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Começar o último capítulo desta pesquisa refletindo a respeito da ambigüidade não é casual. Antes sim, se quer indicar que a ambigüidade deve estar presente tanto no plano da leitura quanto da interpretação do romance rosiano. Para tanto, escolhemos algumas ima- gens de Deus (“a mais pura ambigüidade”503) no romance, a fim de ouvir o que o texto tem a dizer sobre as mesmas.

502 Algumas das reflexões desenvolvidas nessa parte final da dissertação foram extraídas de: FONSECA, Hugo.

Rastros de Deus segundo a íris riobaldiana em Grande Sertão: Veredas. In: VV.AA. Deuses em poéticas: Es- tudos de Literatura e Teologia. Belém: UEPA; UEPB, 2008. pp. 241-261.

503 SCHULTZ, Adilson. “Ser-tão home”: a ambigüidade masculina em Grande Sertão: veredas. In: Gênero,

Das mais conhecidas obras sobre Grande Sertão: Veredas, As formas do falso, através de cara análise da autora, ratifica a proeminência da ambigüidade enquanto princípio orga- nizador da obra aqui analisada. A autora se expressa sobre tal princípio como “a coisa den- tro da coisa”, o que enfoca o padrão ambíguo recorrente na obra rosiana. A fim de esclare- cer tal expressão, cunhada pela autora, basta atentar para a análise que a mesma faz:

“Nas linhas gerais tem-se o conto no meio do romance, assim como o diá- logo dentro do monólogo, a personagem dentro do narrador, o letrado den- tro do jagunço a mulher dentro do homem, O Diabo dentro de Deus.”504

Galvão lança mão do clássico euclidiano, Os Sertões, para começar a análise do ro- mance, onde ela contrapõe a situação do fazendeiro e do homem livre505. A partir daí aborda os temas, ou melhor, as matérias vertentes (conhecida expressão de Rosa) encontradas do romance. Situa-o geograficamente e destaca a importância do gado, que é, freqüentemente, associado ao próprio jagunço. Com isso, a autora rememora dados histórico-econômicos para embasar sua hipótese e associá-la ao caráter ordenador primeiro, mencionado anterior- mente.

Destaca-se que Galvão situa seu foco investigativo e o cerne do romance dentro das correntes histórico-econômicas e literárias do país, especialmente, do espaço que ocupa o sertão de Guimarães Rosa506. Distingui dois níveis e analisa-os no espelho de Grande Ser- tão:Veredas, a saber, a tradição letrada e a tradição popular sertaneja. A partir daí dialoga com tais tradições e suas aparições no romance. Um ponto destacado da primeira parte do livro é o problema da miséria. Seja na análise da crítica ou na pena rosiana, a miséria apare- ce como ameaça institucional às regras e padrões estabelecidos pela sociedade rica e intelec- tual. Rosa o diz da seguinte maneira: “De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo!” 507

A plebe rural é, portanto, o desequilíbrio social, a fonte do caos, no entanto não é es- tigmatizada como um “tumor”, nem pela análise de Galvão e nem pela boca de Riobaldo. Antes, tal grupo desestabiliza o estapafúrdio ideal burguês intelectual de ordenação e equi- líbrio que começa a partir do raciocínio positivista e se desdobra nas relações humanas. O pobre sertanejo é, na pessoa do protagonista-narrador, aquele detentor de sagaz capacidade intelectual, zeloso com as intequietaçoes metáfisicas e herdeiro de duma ética “civilizada”;

504 GALVÃO, Walnice Nogueira, As formas do falso, p. 13. 505 Id. Ibidem, p. 23.

506 Id. Ibidem, pp. 28-34. 507 Citado por: Id. Ibidem, p. 67.

todavia também é o jagunço estuprador, sedento de vingança e guiado por prazeres lascívos e homossexuais. Sendo assim, delineia-se um espelho que reflete, profundamente, os problemas sociais, econômicos, espirituais e éticos da sociedade do século XX508.

A partir deste passo, quero falar mais de minhas impressões sobre o que nomeio de o “Deus rosiano”. Como meu objetivo não foi exaustivo, antes sim introdutório, decidi mudar a forma de apresentar o texto, cuja característica até aqui foi de construção impessoal com o auxílio do pronome “se” ou “nós”– indefinidores do sujeito. Daqui adiante, lançarei mão do arriscado “eu”– que revela o sujeito – para discorrer sobre aparições de Deus em Grande Sertão: Veredas. Isso só será possível, porque a leitura e releitura de GSV me ajudaram a descobrir – por meio da interface Teologia e Literatura – que na fala e na vida de persona- gens literários, eus–poéticos, o cotidiano e as experiências humanas são irremediavelmente ambíguas.

Sendo assim, refletirei fundamentalmente acerca do que me foi falado por Riobaldo. Uma vez que é na anamnesis riobaldiana que encontrei a pista para o diálogo entre teologia e literatura. De certa forma, isso já foi apontado como aspecto geral da linguagem rosiana e da linguagem teológica, todavia o que programei para esse momento do texto é destacar como a ambigüidade da linguagem teológico-literária (teopoética) apresenta as imagens de Deus no romance. Galvão aponta esta característica da linguagem do seguinte modo:

“Se, por um lado, o falar sertanejo permite e justifica que o livro se arme como uma discussão metafísica sobre Deus e o Diabo, aceita-se essa discus- são porque esses são conceitos que estão ao alcance do narrador-personagem para efetuar a tentativa de demarcar os limites entre a liberdade humana e a necessidade imposta pelo sistema de dominação. Mas, por outro lado, o con- tingente erudito da linguagem usada pelo escritor permite e justifica que Deus e o Diabo sejam, ao fim e a cabo, concepções muitos mais requintadas e que derivam tanto de Heráclito como do budismo.”509

Apesar de discordar da concepção de Galvão, a qual indica “ao fim e a cabo” Deus e o Diabo como figuras “mais requintadas na fala de Heráclito e do budismo”, atribuindo assim um valor superior e definitivo na obra de Rosa às idéias de Deus e do Diabo a partir da eru- dição em detrimento da influência sertaneja; a escritora e crítica literária nos permite entre- ver que, na construção da obra rosiana, a imagem de Deus está em relação dialógica com a imagem do Diabo e que ambas as imagens são perpassadas pelo duplo enriquecimento do

508 Galvão faz uma importante afirmação para os estudos dos aspectos religiosos do romance, ao dizer que:

“Guimarães Rosa constrói uma visão apocalíptica com as virtualidades da miséria”. Toda essa discussão en- contra-se em: GALVÃO, Walnice Nogueira, As formas do falso, pp. 51-68

erudito e do popular. É com tais pistas, observadas nas próprias “aparições” de Deus e do Diabo, que o diálogo se construiu, ou seja, o romance rosiano é aquele que dita o diálogo entre teologia e literatura. Por conta disso, trazendo à memória o perfil provisório do falar teológico e literário, meu intento se delineia como ato indicação e suspeita, não de determi- nação e encerramento. Esse delineamento em suspense não é algo que se justapõe arbitrari- amente à fala riobaldiana. Ao contrário, podemos perceber nas palavras do protagonista- narrador a confirmação da pertinência desse delineamento. Assim ele nos diz:

“Eu sei que isto estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coi- sas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. (...) Assim, é como conto. Antes con- to as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe fa- lar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe.”510

Com isso, destacarei três áreas de trabalho para esta seção final do texto: a) reflexão sobre o que é religião na perspectiva literária de Rosa; b) apresentação de textos carregados de imagens de Deus, seguida de análise introdutória destas imagens com o auxílio da crítica literária, do próprio autor e da reflexão teológica; c) apresentação e análise de três eventos que denotam, no contar de Riobaldo, o caráter ambíguo da morte. A experiência da morte é vivenciada pelo próprio protagonista-narrador, se revela como tema da provisoriedade hu- mana e, por conseguinte, traço fundamental à reflexão do porquê Deus é ambíguo na íris riobaldiana.