• Nenhum resultado encontrado

  No intuito de delimitar os diferentes discursos midiáticos acerca dos DHs no Brasil, o        presente trabalho busca traçar os perfis de      Veja   eCarta Capital  , a partir de dois casos        amplamente abordados pelos veículos de comunicação de massa, cuja temática relaciona­se        com os DHs.     Veja e   Carta Capital são semanários voltados para as classes médias urbanas        com modelos de negócio semelhantes, dependentes de assinaturas, ou seja, o cliente        fidelizado e ideologicamente alinhado. Todavia, para além da concorrência estritamente        comercial ­ do gênero de publicação e do segmento de poder aquisitivo que ocupam ­, as        publicações produzem imagens de       éthos e   páthos (cf. FIORIN, 2015) bastante distintas. A        revista Veja, não obstante seu histórico inicial, constitui­se contemporaneamente à luz do        conservadorismo liberal, enquanto a revista      Carta Capital desenvolve a linha          desenvolvimentista heterodoxa progressista. Assim, entende­se que falam, respectivamente,        para públicos de direita e de esquerda. 

No tocante aos casos escolhidos, a seleção se deu com base em critérios de        notoriedade e ampla difusão, assim como a pertinência aos DHs e, especificamente, a        diferença entre os sujeitos centrais das narrativas apresentadas por cada um deles. No ‘Caso        João Hélio’, uma vítima prototípica de classe média. No caso do acorrentado do Flamengo, a        vítima foi um rapaz negro, pobre, marginalizado e não nomeado. A aparente divergência de        linhas editoriais entre     Veja e    Carta Capital    ao lado da discrepância dos lugares sociais        ocupados pelas vítimas retratadas nas reportagens visam a garantir um       corpus de análise      plural, polêmico e dialético. 

As coberturas das editorias de segurança pública e polícia comumente trazem histórias        sobre o sofrimento alheio: a dor da perda de um filho por uma mãe; o bárbaro assassinato de        um trabalhador; a vingança passional de um marido contra sua ex­esposa etc. O ganho de        relevância desse noticiário nos últimos anos (cf. SILVA, 2010) parece obedecer a critérios de        audiência ­ o impacto causado pelas pautas do grotesco e do bizarro exploram o limite entre o        entretenimento e a estetização da violência (cf. VAZ et al, 2005) e a efetiva solidariedade com        as vítimas ­ e de produção ­ os custos de programas policialescos seriam baixos . O      16   

repertório de notícias acerca dos DHs, segurança pública e violência urbana observa o que        Hernandes (2006, p. 49) chama de estratégia de sustentação, a publicação de 'notícias que são        feitas para comover e contam com o engajamento empático do público'. Por isso, o autor        considera essa etapa mais de ordem passional. Segundo ele, para construir um laço com o        leitor, o jornal não precisa apenas fazer saber, 'em outras palavras, expor histórias para que se        conheça o que ocorre cotidianamente' (ibidem, p. 54). Também é necessário levar o público a        se perceber nessas histórias, criar efeitos de identificação ou de empatia com os personagens." 

O ‘Caso João Hélio’ diz respeito à morte de João Hélio Vieites, em 7 de fevereiro de        2007, após ficar preso ao cinto de segurança do carro, que fora roubado, e ser arrastado pelo        automóvel em movimento. O ocorrido ganhou enorme repercussão nos meios de comunicação        e incitou, entre outras iniciativas, o reforço ao       lobby legislativo para o endurecimento de        penas e a redução da maioridade penal      17 18   . As idades da vítima, seis anos, e dos autores do        crime, um menor e todos os demais próximos aos 18 anos, foram reiteradamente destacados        pelos meios de comunicação. 

Já o segundo caso ocorreu no início de fevereiro de 2014, tendo sido um dos        acontecimentos de maior repercussão nos veículos de comunicação de massa e nas redes        sociais. Trata­se do espancamento e da prisão a um poste, com indícios de tortura, de um        adolescente negro por jovens de classe média na zona sul da cidade do Rio de Janeiro.        Segundo o jornal carioca Extra , “os ‘justiceiros de moto’ espancaram, deram uma facada na        19        orelha, arrancaram a roupa e prenderam o rapaz pelo pescoço. E ninguém na rua fez nada para        impedir. [...] Aquela área do Flamengo teve um aumento muito grande de violência e roubos        recentemente. Como as coisas não melhoram, um bando de garotões se junta e começa a fazer        justiça pelas próprias mãos.” 

ficar cobrindo morte e fofoca? Se tivéssemos mais dinheiro, faríamos algo muito melhor”, disse ela. (cf. PIRES,        2014) 

17 Em uma seção de “Perguntas e Respostas”, a revista semanal Veja discute a redução da maioridade penal,                                 

afirmando que o “Caso João Hélio” teria “reascendido o debate” em torno da causa.       ​Perguntas & Respostas:      Maioridade Penal [Internet]. São Paulo: Veja.com; 2007 ­ [citado em 2014 Jul 6]. Disponível em:        <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/perguntas_respostas/maioridade_penal/> 

18 No dia 15 de fevereiro de 2007, os pais do menino João Hélio eram notícia como defensores da redução da                                       

maioridade penal.   ​Pais de João Hélio defendem a redução da maioridade penal [Internet]. São Paulo: Giancarlo                        Lepiani;  2007  ­  [citado  em  2014  Jul  6].  Disponível  em:  <http://veja.abril.com.br/noticia/arquivo/pais­joao­helio­defendem­reducao­maioridade­penal> 

19 LUCCIOLA, L.   Adolescente atacado por grupo de ‘justiceiros’ é preso a um poste por uma trava de bicicleta,                               

no Flamengo  ​. Jornal Extra. Publicado em: 3 de fev de 2014. Acessado em: 1 de nov de 2015. Disponível em:        <http://extra.globo.com/noticias/rio/adolescente­atacado­por­grupo­de­justiceiros­preso­um­poste­por­uma­trava ­de­bicicleta­no­flamengo­11485258.html> 

Assim, ao trabalhar com o discurso ­ o texto jornalístico sobre questões de DHs ­ e        perquirir a produção dos significados que partem dele ­ as estratégias e os efeitos de sentido        dessas peças ­, o arcabouço téorico­metodológico coerente com tal proposta erige­se a partir        de uma teoria do discurso e da significação, a Semiótica Francesa. Diferentemente de outras        teorias do discurso, como a Análise de Discurso pecheutiana, que aborda as       condições de    produção  contextuais para alcançar os         efeitos de sentido entre locutores         , e mesmo da        Hermenêutica, que busca a chave da interpretação única e verdadeira, a Semiótica persegue os        meandros da significação respeitando a infinidade de recortes possíveis a partir de um mesmo        objeto e observando as marcas da enunciação em um texto para, então, depreender delas um        possível contexto histórico­social. 

Para a Semiótica, interessa a significação, a organização e a forma ­ a “arquitetura        textual que produz o sentido” (FIORIN, 2008. p. 122). Nessa esteira, não interessa a intenção        do autor e a historicidade, enquanto “anedotas a respeito de suas condições de produção” (Id.,        2011. p. 16), mas como o sujeito da enunciação está construído no texto. Esse sujeito da        Semiótica é composto pela articulação de perfis de enunciador, polo voz, e enunciatário, polo        recepção, depreendidos do texto. A enunciação é uma das instâncias observáveis pelo        semioticista, ao qual não interessa o autor e o leitor empíricos, mas sua constituição enquanto        sujeito no texto. Há, porém, dois grandes modos de presença do sujeito: no nível da        enunciação e no interior do enunciado. O sujeito do enunciado está na narrativa projetada,        enquanto o sujeito da enunciação encontra­se na narrativa pressuposta. Os valores        convencionados naquela podem ser os mesmos ou não em relação a esta. Essa tecnologia        analítica será fulcral para o presente trabalho na medida em que os textos jornalísticos podem        dizer mais do que o disposto na superficialidade das histórias apresentadas de imediato. 

A Semiótica é imanente, o que significa dizer que, a ela, somente importa a        “autonomia das formas estruturais, seu funcionamento próprio, sua indiferença, enquanto        sistema aos dados extralinguísticos” (BERTRAND, 2003, p. 266). Portanto, dados como o        perfil dos leitores e assinantes da revista semanal Veja e o imaginário coletivo acerca do que é        violência urbana, assim como o papel do Rio de Janeiro nesse ideário, não serão considerados        aprioristicamente como contexto sócio­histórico e vinculados às variantes analisadas. Para a        Semiótica, caso essas informações sejam realmente relevantes, elas estarão dispostas no        enunciado, como marcas de enunciação. 

O rigor formal e a racionalização não foram a única reviravolta percebida nas ciências        humanas debruçadas sobre a narratividade na década de 1960. O objeto da semiótica narrativa        expandiu­se da observação de uma frase à dimensão transfrásica da linguagem, encarada        como o discurso. Neste há um caráter autônomo, orgânico e sistemático, o qual denota a        prioridade do todo sobre as partes e veio, com o desenvolvimento da epistemologia, permitir        uma hierarquia dos níveis de análise e a possibilidade de integração dos elementos        constitutivos no conjunto. Gestada pela Semântica estrutural, a Semiótica “desloca o esforço        de pesquisa das estruturas superficiais, frásticas e interfrásticas que constituem o objeto da        linguística propriamente dita para as estruturas transfrásticas, que assegurariam, em um nível        mais profundo, a coerência do discurso.” (HÉNAULT, 2006, p. 131).  

A Semiótica “tem por objeto descrever e explicar os procedimentos de composição        discursiva, que se manifestam textualmente” (FIORIN, 2008, p. 125). Haveria três condições        para seu estudo: ser sintagmático, por interpretar um todo de significação, o texto ou o        discurso; ser gerativo, pois a linguagem e a organização textual obedecem a uma hierarquia da        organicidade de categorias abstratas à singularidade de figuras e temas específicos de cada        texto; e ser geral, ao manifestar­se em diferentes planos de expressão possíveis. Nos itens        subsequentes do presente trabalho, deter­se­á à aplicação da teoria em voga ao objeto de        pesquisa. 

 

3.1 Veja 

 

Esta análise compreende especificamente a capa da edição 1995, ano 40, nº 6 de 14 de        fevereiro de 2007, e as páginas 46 a 51, nas quais consta a reportagem especial sobre o ‘Caso        João Hélio’. Igualmente, serão objeto de estudo a capa da edição 2360, ano 47, nº 7, de 12 de        fevereiro de 2014 e as páginas 48 a 55, cujo conteúdo abarca o caso do rapaz negro violentado        e acorrentado a um poste por uma gangue da zona sul do Rio de Janeiro.  

A peça jornalística de cobertura do ‘Caso João Hélio’ comporta uma primeira parte,        que apresenta uma narrativa detalhada do que teria acontecido desde o assalto ao carro em que        estava a vítima, até os momentos seguintes ao abandono do veículo. Ademais, fotos da        família do João Hélio e de outras vítimas de classe média estão espalhadas pelas páginas,        assim como trechos escritos pelo colunista Reinaldo Azevedo, em itálico, são entremeados no       

corpo textual principal. Por fim, uma segunda parte encerra a matéria, com a revista        apresentando soluções, que consistem na resposta para a pergunta da capa. Não ficar parado        significa anuir às medidas arroladas por Veja

Já a reportagem sobre o episódio do menino negro acorrentado em um poste, após ser        torturado por jovens de classe média da zona sul do Rio de Janeiro, lista uma série de        problemas pelos quais o Brasil estaria passando, colocando a responsabilidade dessas        questões sobre o governo brasileiro. O “cidadão” estaria acuado diante de tantas “violências”        e descrente das instituições, o que justificaria atitudes “bárbaras”, como o acorrentamento do        rapaz no bairro do Flamengo. Os trechos a seguir demonstram o rol de problemas suscitado        por Veja

“A volta dos ‘justiceiros’, criminosos impunes, colapso no transporte, caos aéreo e        apagões. Onde está o Brasil equilibrado, rico em petróleo, educado e viável que só o        governo enxerga?” (Capa) 

“Em duas semanas, o Brasil assiste a dois ‘justiçamentos’. A onda de barbárie        mostra que a população está à beira da saturação: na segurança, na economia, nos        transportes [...]” (Ref. nº 1) 

“Tome­se o caso do adolescente que foi encontrado nu e com o pescoço preso de        uma rua no Aterro do Flamengo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Na semana anterior,        um motoqueiro se aproximou de um jovem, imobilizado por dois homens no meio da        rua, e estourou­lhe os miolos com três tiros à queima­roupa. Cena semelhante à        registrada na semana passada num ‘linchamento oficial’ na República        Centro­Africana, um dos países mais pobres do mundo. Alguém filmou a cena com        um celular. O crime ocorreu à luz do dia em uma esquina movimentada de Belford        Roxo, na Baixada Fluminense. Pelo vídeo dá para perceber que a execução sumária        foi insuficiente para mudar a rotina da rua. A vida ali continuou como se nada        tivesse ocorrido. Tampouco houve muita comoção com a divulgação das imagens do        adolescente preso a um poste como um escravo no pelourinho ­ cena corriqueira e        típica no Brasil de meados do século XIX, mas que, exibida por gravuristas europeus        a seus conterrâneos na Europa, já produzia engulhos na época.” (Ref. nº 4) 

Na narrativa projetada do enunciado de ambas as reportagens de       Veja, a oposição      fundamental é Opressão versus Liberdade. A axiologização dos textos nos indica que a        Opressão é eufórica e a Liberdade é disfórica, um viés oposto ao que propõe a teoria dos DHs.        Para que essa estratégia funcione, a Opressão articular­se­á às isotopias, temas e figuras, cujos        valores podem ser facilmente reconhecidos como eufóricos pelo enunciatário previsto. Além        disso, o sujeito do programa narrativo de base, o actante narrativo primordial, estará alinhado        a esses valores positivos do enunciado. Ocorre uma projeção da dicotomia categórica basilar        nos níveis superiores e menos abstratos do percurso gerativo de sentido, conferindo coerência        e eficácia ao     fazer persuasivo   , inerente a qualquer texto e elemento central das análises        semióticas. 

O sujeito da enunciação, composto por enunciador e enunciatário, posiciona­se na        narrativa pressuposta. O enunciador, a revista       Veja, cumprindo o primado do fazer persuasivo,        agirá como um destinador do enunciatário previsto da publicação, buscando convencê­lo a        entrar em conjunção com seus valores. Para tal, a publicação engendra uma teia de programas        narrativos, os quais compõem a narrativa projetada, onde o “Caso João Hélio” e o episódio do        rapaz acorrentado situam­se.  

Permanecendo, por ora, na narrativa projetada, a reportagem de       Veja sobre o ‘Caso      João Hélio’ recobrirá o polo eufórico da Opressão com a       segurança, a tematização, no nível          discursivo, e o objeto­valor do programa narrativo de base, no nível narrativo. O sujeito,        actante narrativo central, será figurativizado pela estereotipia do integrante da classe média ­ a        família de João Hélio ­ em estado disjunto do objeto­valor segurança

Na quarta­feira passada, a       dona­de­casa carioca Rosa Vieites se preparava para        encerrar um dia como tantos outros        . Pouco depois das 9 horas da noite, deixou o       

centro espírita   que​  costuma frequentar   em Bento Ribeiro, na Zona Norte do Rio​        de Janeiro, e entrou no carro com seus dois filhos, Aline, de 13 anos, e João Helio,        de 6, e uma amiga.         ​Logo a família estaria toda reunida          ​, segundo seus     planos​ .​  Hélcio, seu   ​marido, passara a tarde na​         casa nova   que a​    família acabara de      comprar, acompanhando a​     ​reforma​, e iria encontrá­los para o       ​jantar​. (Anexo B,      referência nº 1) (grifos nossos) 

No trecho acima, o enunciador seleciona cuidadosamente as isotopias e os valores,        alinhavando­os no polo eufórico. As ideias de rotina e segurança são corroboradas por trechos        como “um dia como tantos outros”, “costuma frequentar” e “planos”. A isotopia da ordem,        representada na recorrência do uso de variadas instituições neste e em outros excertos, são        encontrados em “dona­de­casa” (um papel ou lugar social), “centro espírita” (a religião),        “marido” (a instituição do casamento), “casa nova” (uma garantia de estabilidade usualmente        associada ao estilo de vida da classe média), “família” (uma instituição burguesa), assim        como “policial”, “polícia”, “mãe”. Elas ajudam a construir o       conforto do conhecido    , estratégia    tensiva a qual será abordada mais adiante, dentro de um imaginário conservador: um casal        trabalhador com filhos, que compra ou reforma a casa própria, frequenta um centro religioso e        janta junto ao final do dia. Logo, esse ambiente acolhedor será destroçado pelo antissujeito. 

A Liberdade, o contraponto da Opressão, será manifestada pelo antissujeito ­ os        “bandidos” ­ e as isotopias disfóricas. A recorrência da ideia de brutalidade fica evidente em        palavras ou trechos, como “suplício”, “barbárie”, “destruída”, “tragédia”, “monstros”, “uma        cena difícil de imaginar, mesmo nos piores filmes de terror”, “crueldade”, “martírio”,        “sangue­frio”, entre outros. O próprio hiper detalhamento do crime segue na esteira da       

isotopia da brutalidade. Há, ainda, a isotopia do Outro, evidenciada por “bandido”,        “bandidagem”, “eles”, “criminosos”, “barbárie” , “bárbaras”, etc; da iminência, em      20        “urgência”, “emergência”, “chega”, “UTI”, “vital”, “em breve”, “já”, “hemorragia”,        “escalada”, “limite” etc; da dramatização, em “trágica”, “tirou a respiração”, “cena”,        “estaremos chorando outro João Hélio” etc.  

No texto acerca do caso do menino acorrentado na zona sul, a Opressão será        euforizada de forma semelhante. Veja concretizará a temática da civilização com as figuras        dos Estados Unidos, da Europa e dos grandes eventos esportivos internacionais, a Copa do        Mundo de futebol de 2014 e as Olimpíadas ­ os quais elevariam, segundo a revista, o país ao        patamar de “Brasil­potência”. Estampados na capa, os termos civilização e barbárie        articulam, respectivamente, as imagens de países “desenvolvidos” e “protocivilizados”,        adjetivações ulteriormente citadas no texto. Esse recobrimento temático­figurativo, no nível        discursivo, revela a ideologia, a visão de mundo do enunciador. A idealização do        “desenvolvimento” de determinados países e a necessidade da chancela do “progresso”        econômico e social por meio da realização de grandes eventos esportivos desvelam a        qualidade da autoestima do enunciador, o seu positivismo e o que Schwarcz chama de        “bovarismo”: 

[...] o conceito se refere a ‘um invencível desencanto das nossas condições reais’. O        termo tem origem na famosa personagem Madame Bovary, criada por Gustave        Flaubert, e define justamente essa alteração do sentido da realidade, quando uma        pessoa se considera outra, que não é. O estado psicológico geraria uma insatisfação        crônica, produzida pelo contraste entre ilusões e aspirações, e, sobretudo, pela        contínua desproporção diante da realidade. [...] ‘Bovarismo serve, ainda para nomear        um mecanismo muito singular de evasão coletiva, que nos permite recusar o país real        e imaginar um Brasil diferente do que é ­ já que esse não nos satisfaz e, pior, nos        sentimos impotentes para modificá­lo. Entre o que se é e o que se acredita ser [...]        Gênero de deslocamento tropical do famoso ‘ser ou não ser’, no Brasil ‘não ser é        ser’. Ou então, [...] essa seria ‘a penosa construção de nós mesmos [que] se        desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro’. O conceito explicaria,        também, uma antiga mania local: a de olhar para o espelho e se enxergar sempre        diferentes. [...] ora mais atrasados; ora até adiantados; mas sempre diferentes. Em        vários contextos de nossa história, esse tipo de construção idealizada do país se        transformou num ‘fermento’ da nacionalidade. (2015, p. 15­16) 

Se, no polo eufórico, encontram­se as figuras supramencionadas, no polo disfórico, foi        selecionada uma gama de supostas conquistas brasileiras, elencadas em um quadro (ver        Anexo K) que as desmistifica ­ para cada “avanço”, um “retrocesso”. Ou pior, “[...] o país dá       

20   A etimologia da palavra “barbárie” é bastante reveladora para o seu uso. A barbárie vem do grego barbaros,                                 

um passo à frente e dois para trás” (Anexo J, referência nº 1). A faceta positivista é retomada,        a partir da concepção linear de história e de desenvolvimento pela qual há comunidades mais        avançadas e outras menos, dentro de um linha única e etnocêntrica de prosperidade e        crescimento. 

 

 

FIGURA 1:    Veja destaca outras vítimas de          classe média. Fonte: Acervo Digital Veja        Online. 

   

FIGURA 2: A ordem contém a liberdade ­ os        jovens “despudorados” sendo contidos pela          polícia. Fonte: Acervo Digital Veja Online. 

 

Na reportagem do ‘Caso João Hélio’, as figurativizações não se limitam à vítima e sua        família. Fotos de outras pessoas de classe média são destacadas nas páginas (ver Figura 1), o        que amplia o efeito de identificação do enunciatário com as figuras do nível discursivo.        Igualmente, a principal fotografia dos autores do crime, em que os jovens aparecem sem        camisa e com bermudas frouxas (ver Figura 2), sendo segurados por policiais, reforça a        estratégia moralista, afastando o enunciatário de qualquer tipo de sensibilização com o        antissujeito ­ afinal, ele é o antagonista. As partes íntimas de um deles estariam à mostra e são        escondidas por um efeito de imagem. Em contraste com a isotopia das instituições, a escolha        não­ocasional da foto consolida a percepção de quebra da ordem e do pudor, associados ao        sujeito. Sobre a escolha das vozes e das fotos pelo enunciador ­ sem olvidar que nenhum dos       

réus foi ouvido pelos jornalistas ­, Gomes explica a sua importância no processo de        identificação e sensibilização: 

Essas escolhas quanto à distribuição das vozes e aos procedimentos de projeção são        significativas. Primeiramente, a extensão relativa ao espaço ocupado pela        manifestação das vozes na página e quantidade de vezes em que ocorrem as        intervenções produz uma valoração dada pela enunciação ao conteúdo do dizer.  [...] As dores e as alegrias das figuras humanas (ou personificadas) que povoam as        narrativas jornalísticas nos afetam porque as sentimos muito próximas.        Regozijamo­nos com o sucesso e sofremos com as perdas de nossos semelhantes, o