UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM OS HUMANOS DIREITOS E OS DIREITOS HUMANOS NO DISCURSO PASSIONAL DA GRANDE MÍDIA BRASILEIRA: ANÁLISE SEMIÓTICA DE VEJA E CARTA CAPITAL MARCOS DA VEIGA KALIL FILHO NITERÓI FEVEREIRO/2016
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM OS HUMANOS DIREITOS E OS DIREITOS HUMANOS NO DISCURSO PASSIONAL DA GRANDE MÍDIA BRASILEIRA: ANÁLISE SEMIÓTICA DE VEJA E CARTA CAPITAL MARCOS DA VEIGA KALIL FILHO
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Orientador: Prof.ª Dr.ª Renata Mancini. Linha de Pesquisa: Teorias do texto, do discurso e da interação. NITERÓI FEVEREIRO/2016
MARCOS DA VEIGA KALIL FILHO OS HUMANOS DIREITOS E OS DIREITOS HUMANOS NO DISCURSO PASSIONAL DA GRANDE MÍDIA BRASILEIRA: ANÁLISE SEMIÓTICA DE VEJA E CARTA CAPITAL
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal Fluminense como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. BANCA EXAMINADORA Prof.ª Dr.ª Renata Ciampone Mancini (UFF) Orientadora Prof. Dr. Marcio de Souza Castilho (UFF) Prof.ª Dr.ª Regina de Souza Gomes (UFRJ) Prof.ª Dr.ª Lucia Teixeira de Siqueira e Oliveira (UFF) Suplente Prof. Dr. Fábio Cerdera (UFRRJ) Suplente NITERÓI FEVEREIRO/2016
A meus pais, Maria Theresa e Marcos
AGRADECIMENTOS
À Renata Mancini, mais do que professora orientadora, uma amiga incentivadora e preocupada. As palavras de reconhecimento e cobrança da capacidade de seus orientandos refletem sua disposição verdadeira em favor do nosso crescimento acadêmico e pessoal. Poder contar com sua excelência e dedicação ao longo do Mestrado fez toda a diferença.
Às professoras Lucia Teixeira e Silvia Sousa, pela proximidade e disponibilidade no decorrer da pesquisa. As indicações e os questionamentos apresentados não só nas disciplinas da pósgraduação, mas, para além dos espaços formais, nas lembranças espontâneas e carinhosas, marcaram nossa convivência nos últimos dois anos.
À Profª Regina Gomes, por toda a boa vontade e a atenção dedicadas à minha pesquisa, desde a Qualificação, passando por seminários e, até mesmo, em encontros mais casuais. Suas contribuições ajudaram tanto nos trabalhos do Mestrado, como no meu amadurecimento no âmbito da Semiótica.
Ao Prof. Marcio Castilho, pela disponibilidade de compor a banca de defesa e, sobretudo, pela excelência e dedicação nas aulas da graduação em Comunicação, que traduziramse nas bibliografias marcantes e no projeto em Itaipu, o qual pretendo retomar minha participação assim que possível.
Aos demais professores do IACS, em especial, Sylvia Moretzsohn, Larissa Moraes e Silmara Dela da Silva, pelas conversas francas, as grandes aulas e as indicações bibliográficas.
Aos meus pais, Maria Theresa e Marcos Kalil, por todos os investimentos, de diversas ordens, feitos para que eu pudesse chegar onde cheguei. Não conheço figuras paternas com tamanha paciência e vontade de que seus filhos alcancem o que almejam alcançar.
À minha irmã Mariana Kalil, por seus gestos infinitos e sinceros de auxílio.
À minha avó Theresinha, pelo amor incondicional, a presença inabalável e todos os coffee breaks deliciosos.
Aos meus colegas de SeDi, companheiros de vitórias e angústias do diaadia da pesquisa no Brasil. Notadamente, Raiane Nogueira e Mariana Coutinho, as minhas queridas Mancinetes, e Alexandra Robaina, cuja edição da Carta Capital gentilmente cedida consta do corpus desse trabalho.
Ao Felipe Aguinaga, por ter, em concomitância à minha história no Mestrado, sido objeto de admiração e inspiração e o sujeito adjuvante de toda a minha caminhada.
Aos familiares e aos amigos do coração que, de uma forma ou outra, se fizeram presentes neste período, pela torcida e força despendidos sobre mim. Meu muito obrigado a todos!
Somos lo que hacemos, pero somos, principalmente, lo que hacemos para cambiar lo que somos. Eduardo Galeano
RESUMO
A ideia de que os Direitos Humanos existem somente para a defesa de quem transgride a lei difundiuse na contemporaneidade brasileira com o auxílio de parcela da imprensa. Frases como “Direitos Humanos para humanos direitos” e “bandido bom é bandido morto” popularizaramse ao largo do entendimento técnicojurídico acerca da matéria. Debruçarse sobre esse fenômeno mostrase mister para a compreensão do discurso passional em torno dos Direitos Humanos, construído também pela mídia. Por meio do construto teórico da Semiótica francesa, as estratégias enunciativas que caracterizam a passionalização podem ser analisadas em seus pormenores, ensejando o entendimento abrangente da transferência de valores inerente ao fazer persuasivo da comunicação. Para tanto, foram examinados dois casos de ampla repercussão nas revistas Carta Capital e Veja : o ‘Caso João Hélio’, no qual um menino de 6 anos morreu arrastado, após ficar dependurado para fora de um carro roubado por três jovens, no Rio de Janeiro; e o caso do rapaz negro, pobre, acusado de furtos na zona sul carioca, torturado por autodenominados justiceiros de classe média. O trabalho pôde constatar a semelhança das publicações na forjação de alteridades e na suscitação de paixões exacerbadas, apesar da axiologização distinta dos valores de Opressão e Liberdade, que fundeiam os textos relacionados aos Direitos Humanos. Palavraschave: semiótica francesa; direitos humanos; jornalismo; Veja; Carta Capital.
ABSTRACT
The idea that human rights exist only for the defense of those who transgress the law has spread in contemporary Brazilian society with the aid of a portion of the press. Quotes such as "Human Rights for the right humans" and "good bandit is killed bandit" became popular even if they go against the technical and legal understanding of the matter. By looking closer into this phenomenon, it is possible to understand the passionate discourse used by the media regarding human rights. Through the theoretical construct of the French Semiotics, the strategies that characterize this passionate discourse can be analyzed in details, allowing a comprehensive understanding of the values involved in the persuasion process inherent to communication. By examining Brazilian most popular magazines Carta Capital and Veja , in two different cases of widespread repercussion, this study has pointed out their similarities in forging otherness and arrousing exacerbated passions, despite the distinct treatment both give to Oppression and Freedom, the core values which underlie texts related to Human Rights. Keywords: French semiotics; Human Rights; journalism; Veja; Carta Capital.
SUMÁRIO Introdução ... 14 Capítulo 1 Os Direitos Humanos 1.1 Perspectiva históricojurídica dos Direitos Humanos ... 17 1.2 Direitos Humanos no século XXI: novas alteridades ... 21
1.3 A oposição fundamental Opressão x Liberdade como tradução da tensão presente nos Direitos Humanos ... 24 Capítulo 2 O Discurso Jornalístico 2.1 O crer, o saber e o contrato fiduciário entre enunciador e enunciatário ... 28 2.2 A credibilidade e o fazerparecerverdadeiro ... 31 2.3 As estratégias para fisgar o público e seus efeitos ... 33 2.4 A arte política de dizer o que é: as palavrasfetiche e o jornalismo ... 36
Capítulo 3 Análise Semiótica de Veja e Carta Capital 3.1 Veja ... 41
3.2 Carta Capital ... 68
3.3 Carta Capital e Veja ... 73
Considerações finais ... 77
Referências bibliográficas ... 81
Anexos Anexo A (Capa da edição do dia 14 de fevereiro de 2007 da revista Veja) ... 89
Anexo B (Páginas 46 e 47 da edição do dia 14 de fevereiro de 2007 da revista Veja e suas transcrições) ... 90
Anexo C (Páginas 48 e 49 da edição do dia 14 de fevereiro de 2007 da revista Veja e suas transcrições) ... 93
Anexo D (Páginas 50 e 51 da edição do dia 14 de fevereiro de 2007 da revista Veja e suas transcrições) ... 96
Anexo F (Páginas 16 e 17 da edição do dia 19 de fevereiro de 2014 da revista Carta Capital e suas transcrições) ... 101 Anexo G (Páginas 18 e 19 da edição do dia 19 de fevereiro de 2014 da revista Carta Capital e suas transcrições) ... 104 Anexo H (Página 20 da edição do dia 19 de fevereiro de 2014 da revista Carta Capital e suas transcrições) ... 109 Anexo I (Capa da edição do dia 12 de fevereiro de 2014 da revista Veja) ... 113 Anexo J (Páginas 48 e 49 da edição do dia 12 de fevereiro de 2014 da revista Veja e suas transcrições) ... 116 Anexo K (Páginas 50 e 51 da edição do dia 12 de fevereiro de 2014 da revista Veja e suas transcrições) ... 116 Anexo L (Páginas 52 e 53 da edição do dia 12 de fevereiro de 2014 da revista Veja e suas transcrições) ... 120 Anexo M (Páginas 54 e 55 da edição do dia 12 de fevereiro de 2014 da revista Veja e suas transcrições) ... 123 Anexo N (Capa da edição do dia 14 de fevereiro de 2007 da revista Carta Capital) ... 127 Anexo O (Índice da edição do dia 14 de fevereiro de 2007 da revista Carta Capital) ... 128
ÍNDICE DE GRÁFICOS, QUADROS E FIGURAS
ESQUEMA 1: Percurso gerativo de sentido da reportagem da revista Veja sobre o ‘Caso João Hélio’ ... 47 ESQUEMA 2: Esquema passional do medo (formulação nossa) ... 56
FIGURA 1: Veja destaca outras vítimas de classe média. Fonte: Acervo Digital Veja Online ... 45 FIGURA 2: A ordem contém a liberdade os jovens “despudorados” sendo contidos pela polícia. Fonte: Acervo Digital Veja Online ... 45 FIGURA 3: A escolha de vozes e a construção empática do sujeito. Fonte: Acervo Digital Veja Online ... 46 FIGURA 4: O choro de uma mãe, a fabricação da posição de vítima e a delimitação dos espaços de compaixão e identificação. Fonte: Acervo Digital Veja Online ... 51 FIGURA 5: Capa da revista Veja do dia 14 de fevereiro de 2007. Fonte: Acervo Digital Veja Online ... 53 FIGURA 6: Capa da revista Veja do dia 12 de fevereiro de 2014. Fonte: Acervo Digital Veja Online ... 53 FIGURA 7: Título da reportagem seguinte, página 56 da edição 2360 de 12 de fevereiro de 2014. Fonte: Acervo Digital Veja ... 65
GRÁFICO 1: Função percepção. Fonte: Adaptado de MANCINI; TROTTA; SOUZA, 2007, p. 298 ... 61 GRÁFICO 2: Gráfico tensivo do percurso do recrudescimento à minimização. Fonte: editado a partir de LIMA, 2014. p. 61 ... 72
TABELA 1: Classificação dos modos de interação a partir das especificidades sintáxicas de base. Fonte: LIMA, 2014. p. 48 ... 62 TABELA 2: O entrecruzamento das subdimensões da intensidade e da extensidade e seus pares de valências. Fonte: Zilberberg, 2013. ... 66
INTRODUÇÃO
Em seu site pessoal, o editorexecutivo do jornal O Dia, Chico Alves, publicou uma entrevista com a socióloga e exdiretora geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro, entre 1991 e 1994, Julita Lemgruber, dentro de uma série de matérias semanais, denominada “Opção pela barbárie” . O mote das reportagens consiste na pergunta: “Por qual motivo, 1 afinal, a ideia de Direitos Humanos não vingou no Brasil?” De acordo com o jornalista, o humanismo é um conceito “básico em qualquer sociedade civilizada”, mas, no Brasil, “advogados, cientistas sociais e ativistas são acusados de cumplicidade com bandidos”, quando utilizam o argumento dos Direitos Humanos.
“Direitos Humanos para humanos direitos.” A referida máxima, difundida por um semnúmero de apresentadores de TV, jornalistas, defensores da redução da maioridade penal, policiais que tentam justificar sua truculência e boa parte do público que responde às pesquisas de opinião, revela o que o colunista do portal UOL/Folha, Leonardo Sakamoto , 2 espirituosamente demarca como a “morte dos Direitos Humanos.” Ao largo do entendimento técnicojurídico, a opinião publicada parece aterse a uma noção própria da teoria humanista, 3 segundo a qual os Direitos Humanos serviriam apenas para “proteger bandido”, entre outras ideias . 4
Compreender esse processo histórico e discursivo, porém, requer um esforço acadêmico amplo, que transcende esse ou aquele campo do saber e, ainda, postula uma pletora de objetos e recortes. Uma das frentes de pesquisa, no sentido de analisar o status quo de estigmatização dos Direitos Humanos no senso comum brasileiro, objetiva a identificação, por meio do construto teórico da Semiótica francesa, da desreferencialização do discurso técnicojurídico sobre os Direitos Humanos em sua abordagem midiática, ou seja, na empiria
1 ALVES, C. Nova estratégia para os Direitos Humanos. Disponível em:
<http://www.chicoalves.com.br/2016/01/25/novaestrategiaparaosdireitoshumanos/>. Acessado em: 07 de fevereiro de 2016.
2 SAKAMOTO, L. Pai, perdoai. Eles não sabem o que digitam. Disponível em:
<http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2014/12/11/paiperdoaielesnaosabemoquedigitam/>. Acessado em: 21 de dezembro de 2014.
3 Maffesoli (2010) diferencia os conceitos de opinião pública e opinião publicada, rompendo a ideia de que o
discurso midiático necessariamente constitui esse meiotermo das aspirações coletivas. Em realidade, de acordo com o autor, o que se entende cotidianamente como “opinião pública” é a “opinião publicada”, ou seja, o que os meios de comunicação de massa selecionam como fatos e interpretações passíveis de serem publicizados.
das reportagens e matérias jornalísticas, que tratam direta ou indiretamente dos valores propostos pelos Direitos Humanos.
A noção de referencialização nos remete ao conceito de ancoragem (cf. BARTHES, 1984), segundo o qual a polissemia de um plano (verbal ou visual, por exemplo) ou de um texto resolverá sua pluralidade em unidade, com base na indicação de outro plano ou do intertexto. No caso em tela, parece haver um confronto entre as narrativas colocadas pelos intérpretes da doutrina dos Direitos Humanos e aquela publicizada pelos grandes meios de comunicação do Brasil. Algumas notícias não parecem ter, como referencial axiológico, aquele preconizado pelos Direitos Humanos.
Devese observar a justa medida, sob o risco da generalização, buscando a gradação, mais do que o estabelecimento de perfis rígidos e idealizados. A imprensa não é composta por um veículo apenas e, muito menos, uma visada ideológica una. Há, inclusive, a possibilidade de variações dentro de um mesmo jornal, seja transitando entre gêneros jornalísticos diferentes como o opinativo e a grande reportagem , seja mudando o autor da redação jornalística. No entanto, não se faz impossível construir um perfil enunciativo da grande mídia formadora de consenso, estabelecendo uma linha editorial mínima, comum à parcela majoritária das publicações integrantes desse grupo.
Aliás, dado o alcance cada vez maior dos veículos de comunicação, por meio dos antigos, rádio e TV, por exemplo, e dos novos suportes tecnológicos, os smartphones, as redes sociais e todo o arcabouço de novidades da internet, cujos efeitos de sentido de proximidade e realidade tonificamse, o estudo das estratégias de persuasão e transferência de valores em temáticas tão sensíveis na formação cidadã, política e identitária dos indivíduos assume relevância ímpar dentro da pesquisa acadêmica, não perdendo de vista o respaldo e a ressonância sociais do tema em voga.
Da delimitação de inimigos públicos ao inflamado “bandido bom é bandido morto”, o jornalismo assume uma enorme gama de manifestações ao versar sobre Direitos Humanos. A tendência à passionalização do discurso parece ser uma hipótese a se verificar. Como se constrói essa estratégia enunciativa em publicações de grande circulação? Há veículos menos ou mais passionais? A apuração de tais interrogações enseja a investigação científica de especialistas do discurso e da significação.
Para iniciar a formação do entendimento acerca da desreferencialização do discurso midiático sobre Direitos Humanos de seu bojo teóricojurídico, buscase entender o discurso
passional jornalístico em temáticas afins aos Direitos Humanos por meio da seguinte estrutura de trabalho. Propõese um primeiro capítulo, no qual os Direitos Humanos serão detalhados em suas perspectivas históricojurídica, internacionalista, identitária e, por fim, uma breve interface de seus valores mais básicos, apresentados até ali, com o instrumental basilar da Semiótica. No segundo capítulo, o discurso jornalístico será posto em face dos desenvolvimentos da Semiótica. Dessa maneira, permitese acessar definições tradicionais do jornalismo, como a credibilidade e a isenção, a partir de vieses científicos, que trazem novos olhares para definições pacificadas, sobretudo no âmbito pragmático. Por fim, no terceiro capítulo, o trabalho e seu objeto colocamse em plenitude com a análise de duas publicações semanais de formato semelhante, mas com leitores orbitando em torno de centros valorativos e ideológicos opostos: Carta Capital e Veja.
Serão analisadas as coberturas de ambas as publicações acerca do ‘Caso João Hélio’, ocorrido em fevereiro de 2007, quando um menino de 6 anos morreu ao ser arrastado por um carro roubado por três jovens. João Hélio não conseguiu sair do veículo à tempo e ficou pendurado por um longo trecho para fora do automóvel pelo cinto de segurança. Além disso, o episódio da tortura do menino negro, pobre e acusado de furtos na zona sul carioca, em que autodenominados justiceiros da classe média espancaramno e acorrentaramno nu a um poste, em fevereiro de 2014, também será abordado. A escolha do corpus , neste caso, observa a figurativização das vítimas: uma mais ligada ao estereótipo das classes médias brancas e outra, das classes populares negras. 1. OS DIREITOS HUMANOS 1.1 PERSPECTIVA HISTÓRICOJURÍDICA DOS DIREITOS HUMANOS
Os Direitos Humanos apresentamse como a resposta mais concreta às questões filosóficas acerca dos valores universais do ser humano (COMPARATO, 2008). De fato, em sua fase mais recente de internacionalização, pós1948, as diretrizes globais buscaram salvaguardar parâmetros protetivos mínimos, também conhecidos como “mínimo ético irredutível” (PIOVESAN, 2014), em um esforço de mediar (e respeitar) assimetrias entre as diversas culturas e sociedades ao redor do mundo.
O conceito de humanidade mostrase central para a presente análise e está atrelado ao que se conhece por civilização. Segundo LévyStrauss (1973), os povos que não participaram desse movimento civilizatório marcadamente ocidental, vale dizer não possuem em seu léxico uma palavra para designar o ser humano: “homens” seriam aqueles que integram seu grupo, enquanto o Outro, o estranho, possui uma designação diferente, a significar que se trata de indivíduos de outra espécie animal. A civilização, portanto, circunscrevese à gestão da alteridade EuOutro , podendo materializarse na dicotomia sujeito fraco x sujeito forte, como posto por Ferrajoli (2002, p. 338): “os direitos humanos simbolizam a lei do mais fraco contra a lei do mais forte, na expressão de um contrapoder em face dos absolutismos, advenham do Estado, do setor privado ou mesmo da esfera doméstica.”
Comparato (2008) estabelece uma periodização da Afirmação histórica dos Direitos Humanos, importante para o entendimento abrangente do humanismo. Em sua obra, o jurista identifica, em ampla perspectiva, os momentos históricos mais importantes que concorreram para a construção da noção moderna de Direitos Humanos. Partindo do século XI a.C., passando por Roma e Atenas, sem esquecer da Baixa Idade Média, do Iluminismo e das Revoluções Francesa e Americana, a historização culmina com a luta pelos direitos sociais e econômicos, a partir do século XIX, e a internacionalização dos Direitos Humanos.
Na primeira fase apresentada por Comparato (2008), a protohistórica, nos séculos XI a X a.C., há o embrião daquilo que, tempos depois, passou a ser designado como o Estado de Direito, o regime no qual os governantes submetemse aos princípios e normas dispostos por autoridade superior e não por direito criado especificamente para justificar o seu poder. Davi, o reisacerdote do reino unificado de Israel e “delegado de Deus”, viase limitado pela lei divina em contraste com os demais monarcas da época, que se autoproclamavam deuses e, por isso, podiam legislar e dizer o que era justo ou não.
As primeiras instituições democráticas em Atenas, no século VI a.C., inspiraramse em Davi, e tinham as bases de sua democracia na lei e na participação ativa do cidadão nas funções do governo. Na república romana, por sua vez, a limitação do poder político foi alcançada não pela soberania popular ativa, mas graças à instituição de um complexo sistema de controles recíprocos entre os diferentes órgãos políticos. A esse mecanismo de checks and balances seria atribuído o êxito da expansão romana à quase totalidade da terra habitada, segundo Comparato (2008).
Retornando à Atenas, a lei escrita, o fundamento daquela sociedade política, suplantou a soberania de um indivíduo ou grupo social. Vista como o antídoto contra o arbítrio governamental e em conjunto com a lei nãoescrita (os costumes), ajudaram a compor o arcabouço dos Direitos Humanos, séculos mais tarde.
Entre os séculos VIII e II a.C., em um período denominado como Axial por Comparato, coexistiram sem conhecimento mútuo, grandes doutrinadores, tais como Zaratustra, na Pérsia, Buda, na Índia, LaoTsé e Confúcio, na China, Pitágoras, na Grécia, e o DêuteroIsaías, em Israel. Em perspectiva ampla, a importância desses indivíduos se dá no abandono de explicações mitológicas e o estabelecimento de visões de mundo que prevalecem até hoje. No “século de Homero”, o século VIII a.C., Isaías elabora o autêntico monoteísmo, em Israel, rompendo com o mítico politeísmo. No “século de Péricles”, V a.C., tanto na Ásia, quanto na Grécia, nasce a filosofia ao se substituir, pela primeira vez na História, o saber mitológico da tradição pelo saber lógico da razão. O indivíduo ousa exercer a sua faculdade de crítica racional da realidade (ibidem, p. 812).
Para Comparato (2008), há uma tendência geral à racionalização, inclusive na religião, que pode ser confundida como o germe dos Direitos Humanos. Na China, por exemplo, em lugar dos antigos cultos da natureza, desenvolvese a veneração aos antepassados como modelos éticos para as novas gerações. As ideias de imortalidade da alma, Julgamento Final, atuação divina sobre o mundo através do Espírito Santo, criadas por Zaratustra, são assimiladas pelo judaísmo e, então, passadas ao cristianismo e islamismo. O monoteísmo, aos poucos, supera o nacionalismo religioso e estabelece a primeira globalização: o culto universal a um Deus único e, no caso do cristianismo, a exigência do amor universal. Assim, são lançadas as bases para a compreensão da igualdade essencial, do homem dotado de liberdade e razão, verdadeiras sementes dos conceitos da pessoa humana e de direito universal.
Na Baixa Idade Média, na sequência da periodização proposta por Comparato (2008), surgiram os primeiros instrumentos de limitação do poder do monarca, ainda que muito idealizados e restritos às classes superiores. A Declaração das Cortes de Leão (1188) e, sobretudo, a Magna Carta (1215) foram corolários de demandas populares frente às Monarquias. Esta consiste em documento assinado pelo rei João, na Inglaterra, renunciando a certos direitos e respeitando procedimentos legais, sujeitandose ao império da lei o primeiro passo de um longo caminho que levaria ao constitucionalismo. Aquela é considerada o protótipo do parlamentarismo moderno, experimentado no Reino de Leão, no Noroeste da Península Ibérica, onde o monarca reuniu para consultas não só aristocratas e bispos, mas também a burguesia (ibidem, p. 7175).
Comparato (2008) ainda destaca o papel preponderante das invenções técnicas entre os séculos XI e XIII, como paradigma de sinergia entre tecnologia e Direitos Humanos nas modificações da visão de mundo e das relações sociais.
Na história moderna, esse movimento unificador [de convergência da humanidade sobre si; ou seja, à biosfera geral sucede a antroposfera] tem sido claramente impulsionado, de um lado, pelas invenções técnicocientíficas e, de outro lado, pela afirmação dos direitos humanos. São os dois grandes fatores de solidariedade humana, um de ordem técnica, transformador dos meios ou instrumentos de convivência, mas indiferente aos fins; o outro de natureza ética, procurando submeter a vida social ao valor supremo da justiça, (2008, p. 33)
Para o autor, o século XVII é apontado como uma época de profundo questionamento das certezas até então solidificadas. Em todos os campos político, artístico, literário, científico grandes discussões questionaram as ideias estabelecidas. O processo culminaria no Iluminismo, na Revolução Científica, na criação do habeas corpus , instrumento que privilegiava a liberdade frente ao Estado Leviatã, e do Bill of Rights , estatuto de liberdades civis e políticas, essenciais para a ascensão da burguesia e a noção de indivíduo, como sujeito de direitos (ibidem, p. 9294).
A Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, em 1776, como marco da Independência Americana, constitui outra baliza que auxilia na compreensão da afirmação histórica dos Direitos Humanos. Seu texto traz, pela primeira vez, uma razão de ser imediatamente aceitável por todos os povos, em todas as épocas e civilizações uma razão universal como a própria pessoa humana: a busca pela felicidade (ibidem, p. 115123).
Artigo 1° Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, pôr nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os
meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança. (tradução livre) 5
Em 1789, durante a Revolução Francesa, a paradigmática Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão dará novo fôlego aos ideais de direitos inatos, liberdade e igualdade de povos, cuja semente fora plantada na Revolução Americana. A importância do documento e, em maior escala, das circunstâncias em que se inscreve marcarão a gênese da Idade Contemporânea, dos conceitos de direitos humanos e direitos fundamentais políticocivis, além da noção comum de indivíduo (COMPARATO, op. cit., p. 151153).
Inicialmente, relegados a um segundo plano nas revoluções do século XVIII, os direitos sociais e econômicos entraram na pauta de reivindicações no século XIX com a pauperização da classe trabalhadora e o avanço do capitalismo. Assim, as revoluções liberais, sobretudo a de 1848, em Paris, começam a discutir as condições de trabalho e outros direitos do ser humano, em relevo o trabalhador urbano. Toda essa discussão culminará nas Constituições do México de 1917 e de Weimar, em 1919, na Alemanha, as quais, de forma pioneira, positivaram os direitos sociais e econômicos, equiparandoos aos direitos políticocivis (ibidem, p. 167 et seq.).
Entre o final do século XIX e a 2ª Guerra Mundial, iniciouse o processo de internacionalização dos Direitos Humanos ( ibidem, p. 200 et seq.), passando de postulados ocidentais a corolários universais. O direito humanitário e a luta contra a escravidão foram alguns dos temas abordados por convenções internacionais, entre as quais se destacam a Convenção de Genebra de 1864, a fundação da Cruz Vermelha, em 1880, o Ato geral da Conferência de Bruxelas, em 1890, e a criação da Organização Internacional do Trabalho, em 1919. Será no pósguerra, porém, que a internacionalização dos Direitos Humanos e as ideias de fraternidade e direitos difusos integrarão o estado de coisas. Buergenthal explicará com precisão a compreensão mais atual dos Direitos Humanos:
O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pósguerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às gravíssimas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse. (1988, p. 17)
5 “Section 1. That all men are by nature equally free and independent and have certain inherent rights, of which,
when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and safety.” (Wikipedia. Virginia Declaration of Rights. Disponível em:
A Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), de 1948, colocase como o referente dessa nova era de normatização extraestatal. “Fortalecese a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional” (PIOVESAN, 2014, p.7). A DUDH estabelece o horizonte de direitos que influenciará todo o período ulterior, além de erigir a gramática contemporânea dos direitos humanos, cujo teor abrange as noções de universalidade e indivisibilidade . 6
A Afirmação histórica dos Direitos Humanos , uma proposta do jurista Fábio Konder Comparato, tornouse um cânone do estudo dos Direitos Humanos no Brasil por mostrar que a concepção humanista abarca valores que vêm sendo construídos desde os primórdios da vida em sociedade. Tal abordagem afasta o senso comum de que os Direitos Humanos surgiram apenas com a Revolução Francesa, em 1789, ou como consequência da redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Sua leitura propicia, ao final, um encontro com as bases axiológicas que estão no centro da noção técnicajurídica dos Direitos Humanos.
1.2 DIREITOS HUMANOS NO SÉCULO XXI: NOVAS ALTERIDADES
A anuência à periodização supramencionada não dispensa a recente Ciência Política e Teoria das Relações Internacionais, as quais nos auxiliam na tarefa de compreender os Direitos Humanos na sua faceta atualizada de fins do século XX e início do século XXI. A positivação dos Direitos Humanos na DUDH não significa automaticamente sua prática por parte de todas as nações. Mesmo na segunda década do século XXI, o conteúdo do documento ainda serve mais como horizonte de direitos. Nesse sentido, a priorização ideológica de alguns direitos, em detrimento de outros mesmo que todos estejam dispostos em igual importância na DUDH, de 1948 , pôde ser observada já durante a Guerra Fria. O mundo acompanhou o embate entre o Ocidente judaicocristão, sujeito dos direitos políticocivis, e o Oriente, objeto cuja bandeira eram os direitos sociais e econômicos. Houve conflito voluntário entre dois projetos de poder. Essa disputa estabeleceu uma relação excludente entre os direitos de
6 “Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de
pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos [...] Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e viceversa. Quando um deles é violado, os demais também o são.” (PIOVESAN, 2014, p. 8)
primeira geração, o Eu, e os de segunda geração, o Outro. Com a queda do Muro de Berlim, os direitos sociais e econômicos, ainda que dispostos como essenciais no horizonte de direitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ficaram relegados, no ambiente pragmático, à primazia do Eu, representado pela vitória ocidental e a supremacia dos direitos políticocivis (cf. CAMPBELL, 1998).
Nos anos 1970 e 1980, os governos norteamericano e britânico, por meio de figuras como os presidentes republicanos Richard Nixon e Ronald Reagan, e a primeiraministra Margareth Thatcher inauguraram a “segunda Guerra Fria” (SARAIVA, 2010). Os referidos estadistas, libelos do Liberalismo, forjaram não somente o objeto tradicional, o inimigo comunista, mas, agora, o narcotráfico e o terrorismo. Se o terrorismo viria, pósqueda do Muro de Berlim, a substituir o comunismo, como o Outro oriental das relações internacionais ocidentocêntricas, a guerra contra o narcotráfico miraria o Sul, refletindo sobremaneira no discurso políticomidiático da América Latina.
Conhecida como War on Drugs , a campanha de proibição do uso de drogas com o suposto objetivo de coibir o tráfico ilegal de entorpecentes, iniciada pelo governo Nixon, em 1971, foi considerada um fracasso pela Comissão Global de Políticas sobre Drogas (GCDP, 7 na sigla em inglês), em 2011. A atividade do grupo foi inspirada justamente nos trabalhos de 2009 da Comissão Latinoamericana sobre Drogas e Democracia, a qual explorou os efeitos nocivos da política de controle global de drogas sobre a cultura e a sociedade locais. A assunção do narcotraficante como inimigo público número um dos centros urbanos latinoamericanos, a criminalização do uso de drogas e o acirramento da percepção de insegurança são efeitos da War on Drugs que vieram a se somar às assimetrias sociais e raciais históricas desses países (cf. RODRIGUES, 2003).
Nesse contexto, países como o Brasil enfrentaram o que se entende como onda punitiva, criminalização da pobreza e guerra aos pobres (cf. WACQUANT, 2003). Em 2014, o Brasil ultrapassou a Rússia e passou a ter a terceira maior população carcerária do mundo . 8
7 “A guerra global contra as drogas falhou com consequências devastadoras para indivíduos e sociedades ao
redor do mundo”, informou a GCDP, em 2011, no relatório apresentado sobre as políticas de “Guerra às Drogas”. WIKIPEDIA. War on Drugs . Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/War_on_Drugs>. Acessado em: <14 de janeiro de 2015.
Entre 1992 e 2013, o crescimento do número de presos foi da ordem de 400% . Esse quadro 9 foi possível, entre outros motivos, pela inflexão de humores da percepção comum acerca dos Direitos Humanos. A opinião publicada passa a enxergar nas políticas de segurança pública, análogas à War on Drugs , a solução para o combate do seu Outro, o narcotráfico. Como tais medidas de segurança usualmente esbarram na legalidade e no cumprimento do princípio da dignidade da pessoa humana, os Direitos Humanos, na sua cruzada pela preservação do Estado Democrático de Direito, acabam por tornarse um paradoxal obstáculo no caminho para a estabilidade sonhada pelo cidadão médio urbano.
No plano internacional, o atentado às Torres Gêmeas em Nova York, no 11 de setembro, representou o ápice dessa “segunda Guerra Fria” com o recrudescimento dos maniqueísmos binários das narrativas midiáticas e políticas. As repercussões no imaginário coletivo no que diz respeito à gestão da alteridade nos espaços públicos são merecedoras de especial análise:
O mundo não é estranho às perspectivas maniqueístas. Indivíduos e sociedades comumente usam binários de oposição para entender fenômenos sociais: o bem contra o mal, racional versus irracional, e moderno x tradicional etc. Apesar disso, havia sinais nos anos 1990 que as visões de mundo maniqueístas estavam erodindo no Ocidente. [...] Os eventos do e em resposta ao 11 de Setembro mudaram atitudes internacionais (e, sobretudo, nos EUA) frente às negociações inclusivas de paz. A arena internacional, que encorajou a realização de acordos negociados, repentinamente fechouse. A Guerra ao Terror inaugurou uma nova era maniqueísta deles versus nós. (tradução livre, GINTY, 2012) 10
O pano de fundo da Guerra ao Terror e da War on Drugs , com seus próprios binarismos, constitui peça fundamental na compreensão da lógica por trás das coberturas de imprensa das temáticas de segurança e Direitos Humanos. A demonização do narcotraficante e até da pequena criminalidade urbana vem à reboque do entendimento de que os Direitos Humanos colocamse como seus defensores absolutos. O descolamento da noção
<http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/06/1465527brasilpassaarussiaetematerceiramaiorpopulac aocarcerariadomundo.shtml>. Acessado em: 14 de janeiro de 2015.
9 VEJA. População carcerária do Brasil cresce 400% em 20 anos. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/populacaocarcerariadobrasilaumentou400em20anos>. Acessado em: 14 de janeiro de 2015.
10 Segue o original em inglês: “The world is no stranger to Manichean worldviews, with individuals and societies
often reaching for oppositional binaries to understand social phenomena: good versus evil, rational versus irrational, and modern versus traditional etc. Yet, there were signs in the 1990s that Manichean worldviews were eroding in western capitals. The 1990s was the period of inclusive peace processes in which combatants were urged to come in from the cold and negotiate. [...] The events of and response to 9/11 changed international (mainly US) attitudes to inclusive peace negotiations. The international space that had encouraged combatants to investigate negotiated settlements became more closed. The War on Terror ushered in a renewed Manichean era of them versus us.” (GINTY, 2012)
técnicojurídica dos Direitos Humanos obedece a esse funcionamento discursivo do “Ameo ou Deixeo”: ao lado do Outro, não há direitos, nem garantias.
Se, por um lado, a Afirmação histórica dos Direitos Humanos permite uma aproximação com o entendimento dogmático e idealizado dos DHs, por outro, a conceptualização pragmática e contextualizada no pósqueda do muro de Berlim atualiza sua compreensão. Sob a luz das grandes políticas de controle e ordem, os Direitos Humanos parecem ser ressignificados por setores da população e pela mídia, cada vez mais onipresente em virtude das tecnologias de comunicação e informática. Assim, tornase urgente o estudo da forma como esse discurso é construído na mídia brasileira e como acepções esvaziadas do seu conteúdo original passam a ganhar corpo na dinâmica de circulação dos textos da grande imprensa.
1.3 A OPOSIÇÃO FUNDAMENTAL OPRESSÃO X LIBERDADE COMO TRADUÇÃO DA TENSÃO PRESENTE NOS DIREITOS HUMANOS
A história da construção do ideário dos Direitos Humanos, como observado anteriormente, compõe valores opostos de opressão e liberdade. Na esteira da trama histórica da Humanidade, a sucessão de arbitrariedades e violências levou à formulação de freios e contrapesos, os quais representam racionalizações limitantes dos desmandos passionais e das estruturas de poder desiguais. A constituição dos Direitos Humanos, portanto, representa esse esforço da razão e das regularidades frente às paixões e o descontínuo afinal, o Estado Democrático de Direito e o princípio da dignidade da pessoa humana trazem segurança e previsibilidade jurídicas para os sujeitos de direito.
No caso dos direitos humanos, o seu cerne é a luta contra a opressão e busca do bemestar do indivíduo; consequentemente, suas “ideiasâncoras” são referentes à [...] liberdade, cujo conteúdo impregna a vida social desde o surgimento das primeiras comunidades humanas. (RAMOS, 2015, p. 31)
Diversas figuras serviram para ilustrar as categorias semânticas da opressão e da liberdade. O Estadonação, por exemplo, pode recobrir tanto o polo opressivo, quanto o polo da liberdade, dependendo do recorte histórico ou ideológico. Sua assunção, na Idade Moderna, representou a possibilidade do controle social do despotismo real e a renovação de formas antigas de organização política, como a República e a Democracia representativa. Tal visada obedece aos auspícios da liberdade. No entanto, o monopólio estatal do uso da força e
a instrumentalização de sua organização burocrática por oligarquias representam características associadas à opressão. A polícia, encarregada da proteção dos cidadãos, muitas vezes incorre em atos violentos contra quem deveria proteger. Outrossim, o Estado pode atender mais a interesses de grupos específicos do que observar o interesse público.
A compreensão dos Direitos Humanos com base na tensão entre opressão e liberdade obedece aos desenvolvimentos iniciais da Semiótica francesa, cuja gênese é atribuída a Algirdas Julien Greimas, como um “projeto” (FIORIN, 2008. p. 133), não como um produto acabado, em continuidade às disposições de Saussure e Hjelmslev. Em uma virada pragmática da Linguística, Greimas constata que só a langue não dará conta dos estudos de linguagem. Ao Estruturalismo, agregase a Semântica, gestando o projeto da Semiótica, sob a ideia de que o ponto de vista, o recorte, cria o objeto, a totalidade para a Semiótica. O construto teórico, criado pelo linguista lituano, inspirase também na teoria narrativa do estruturalista russo Vladimir Propp e, com o consequente retorno oferecido por objetos de estudo gradativamente mais complexos como os textos sincréticos , chega aos mais recentes desenvolvimentos da 11 Semiótica, representados pela abordagem tensiva, por exemplo. Outras influências mais significativas são Benveniste, no campo da Linguística da Enunciação, e MarleauPonty, em seu parecer do sentido, da Fenomenologia.
Ao criar um modelo de análise para determinar a significação, Greimas baseouse no princípio proppiano. Propp buscava invariantes de contos populares para chegar ao que chamava de “funções”, fazeres dos personagens estabelecidos por seu papel na história. Partindo das análises proppianas, Greimas propõe uma sistematização daquelas funções no programa narrativo. Este, por sua vez, integra um dos níveis do que veio a ser a base do modelo greimasiano: o percurso gerativo de sentido.
[...] uma rede hierarquizada de dependências em que cada um dos níveis mais profundos converte seus dados semânticos e sintáxicos, articulandoos e especificandoos no momento de sua passagem ao grau superior. [...] O percurso gerativo mostra os materiais que a enunciação mobiliza para se realizar e que ele constitui, por isso mesmo, um modelo enunciativo. (BERTRAND, 2003, p. 4748
Esse “simulacro metodológico de abstrações” (FIORIN, 2008. p. 126) prevê três níveis de concretização do sentido, preenchidos por sintaxe e semântica: o fundamental, que comporta categorias antagônicas basilares; o narrativo, cujas transformações e estados representam as ações do homem no mundo; e o discursivo, que comporta as figuras e os
11 Fiorin (2003) explica o que são textos sincréticos: “[...] aquele cujo conteúdo se manifesta por mais de uma
temas da superfície do texto. Nessa instância, há a proximidade ao plano de expressão, que veicula o conteúdo, e as isotopias . O plano de expressão apresentase como responsável pela 12 manifestação sensorial do conteúdo: verbaloral, gestual, verbalescrito etc. O plano de conteúdo, por sua vez, “é onde a significação nasce das variações diferenciais graças as quais cada cultura, para pensar o mundo, ordena e encadeia ideias e discurso” (FLOCH, 2001, p. 6). A articulação de um plano de expressão com um plano de conteúdo estabelece a função semiótica, ideia central para o projeto da Semiótica.
Acerca das isotopias e do nível discursivo, Bertrand disserta:
O nível figurativo traz o primeiro ponto problemático: o da coerência discursiva. Nele, há um continuum semântico, uma isotopia comum que tece uma ligação entre cada figura, uma recorrência de uma categoria significante (ou de uma rede de categorias) no decorrer do desenvolvimento discursivo. As ligações são asseguradas por repetições e por operadores anafóricos, remetendo de um a outro enunciado garantem a permanência da isotopia discursiva. Nesse primeiro nível de leitura, há a espacialização, a temporalização e a actorialização. As isotopias se estabelecem também pelos elos anafóricos que garantem a continuidade da leitura do sentido. Ao cabo, as isotopias são construídas pela competência discursiva do leitor, que preenche as elipses predicativas. (2003, p. 38)
Hénault aborda os demais níveis e a importância metodológica do percurso gerativo:
No nível profundo, reconhecerase a pertinência do modelo constitucional (quadrado semiótico), no nível intermediário, chamado de narrativo, as estruturas características da narratividade comandavam toda a constituição dos enunciados [...] Ao providenciar para si uma teoria do discurso que era uma reflexão sobre o seu fazer, de acordo com todas as injunções de Saussure, a semiótica garantia a coerência de seus conceitos operatórios, o que lhe dava uma vantagem sobre as diversas linguísticas, epistemologicamente menos sólidas. (2006, p. 145)
Em textos que abordam os Direitos Humanos, portanto, a oposição fundamental Opressão x Liberdade tende a se colocar na base do percurso de significação. O semioticista poderá fazer seu recorte do objeto, a partir da tensão dessas categorias semânticas. Elas estruturam o discurso na medida em que se concretizam nos programas narrativos, as transformações do sujeito no fazer constituinte da sua identidade, e nas figuras e nos temas encontrados na superfície textual.
Os Direitos Humanos e as políticas públicas de combate à criminalidade, por exemplo, trabalham com as temáticas de segurança e liberdade. Em sociedades nas quais a segurança consiste em um bem jurídico privilegiado, as liberdades os direitos, as garantias e as prerrogativas do indivíduo são postas em segundo plano. O coletivo sobrepõese ao
individual na medida em que os meios para atingir os padrões de segurança estabelecidos em sociedade esbarram nas liberdades individuais. Dessas, os sujeitos de direito terão que abrir mão.
Não obstante os ideais do Liberalismo, os norteamericanos agiram, no pós11 de Setembro, com o fito de implantar um amplo aparato de espionagem, controle e polícia globais (cf. GINTY, 2012). Nos aeroportos daquele país e, gradativamente, em todo o mundo, barreiras de fiscalização obrigam passageiros a escrutínios não raro vexatórios. O referido exemplo, ainda que de natureza singela, demonstra o quanto um determinado grupo social pode afastarse da fidúcia e da solidariedade com o objetivo de sentirse mais seguro. Em um determinado recorte, a priorização da segurança pode ser vista como concretização da Opressão, perquirida, assim, de forma positiva pelo observadoranalista. Kant aborda a questão em visada otimista:
Os povos da terra entraram assim, em graus variados, numa comunidade universal, e ela se desenvolveu a tal ponto que uma violação de direitos em uma parte do mundo é sentida em todos os lugares. A idéia de um direito do cidadão cosmopolita não é, portanto, fantástica ou exagerada; é um complemento necessário ao código nãoescrito do direito político e internacional, transformandoo num direito universal da humanidade. Somente sob essa condição podemos nos orgulhar de estarmos avançando continuamente no sentido de uma paz perpétua (1991, p. 108)13
O viés humanista, por outro lado, promove a Liberdade sobre a Opressão e, nesse sentido, enxerga nas medidas de segurança que obedecem às “políticas de Lei e Ordem” (cf. COUTO NETO, 2009) um cerceamento da liberdade. A acepção de liberdade, aqui proposta, relacionase às ideias de direitos e garantias, espaço políticosocial de exercício de prerrogativas do sujeito, essencial para a afirmação de sua existência. Qualquer atividade que diminua essas conquistas é vista como um ataque ao Estado Democrático de Direito.
Portanto, as categorias contrárias fundamentais Opressão x Liberdade complexificam a dicotomia proposta pela teoria humanista (cf. GUNTHER, 2009) entre liberdade e segurança. Essa leitura semiótica do debate jurídico será importante no decorrer da análise do presente trabalho para que haja a interface entre a ideia de Direitos Humanos e a cobertura midiática de fatos afins ao tema.
13 “Since the narrower or wider community of the peoples of the earth has developed so far that a violation of
rights in one place is felt throughout the world, the idea of a law of world citizenship is no highflown or exaggerated notion. It is a supplement to the unwritten code of the civil and international law, indispensable for the maintenance of the public human rights and hence also of perpetual peace. One cannot flatter oneself into believing one can approach this peace except under the condition outlined here.”
2. O DISCURSO JORNALÍSTICO
2.1 O CRER, O SABER E O CONTRATO FIDUCIÁRIO ENTRE ENUNCIADOR E ENUNCIATÁRIO
A comunicação possui uma pletora de acepções possíveis. Em um determinado momento histórico, a partir de um ponto de vista específico de determinadas ciências, o ato de comunicar foi entendido como um fluxo unidirecional com sua gênese em um polo emissor, recebido uniformemente pelo polo receptor. Estudos dos meios de comunicação de massa em meados do século XX utilizaramse desse paradigma para a construção de teorias que se fundaram em uma percepção neutra dos atores da comunicação (cf. BARROS, 2006).
A semiótica francesa, por sua vez, rompeu com a neutralidade dessa transferência de um /saber/ e instituiu, no âmbito do sujeito da enunciação, um persuadir. Para os semioticistas, todo ato de comunicação envolve um fazer persuasivo, mesmo os textos que não tenham imediatamente reconhecível o viés argumentativodialético. O caráter persuasivo da comunicação se dá porque o enunciador se utiliza de estratégias as quais deixam invariavelmente marcas da enunciação no texto tal que o enunciatário entre em conjunção com seus valores. Esse processo persuasivo desvelase na ligação das dimensões pressuposta e projetada do texto. O sujeito da enunciação encontrase pressuposto, mas o texto, uma “unidade autônoma de dependências internas” (HJELMSLEV, 1991. p. 29), ainda possui sua narrativa projetada, o enunciado, imediatamente disponível para o polo receptivo. Assim, um enunciador irônico pode efetivamente dizer algo na narrativa projetada, querendo significar o oposto na narrativa pressuposta (cf. FIORIN, 2013).
A esse fazer persuasivo contrapõese um fazer interpretativo. Assim, anterior ao fazersaber, inerente aos meandros comunicativos, encontrase um fazercrer, um contrato fiduciário de base que dará legitimidade para que a enunciação, como um projeto de convencimento do enunciador frente a um enunciatário, obtenha sucesso. Afinal, “o discurso é esse lugar frágil em que se inscrevem e se leem a verdade e a falsidade, a mentira e o segredo” (GREIMAS, 2014, p. 80).
O editorial de um jornal, cujo públicoalvo é a classe média, ao abordar a questão da violência urbana, legitimando a atuação por vezes violenta da polícia como um “mal menor”
diante do objetivo de “pacificação”, poderá soar como falso será que há a possibilidade de compatibilização entre pacificar e violentar? , contendo um segredo a parceria velada e o apoio institucionais às políticas públicas do governo estadual ou uma mentira a de que seriam imparciais e independentes , dependendo do contrato de veridicção estabelecido com leitores não tão enquadrados no seu perfil de enunciatário. A comunicação persuasiva e interpretativa prevê uma dupla contribuição do enunciador e do enunciatário em um acordo tácito que permite, inicialmente, o êxito (ou não) da persuasão e sua transferência de objetosvalor o fazercrer e, em última análise, da sanção, que estabilizase em um fazersaber (cf. BARROS, 2002).
Nesse sentido, o que viemos chamando de comunicação manifestase no nível semionarrativo nas etapas de manipulação e sanção, duas das quatro fases da “sequência canônica”:
Na fase de manipulação, um sujeito age sobre outro para leválo a querer e ou dever fazer alguma coisa. [...] Na fase de competência, o sujeito que vai realizar a transformação central da narrativa é dotado de um saber e/ou poder fazer. [...] A performance é a fase em que se dá a transformação (mudança de um estado a outro) central da narrativa. [...] A última fase é a sanção. Nela ocorre a constatação de que a performance se realizou e, por conseguinte, o reconhecimento do sujeito que operou a transformação . (FIORIN, 2013, p. 2931)
Na manipulação, podese dizer que ocorre, na dimensão cognitiva do discurso, um ato epistêmico, um crer que implica em uma transformação, a passagem categórica de um “estado de crença” para outro (cf. GREIMAS, op. cit.). Passase a aceitar o que se duvidava ou admitir o que era negado. Posteriormente, o ato epistêmico pode ser convertido em um fazer interpretativo e em processo discursivo. A instância interpretativa lidará com procedimentos retóricos variados, como a demonstração e a argumentação, para que, ao final, reduza sua dinâmica ao reconhecimento e à identificação na etapa da sanção. Interpretar, então, significará verificar a adequação do que se propõe como novo e desconhecido ao que reside velho e conhecido no interior do universo cognitivo de quem interpreta . 14
No esteio do curso de adequarse e identificarse, realizamse operações no nível profundo, onde as modalidades epistêmicas (certeza, probabilidade, exclusão e incerteza),
14 O conceito de leitura, proposto por Greimas, auxilia a entender melhor essa ideia de adequação,
reconhecimento e identificação: “ [...] confrontar a mensagem recebida com o universo referencial do saber do destinatário. Integração do desconhecido ao conhecido, da autenticação do primeiro pelo segundo.” (2014, p. 136)
produzidas pelo ato epistêmico, e as modalizações (afirmar, admitir, recusar e duvidar) organizamse em função da operação juntiva em relação aos dois objetos considerados.
As modalizações epistêmicas, porém, são graduais e não categóricas. /afirmar/ e /recusar/ são polarizações extremas e não contradições. Uma vez binarizado, o eixo /afirmar/ vs /recusar/ se torna a categoria fundamental da lógica /asserção/ vs /negação/. Os percursos sintáticos elementares da recusa à afirmação, passando pela admissão, e da afirmação à recusa, passando pela dúvida, explicam o funcionamento semiótico do discurso. Assim, podese /duvidar/ mais ou menos, /admitir/ mais ou menos, mas não se pode /afirmar/ ou /recusar/ mais ou menos. (ibid., p. 110)
Os protagonistas da cena de comunicação necessitam de um mínimo de confiança mútua para o estabelecimento do contrato de veridicção, de fidúcia. Essa proposição de consenso iniciada pelo enunciador comporta o ato epistêmico do aceite ou recusa pelo enunciatário. “Entre essas duas instâncias e essas duas atitudes se organiza o espaço cognitivo da persuasão e da interpretação, que corresponde, no plano das estruturas semionarrativas, ao vasto maquinário da manipulação e da sanção.” (ibid. p. 120).
O sujeito deverá observar a existência de duas formas principais de manipulação: a pelo querer , na tentação ou na sedução, e a pelo dever, na ameaça ou na provocação. Ambas são operações factitivas (de “fazer fazer”), as quais montam simulacros capazes de colher a adesão do sujeito manipulado. Contudo, há também a manipulação pelo saber, no qual a factitividade nasce sob variadas formas de argumentação ditas lógicas. Em face da manipulação pelo saber, o sujeito epistêmico enfrenta demonstrações científicas e outras proposições racionais ou aléticas. Exemplificativamente, as modalidades aléticas (necessidade, possibilidade, contingência e impossibilidade da ordem do falso ou verdadeiro) e, de outro lado, as modalidades epistêmicas (certeza, probabilidade) possuem diferenças de estatuto estrutural. A primeira parece articulada por oposições categóricas, francas, enquanto as últimas, ao contrário, são graduais e graduáveis. Analisar essas diferenças, articulando o fiduciário e o lógico, o crer e o saber, parece fundamental para desenhar as melhores estratégias que prevejam a adequação do enunciado recémchegado às formas semióticas já assumidas pelo universo cognitivo de referência. (cf. GREIMAS, 2014)