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Das letras aos salmos: Leituras da crítica literária sobre te mas teológicos

2.3 E a teologia se fez narrativa: Teologia narrativa em perspectiva

3. Das letras aos salmos: Leituras da crítica literária sobre te mas teológicos

“Os deuses são hóspedes fugidios da literatura. Deixam nela o rastro dos seus nomes. Mas logo a desertam também. Toda vez que um escritor esbo- ça um texto, tem de reconquistá-los. A mercurialidade, que anuncia os deu- ses, sugere também sua evanescência.”126

Não é nada recente a presença de temas teológicos em textos literários ao longo da história literária do Ocidente. De fato poder-se-ia citar grandes clássicos, nos quais persona- gens bíblicos (Deus, Diabo, Messias, Anjos e etc.), hábitos religioso-devocionais (orações, jejuns, cumprimento de promessas, celebrações cúlticas e etc.) e concepções teológicas (pe- cado e perdão, queda e redenção, monoteísmo e a Trindade, criação e o fim dos tempos, e etc.) fazem parte, ora direta ora indiretamente, das narrativas e dos versos de romancistas (como Fiódor Dostoiévski127, José Saramago128 e Machado de Assis129 entre outros) e poetas (como Hölderlin130, Fernando Pessoa131, Carlos Drummond de Andrade132 entre outros). A literatura admite com liberdade ímpar desde o inferno de Dante ao paraíso de Milton, ou ainda, o impactante Livro de Ester, do Tanach. Interessa-nos, sobretudo, nesse momento perspectivar algumas contribuições, nas quais o movimento de análise parte da literatura

126 CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras,

2004. p. 9.

127 Ver: PONDÉ, Luiz Felipe. Crítica e profecia: A filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo: Editora 34,

2003. 288 p. e SILVA, Claudinei F. Paulino. O Cristo da liberdade em Dostoievski: Teologia e Literatura em diálogo. São Bernardo do Campo: UMESP, 2009. Dissertação de Mestrado orientado por Claudio de Oliveira Ribeiro.

128 Ver: FERRAZ, Salma. As faces de Deus na obra de um ateu: José Saramago. Juiz de Fora: Editora UFJF;

Blumenau: Edifurb, 2003. 234p. Nessa obra a crítica da Universidade Federal de Santa Catarina analisa as imagens de Deus em Terra do Pecado, Memorial do Convento, História do Cerco a Lisboa e O evangelho segundo Jesus Cristo, obras do escritor português. Salma ilustra bem o trabalho que parte da erudição crítico- literária em direção aos temas teológicos, a fim de uma interlocução com a qual a leitura da obra literária tor- ne-se mais complexa.

129 Ver: CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Para uma poética da vitalidade: Religião e Antropologia na

Escritura Machadiana (Um leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis). São Ber- nardo do Campo: UMESP, 2007. Tese de Doutorado orientada por Antonio Magalhães.

130 Ver: STRUNK, Reiner. Echo des Himmels: Hölderlins Weg zu einer poetischen Religion. Eine Einführung.

Stuttgart: Calwer Verlag, 2007. 319 p; Para ler a obra de Hölderlin como reação intelectual à moral religiosa de sua época e também pelo valor filosófico de seus hinos, ver: WERLE, Marco Aurélio. Poesia e Pensa- mento em Hölderlin e Heidegger. São Paulo: Editora Unesp, 2005. 212 p. Calasso afirma sobre Hölderlin: “(...) o que é único em Hölderlin não é a percepção de uma nova evidência dos deuses antigos (...), mas sim a investigação sobre o aspecto diverso que estes adquiriram ao se manifestar no mundo moderno”. Id. A litera- tura e os deuses, pp. 35ss.

131 Ver: MOTTA, Marcus Alexandre. As afinações de Pessoa. In: Correlatio, nº 13, Junho de 2008. Disponível

em: <HTTP:/www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio13/correlatio13/as-afinações-de-pessoa-literatura-e- religiao/>. Acesso em: 20 out. 2009.

(letras), mais propriamente do exercício crítico de obras literárias, em direção à teologia (salmos).

Calasso analisa a presença dos deuses na literatura dita ocidental com acuidade. Ensi- na-nos ele, a observar que houve um tempo em que os deuses não eram um costume literá- rio, antes sim “eram um evento, uma aparição súbita, como o encontro com um bandido ou a chegada de uma nau.” Tomando Homero como referência, o ensaísta italiano ressalta que, à ocasião da guerra de Tróia, “os deuses já freqüentam a terra bem menos do que em época anterior”133. Ao mencionar uma “idade primordial”134, Calasso atribui a esta um quase de- saparecimento dos deuses.

Um fenômeno assim não está distante da tradição judaica, sobre a qual a tradição cris- tã desenvolveu suas bases e, por conseguinte, tomou como experiência fontal a riqueza lite- rária hebraica. Aqui se sugere questionar a respeito da presença de Javé ou Elohim no livro de Ester – obra comum à Bíblia hebraica e à Bíblia cristã. Onde Eles estão, ou ainda, num texto (Ester) que traz a maioria das ocorrências das palavras judeu e judeus, o que aconteceu a Javé e Elohim?135 Com essa questão faz-se uma pausa necessária, tendo em vista a obser- vação da crítica de Calasso em que os deuses, mesmo Javé ou Elohim, já estiveram distantes dos fios dos textos. Observação especialmente relevante se o Judaísmo e o Cristianismo são considerados como religiões do livro. Retomada a questão inicial, ouçamos a resposta de Miles:

“Deus não é mencionado nesse livro (de Ester)136 (...) Podemos dizer que Israel está de volta, agora chamando a si mesmo de “os judeus”, ainda fa- lando hebraico, sem se misturar com nenhuma outra nação, mas surpreen- dentemente, sem o seu Deus. (...) Se ele não intervém para salvar seu povo

133 CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses, p. 10.

134 Id. Ibidem, p. 11. É importante apontar que o escritor não determina cronologicamente o que chama de “idade

primordial”. Como contraponto, pode-se refletir sobre o termo in illo tempore – “tempo sagrado” – como um paralelo com o pensamento de Mircea Eliade. Para o qual: “O Tempo sagrado, (...), é um Tempo mítico, um tempo primordial, não identificável no passado histórico, um Tempo original, no sentido de que brotou ‘de repente’, de que não foi precedido por um outro tempo, pois nenhum Tempo podia existir antes da aparição da realidade narrada pelo mito.” O que mais se aproxima da “idade primordial” esvaziada de deuses, em Ca- lasso, é noção de “tempo profano”. Sobre a qual Eliade desenvolve alguns pontos: “O sagrado celeste e os deuses uranianos”, sinal da contemplação humana por aquilo que a transcende, os homens voltam os olhos aos céus. “O Deus longínquo”, que é o afastamento de Deus ou dos Deuses após terem criado o Cosmos. “A experiência religiosa da vida”, após o afastamento divino o homem se interessa cada vez mais por suas pró- prias descobertas religiosas, com experiências religiosas mais concretas como: a sexualidade, a fecundidade, a mitologia da mulher e da terra. Ver: ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. pp. 60-100 e Id. As afinações de Pessoa. In: Cor-

relatio, nº 13, Junho de 2008. Disponível em: <HTTP:/www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio13/correlatio13/as-afinações-de-pessoa-literatura-e-

religiao/>. Acesso em: 20 out. 2009.

135 MILES, Jack. Deus: Uma biografia, p. 404. 136 MILES, Jack. Deus: Uma biografia, p. 400.

ou, pelo menos se o povo não chega a clamar por ele em sua hora de peri- go, fica parecendo que Deus foi agressivamente dispensado da história. Se- ja qual for a intenção do livro de Ester, esse é o efeito que ele tem.”137 A liberdade de tecer um texto no mundo da literatura é tão radical que se pode abrir mão de um personagem como Deus, o qual é o protagonista da Bíblia hebraica e, por coop- tação ou reinvenção, também assume lugar supino na literatura produzida no lado ocidental do mundo. Não obstante, algo assim tão inquietante, em outras palavras, personagens assim tão “eminentes e incontroláveis à mão do escritor”138 não permanecem tanto tempo em si- lêncio ou exiladas. Talvez isso aconteça pela ambigüidade fundante das narrativas literárias, nas quais “(...) os deuses e os homens seguem o rastro de um movimento secreto que os aproxima e os distancia no tempo.”139 Talvez pelo sentimento de abandono e traição, entre os humanos e os deuses, que perpassam o discurso poético140. Mesmo que não se delineie com clareza a razão pela qual a literatura está repleta de temas teológicos e deuses; pode-se dizer que eles (deuses e deusas) estão aí. Ainda que eles apareçam apenas nos livros, perce- be-se que o mundo não tem nenhum interesse em se desencantar totalmente, porque se as- sim fizesse, “iria se aborrecer imensamente”.141 Ao voltar os olhos para nossos dias Calasso nos orienta a visão ressaltando:

“Desloquemo-nos, agora, para a cena hodierna, tal qual aparece, todos os dias, aos nossos olhos: antes de tudo os deuses ainda estão presentes. Mas não são mais uma só família, ainda que complicada, habitando vastas mo- radas esparsas sobre as encostas de uma montanha. Atualmente são uma multidão que pulula numa cidade exterminada. Não importa se, com fre- qüência, seus nomes soam exóticos e impronunciáveis (...). O poder de su- as histórias continuam a agir.”142

Vejamos a seguir algumas estórias de deuses contadas por homens das letras.

137 Id. Ibidem, p. 404. O que entre parênteses é grifo meu. Para entender melhor a relação entre a retomada reli-

giosa judaica que tem como principais personagens Mordecai e Ester, e a ausência de Deus no livro, consultar: Id. Ibidem, pp. 399-406. Caso o interesse seja uma análise das versões hebraica e grega do livro de Ester, e as características literárias do mesmo, ver: SASSON, Jack M. “Ester”. In: ALTER, Robert e KERMODE, Frank (orgs.). Guia Literário da Bíblia, pp. 359-367.

138 CALASSO, Roberto. A literatura e os deuses, p. 26. 139 Id. Ibidem, p.37.

140 Id. Ibidem, p. 38. 141 Id. Ibidem, pp. 23 e 24 142 Id. Ibidem, p. 22.

3.1. Literatura e espiritualidade: A contribuição de José Carlos Barcellos ao