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Pretende-se apontar brevemente algumas características deste romance, o único escrito por Rosa. O romance se confunde com Riobaldo, que quer passar a vida a limpo, mesmo que de maneira confusa ou desordenada332. Como contador de estórias, ele emenda um causo no outro, exigindo sempre a atenção do interlocutor. No entanto, o poder corrosivo do tempo passado, confunde os acontecimentos na mente do narrador, impedindo-o de separar o falso do verdadeiro, o vivido do imaginado. O que imprime no texto o signo do duplo, da memória em mutação. Finazzi-Agrò destaca que essa releitura, pronunciada por Rosa através das re-

332 “(...) que esta minha boca não tem ordem nenhuma. Estou contando fora, coisas divagadas”. ROSA, João

memorações de Riobaldo, é fundamental para compreensão da ambigüidade do romance ao dizer que:

“A releitura, sendo uma espécie de espelho virado para o interior do discur- so, não permite, mais uma vez, sair da espiral do texto, desvendar, do lado de fora, aquilo que está escondido nele, mas reafirma apenas sua ambigüidade (...).”333

Com isso, a opção pela narrativa ininterrupta e pelo traço memorialista presentes no tex- to somam-se a pequenos contos em distribuição caótica das seqüências e por enxertos de lem- branças que “lembram outras estórias”334. A releitura de Riobaldo não encerra aquilo que se passou nas suas aventuras, desde a infância paupérrima à vida de fazendeiro ex-jagunço. An- tes sim, propõe de modo entrecruzado e constantemente ressignificado distintos planos da existência do protagonista-narrador. Segundo Brait, o romance pode ser dividido em três pla- nos:

1 O plano da vida de jagunçagem, que permite rastrear os elementos geoeconômico- político-sociais do sertão;

2 O plano das reflexões, criado pelos temores de Riobaldo-velho, revendo e avaliando o passado e sua própria vida;

3 O plano mítico, centrado a partir das experiências religiosas de Riobaldo, expresso nos conflitos representados pelas forças da natureza e sustentados pela marca fontal da ambigüidade.335

O que não se pode esquecer é que esses e outros planos de análise, possíveis de se en- contrar no universo construído por Riobaldo, desenrolam-se no sertão, que é o espaço- síntese, lugar onde as ações humanas e os acontecimentos inexplicáveis são refletidos e re- fratados. Segundo Macedo:

“O sertão funciona como uma espécie de prisma que percebe a luz das ações humanas. Em lugar de apenas refleti-las, porém, decompõem-se em mil fa- cetas dos medos e anseios do homem [sic]. Visto desta forma, o sertão é um elemento organizador do livro.”336

Outro importante personagem deste extenso romance é o jagunço. Muitos são os que se destacam ao longo do texto, porém o que vale comentário é o papel do jagunço, o que

333 FINAZZI-AGRÒ, Ettore. Um lugar do tamanho do mundo: tempos e espaços de ficção em João Guimarães

Rosa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. p. 45.

334 BRAIT, Beth. Guimarães Rosa, p. 48. 335 Idem

este denota com sua aparição. Ao contrário do que se poderia julgar, o jagunço não é um criminoso vulgar, ele, em suas ações ditas criminosas, demonstra laços com a honra e a vin- gança. O jagunço, deste modo, transita no caminho duplo que o pinta como cavalheiro, das prosas medievais, e como assassino sanguinário, que se compraz com a violência gratuita. Neste outro quadro, Galvão aponta para o papel que os jagunços tinham na sociedade serta- neja:

1. Garantir a segurança e o limite das propriedades dos fazendeiros (exercício de grilar terras);

2. Eliminar adversários;

3. Organizar eleições e dirigi-las por meio da coerção (voto de cabresto);

4. Desencadear contendas ou reprimi-las de acordo com o ordenado por fazendeiros- patrões ou pelo líder do bando.337

A título de ilustração do que se escreveu sobre a caracterização desses personagens tão importantes no romance, Rosa/Riobaldo desenha o ser-jagunço da seguinte forma:

“Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota – quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim?”338.

Grande Sertão: Veredas mostra uma espécie de pessoas que, num território onde real e surreal estão em conjugação perene, exercita a violência em nome do poder privado (pro- prietário de terras), porém não deixa de, a despeito do que o caracteriza fundamentalmente, buscar significações para a labuta sangrenta do cotidiano. Alguém que não abandona a fé e que não esquece totalmente a ternura. Esse é o jagunço matador e amigo339, religioso e vin- gativo, o letrado e analfabeto340, o desordeiro341 e o pai de família. É o próprio espelho de Riobaldo, que não só reflete, mas também distorce, recria imagens e realidades:

“Obra de opor, por medo de ser manso, e causa de ser respeitado. Todos tre- tam por tal regra: proseiam ruins, para mais e valerem, porque a gente ao re- dor é duro dura. O pior, mas, é que acabam, pelo mesmo vau, tendo de um dia executar o declarado, no real. (...) Mas apraz é que o pessoal, hoje em di- a, é bom de coração. Isto é, bom no trivial. (...) Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais de matar gente... Eu, já estou velho.”342

337 GALVÃO, Walnice N. Guimarães Rosa, p. 32

338 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas, p. 72. 339 Id. Ibidem, p. 196.

340 Id. Ibidem, p. 129.

341 Id. Ibidem, p. 189. Aqui Riobaldo relembra de algumas mulheres que ele estuprou. 342 Id. Ibidem, p. 38.

Neste ponto deve-se trazer à discussão o terceiro e principal elemento constitutivo do romance, a saber, Diadorim. Alguém que extrapola as características do próprio jagunço de Rosa. Diadorim é a própria encarnação da ambigüidade343. Personagem central ao longo do texto, Diadorim aparece, ainda bem cedo na vida de Riobaldo, mais precisamente na época da infância344, e exerce uma influência decisiva na vida do protagonista narrador. Ele mes- mo reconhece que: “As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim.”345

Este personagem é o duplo, o ambíguo, porque é a mulher travestida de jagunço vin- gativo. Representa a vida, a morte e o renascimento para Riobaldo, que enxerga o amigo como se fosse um amor proibido e, em paralelo, como se, além do amor, ela carregasse o ódio, convivendo com ambos os sentimentos: “E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no mais, não se alterava.”346

Riobaldo segue o signo de Diadorim, segue nessa sua “neblina”347 que o reverbera e o faz descobrir que o universo do sertão (elemento organizador geral e transcendente) e dos jagunços (elemento organizador particular e imanente), constituem o seu universo, ou me- lhor, constituem sua própria vida, em todos os desdobramentos desta, mesmo quando dela se está “apenas” rememorando. Destarte, pode-se dizer que, assim como Riobaldo é jagunço e professor348, é pactário e cristão, é líder e liderado; Diadorim é homem e mulher, é amor e ódio349; o sertão está em toda parte e dentro da gente350, é bom e criminal351, é certo e incer- to. Grande Sertão: Veredas é uma epopéia352 do ambíguo. Aqui não somente se debate so- bre a justificativa da centralidade desse romance para nossa reflexão, mas também para toda escritura rosiana. Nesse sentido, pode-se dizer que Grande Sertão: Veredas é a opus mag- num de Rosa e figura entre os textos de maior impacto literário do mundo em sua época.

343 Sobre a relação de Riobaldo e Diadorim marcadamente ambígua ver: GALVÃO, Walnice N. Guimarães

Rosa, pp. 48-50.

344 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas, pp. 116-125. Neste trecho narra-se o encontro de Riobaldo

com um menino chamado Reinaldo, que mais tarde ele iria reencontrar e chamar até o fim do romance de Di- adorim.

345 Id. Ibidem, p. 53. 346 Id. Ibidem, p. 46. 347 Id. Ibidem, p. 40. 348 Id. Ibidem, p. 105.

349 COUTINHO, Eduardo F. Diadorim e a desconstrução do olhar dicotômico em Grande Sertão: Veredas. In:

DUARTE, L. P. & ALVES, M. T. A. (Orgs.). Outras margens: Estudos na obra de Guimarães Rosa, Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 38.

350 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas, p. 325. 351 Id. Ibidem, p. 126.

352 Por epopéia entende-se: “o poema da antiguidade que descreve uma série de ações heróicas.” ROSENFIELD,

Especificamente quanto ao tema da ambigüidade, central em nossa reflexão, temos nessa obra a fonte vital, sobre a qual Finazzi-Agrò diz:

“As coisas e o caos ali se coadunam, se entrelaçam, encontram sua razão de ser poética e seu modo de ser narrativo, para depois dali se partirem, até o fim-de-mundo da inspiração, até onde a palavra se quebra e emudece no si- lêncio: um movimento centrípeto e centrífugo que, na sua ambigüidade, defi- ne, apesar de tudo, o lugar desse texto no conjunto dos textos rosianos – pa- radoxo de uma obra que consiste na sua inconsistência, que se confirma na fluidez de seus confins.”353

2. A palavra vivente: Linguagem como campo de aproximação à interfa-