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Barcellos sintetiza de modo peculiar o interesse da crítica literária por questões teoló- gicas em obras da literatura. A começar por seu duplo doutoramento, em Literatura Portu- guesa (USP) e em Teologia (PUC-RJ), chegando até suas publicações sobre a interface em questão e, por fim, ao reconhecido trabalho de estruturação e desenvolvimento da Associa- ção de Literatura e Teologia (Alalite). Considerado por Paulo Soethe o “primus inter pa- res”143 do universo de pesquisadores/as sobre o diálogo interdisciplinar que move essa pes- quisa, Barcellos faleceu precocemente, dia 14 de fevereiro de 2008.

Crítico à linguagem teológica, por perceber nela “insuficiência e irrelevância” em ex- pressar temas que lhe são caros (pecado, graça, mal e etc.), Barcellos tece seu elogio à lite- ratura reconhecendo nesta uma capacidade “de dizer melhor que outros discursos”.144 Num balanço crítico das pesquisas entre teologia e literatura, o escritor reconhece o crescimento do interesse acadêmico – de ambos os saberes – pelo estudo dessa relação interdisciplinar, especialmente observada na produção bibliográfica ao longo do século XX. Destaca que no mundo teológico esse interesse se dá, sobretudo, por uma “desintegração da linguagem tra- dicional da fé e da teologia”, aguçada em muito pela crise do racionalismo idealista, a qual desferiu grave golpe ao pensamento metafísico. O resultado disso se manifesta na recorrente presença das “linguagens de empréstimo, como das ciências humanas, da política, da arte ou da literatura”145 na teologia atual.

Ao refletir sobre o interesse da literatura pela relação estudada, Barcellos primeiro busca uma compreensão de literatura como aquele uso da linguagem, do qual irrompem novos e ambíguos paradigmas146. Noutras palavras, pode-se dizer que a literatura, por meio

143 SOEHTE, Paulo. José Carlos Barcelos, primus inter pares. In: Revista do Instituto Humanitas Unisinos. São

Leopoldo, 17 mar. 2008. Edição 251. p. 32. Disponível em: <www.unisinos.br/ihu>. Acesso em: 18 out. 2009. Nessa página, Paulo Soethe e a Comissão Organizadora do segundo Colóquio da Alalite escreveram textos-homenagem à pessoa e ao legado do professor carioca José Carlos Barcellos.

144 BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Espiritualidade: Uma leitura de Jeunes Années, de Julien Green, p.

61.

145 Id. Ibidem, pp. 14, 55 e 56. A fim de garantir a própria sobrevivência, a linguagem teológica atual procura

apoiar-se noutras linguagens, a saber: a) a linguagem das reivindicações humanas (empenho histórico, promoção humana, revoluções); b) a linguagem das explicações humanas (ciências humanas e naturais); c) a linguagem da condição humana (filosofia, arte, literatura).

146 Não se trata aqui de uma originalidade absoluta, mas sim da novidade literária em sua estrutura, ou seja, da-

quilo que texto literário (romance, conto, crônica, poesia e etc.), enquanto corpus, proporciona dentro de suas linhas. Não obstante, certas obras literárias possam contribuir – e de fato o tenham feito – para o surgimento

de uma inusitada combinação/jogo de palavras, se expressa nos textos “sempre abertos a novas leituras”, simultaneamente mais particulares e mais amplos que os dados pela “lin- guagem corrente ou pelos discursos especializados da filosofia, teologia, política e etc.”147 Esse pensamento traz em seu bojo a concepção de que a arte literária desconstrói necessari- amente uma dada visão de mundo, possibilitando, com isso, maior gama de leituras da con- dição humana. Dito isto, o crítico e teólogo indica o interesse de críticos e teóricos da litera- tura em se aproximar da teologia por conta do:

“(...) esgotamento das metodologias excessivamente formalistas de abor- dagem do fenômeno literário e da conseqüente necessidade de se reintro- duzir no âmbito dos estudos literários a preocupação com a comunicação de uma mensagem, com uma particular percepção das experiências huma- nas, como núcleo irretudível de toda e qualquer obra literária.”148

Depois de apontar o interesse de ambos os saberes numa aproximação colaborativa, em que a literatura é mais que mera ilustração ou “exemplo a ser convocado para amenizar a aridez do discurso teológico tradicional” e a teologia é mais do que a “ciência da igreja” ou a readequação de postulados dogmáticos em linguagem supostamente crítica e atual; Barcel- los alerta-nos para a expressão “diálogo”, cuja presença é comumente notada nos trabalhos já publicados sobre a interface em análise nessa pesquisa. Afirmar que há diálogo, havendo apenas justaposição de teorias ou análises paralelas de textos específicos, é um engano comprovado à medida que não se observa contribuição alguma de uma disciplina à outra, seja no plano teórico-conceitual ou no plano metodológico.149

O projeto de aproximação delineado por Barcellos não só caracteriza teologia e litera- tura conceitualmente, mas também reflete sobre os métodos150 que têm sido utilizados para de novos paradigmas histórico-culturais e psicológicos, Barcellos reflete sobre a novidade e ambigüidade duma obra dentro de seu universo mesmo.

147 BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Espiritualidade: Uma leitura de Jeunes Années, de Julien Green, pp.

64 e 65.

148 Id. Teologia e Literatura. Disponível em:<www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/T/teologia-literatura.htm>. Acesso:

24 de out. 2009.

149 Id. Literatura e Teologia. In: ALMEIDA, José F. de & LONGUINI NETO, Luiz (orgs.). Teologia para quê?,

pp. 114 e 115. Nessas páginas, Barcellos exemplifica esse tipo de aproximação pseudodialógica, partindo da teologia, nos seguintes termos: “(...) é muito freqüente depararmo-nos com textos em que se citam alguns versos de um poema ou se menciona uma passagem de um conto ou de um romance, por exemplo, como me- ro pretexto para o levantamento de questões teológicas que, num segundo momento, são desenvolvidas de maneira completamente autônoma em relação ao texto literário que serviu de ponto de partida à reflexão. Es- se tipo e recurso é legítimo, mas não caracteriza, de maneira nenhuma, um estudo interdisciplinar. A literatu- ra entra aí com uma estratégia para captar a benevolência do leitor ou então serve apenas como exemplo de ilustração do ponto que se quer desenvolver. Em momento nenhum, é levada a sério como uma forma de co- nhecimento da realidade.”

150 O crítico literário e teólogo entende que a reflexão e reconstrução do método é fundamental à interface. Diz

se relacionar o discurso teológico e o discurso literário. Ele delimita três tipos possíveis de leitura metodológica, a saber: a) Leitura teológica de uma obra literária; b) Leitura da refle- xão teológica realizada no texto literário mesmo; c) Leitura de elementos religiosos e teoló- gicos como aspectos da cultura e não como reflexão crítica (teologia).

Sobre o primeiro diz que a obra é o “objeto material a partir do qual o objeto formal (dado teologizável) é elaborado”151. Com isso, compreende-se que a leitura dos possíveis elementos teológicos de uma obra literária é feita a partir de um método teológico.152 A res- peito do segundo método de leitura, Barcellos afirma que o:

“(...) próprio texto literário é portador de uma reflexão autenticamente teo- lógica. Isso é especialmente possível pela diversidade de combinações sin- tagmáticas que o texto literário abrange. No interior dessa diversidade lite- rária, poesias podem falar sobre paradigmas religiosos, sem que o poeta se- ja ‘pessoalmente um homem de fé’.”153

Quanto ao terceiro tipo de leitura, sugere que o aparecimento de uma proposição teo- lógica ou filosófica apareça no texto “simplesmente como elemento da cultura e da lingua- gem comuns”. Conforme o crítico e teólogo, não há o propriamente teológico nesses textos, uma vez que não há crítica à linguagem e nem “ruptura do paradigma de Deus.”154

Por fim, Barcellos reflete de modo provocativo o conceito de teologia na via da espiri- tualidade. Com isso, ele pensa a teologia tendo como pano de fundo certa ambigüidade, ex- pressa na “multiplicidade e imprevisibilidade dos caminhos de Deus na vida de homens e mulheres”.155 Experiências captadas pela pena do artista, pelo olhar do poeta e pela ironia do comediante. Da multiforme sabedoria de fé, das falas impregnadas pela saudade do Mis- tério é que surgem narrativas das faces de Deus no cotidiano humano. É de tal cotidiano que ratura e de teologia, é fundamental levantar a questão do método. (...) Cada método de leitura revela-se mais ou menos produtivo, consoante a especificidade do texto literário a ser estudado. Nesse sentido, há sempre um momento prévio, de caráter intuitivo, que deve orientar a eleição do método mais adequado ao estudo a ser empreendido.” BARCELLOS, José Carlos. Literatura e Teologia. In: ALMEIDA, José F. de e LON- GUINI NETO, Luiz (orgs.). Teologia para quê?, p. 117.

151 Id. Literatura e Espiritualidade: Uma leitura de Jeunes Années, de Julien Green, p. 67.

152 Id. Ibidem, p. 69. “Ao caracterizar a literatura como perene testemunho de uma realidade humana, pode-se

afirmar rigorosamente a possibilidade de uma leitura teológica de qualquer obra literária.” Id. Ibidem, p. 67. Em outra obra, Barcellos esclarece que, “no caso das grandes obras da literatura, o emprego desse método pode parecer um pouco empobrecedor e simplificador”. O pesquisador lembra, especialmente, da obra de Manzatto como principal divulgadora dessa leitura. Id. Literatura e Teologia. In: ALMEIDA, José F. de e LONGUINI NETO, Luiz (orgs.). Teologia para quê?, pp. 118 e 119.

153 Id. Literatura e Espiritualidade: Uma leitura de Jeunes Années, de Julien Green, pp. 69 e 70. Para exemplifi-

car a questão da fé do escritor, o crítico lembra que: “Há casos de autores ateus ou agnósticos que fazem teo- logia em suas obras, na medida em que constroem ‘eus líricos’, narradores ou personagens inseridos numa tradição cultural religiosa, do interior da qual colocam sérias questões de ordem teológica”. Id. Ibidem, p. 70.

154 Id. Ibidem, pp. 75 e 76.

155 Id. Ibidem, p. 123. Para o escritor, o que define o perfil dos “estudos teológicos” sobre a espiritualidade é

Barcellos busca um conceito teológico de experiência, lançando mão de elementos propici- ados pela análise psicológica, antropológica, filosófica ou outras156. Não obstante, alerta-nos o escritor:

“(...) a experiência cristã não é simplesmente um conjunto de elementos vivenciais, mas uma estrutura que está no centro de um acontecimento his- tórico-salvífico: o mistério da inserção do homem em Cristo.”157

Dessa inserção de signo ambíguo158, Barcellos reflete a teologia em face da literatu- ra159, reconhecendo que os estudos literários podem se “vislumbrar” ao admitir o quão im- pregnada a literatura do ocidente está de elementos e reflexões fontais da religião judaica e cristã.160 Por sua vez, a aproximação à literatura pode proporcionar à reflexão e linguagem teológicas maior capacidade de escuta e elaboração de perguntas. O que Barcelos sugere, lembrando Kuschel, é uma relação entre teologia e literatura em que a lógica pergunta (lite- ratura) resposta (teologia) seja superada pela pergunta complexa ou a pergunta dupla, a ser diversamente encontrada nos próprios textos161.

3.2. Javé – travesso e canônico: As provocantes perspectivas sobre Javé na