, a voz do poema.”366

Mais do que encerrar sua fala em um paradigma cristológico, o teologizar se arvora em direção à condição humana exodal367, mutante e híbrida. Com isso, “a voz do parado- xo/poema” (ambigüidade) é condição paradigmática ao abalo do ser. Mais do que verbalizar declarações canônicas, o que-dizer teológico diz sobre mistérios invisíveis e paraísos, coisas que a imaginação artística transformou em pintura, escultura e versos368. Mais do que expli- cação do mundo, a linguagem teológica versa sobre habitar o mundo, ora celebrando a pre- sença dos deuses ora lamentando o abandono da assembléia celeste pelos deuses. São essas as condições que se refletem na escritura sobre os deuses, os demônios e os anjos, em textos literários – canônicos ou não. Caso se reconheça o pensamento teológico como aquele que reflete e expressa (oral ou escriturariamente) “o encontro paradoxal entre o êxodo humano e o advento divino”369, não se pode abrir mão da ambigüidade como elemento constituidor duma linguagem teológica em declarada relação com a literatura. Especialmente, quando lidamos com uma escritura que é avessa a tudo o que se apresenta como fixo ou natural, como se vê na linguagem rosiana. É pela vida da linguagem que Guimarães Rosa busca fa- zer falar a poiesis que habita o cerne da linguagem, uma vez que:

“O idioma, para Rosa, ‘é a única porta para o infinito, mas infelizmente es- tá oculto sob montanhas de cinzas’. Daí a necessidade de depurá-lo, de re- vitalizá-lo, violando constantemente a norma e substituindo o lugar-comum pelo único, a fim de que ele possa recobrar sua poiesis originária e atingir o outro de maneira eficaz. Para Guimarães Rosa, ‘somente renovando a lín- gua é que se pode renovar o mundo’”.370

366 QUELQUEJEU, Bernard. Quando a escrita é questionada...: Algumas perguntas aos que “escrevem” teologia.

In: Teologia e Literatura. Concilium 115, p. 64.

367 Para Bruno Forte a reflexão crítica da fé (o teologizar propriamente dito) deve unir o histórico e o memorial,

o já e o ainda não, a palavra que se encarna e a palavra que se espera. Doutro modo, a reflexão cristã “deve unir o consciente assumir o presente à obediente memória da Palavra de Deus.” FORTE, Bruno. Teologia em diálogo: Para quem quer e para não quer saber nada disso. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Edições Lo- yola, 2002. p. 55.

368 ALVES, Rubem. Variações sobre a vida e a morte ou O feitiço erótico-herético da teologia: A teologia e a

sua fala. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 16

369 FORTE, Bruno. Teologia em diálogo: Para quem quer e para não quer saber nada disso. p. 61.

370 COUTINHO, Eduardo F. Tradição e ruptura na obra de Guimarães Rosa. São Leopoldo: UNISINOS, 2007.

Doravante, tentar-se-á analisar ambas as linguagens – a da Rosa e a da Teologia – no intuito de ressaltar a natureza assemelhada das mesmas. O leitor de Rosa, assim como o leitor de textos teológicos, aventura-se pelos fios dos textos levantando outras e maiores perguntas. Com isso, se configura um elo (na cadeia leitor e texto) que se projeta para além das páginas do livro. Projeção que se dá na vida humana e, nascendo nela, ad infinitum371.