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O ‘Caso João Hélio’ foi curiosamente ignorado pela revista       Carta Capital   . A edição nº        431 (ver Anexo O), ano XIII, de 14 de fevereiro de 2007, o primeiro número publicado após o        ocorrido, traz em sua capa uma reportagem sobre o “Poltergeist em Rondônia”, um texto        quase escapista acerca de supostas manifestações sobrenaturais na floresta amazônica: “Em        Itapuã do Oeste, caixões boiam e cadáveres afloram da terra. Forças sobrenaturais? Descubra        as causas o fenômeno às margens da floresta amazônica.” A ausência da materialização do        discurso, porém, não impede a composição da análise em voga. 

Conforme a gramática crítica proposta por Vaz et al (2005) para analisar as imagens e        as narrativas sobre o sofrimento de pessoas nos veículos de comunicação de massa, a        abundância das pautas de violência urbana na imprensa denotam um       excesso e um      espetáculo ,  cujos efeitos são, respectivamente, o anestesiamento pela sensação de inevitabilidade ­ ou        seja, dada a recorrência e a intensidade dos fatos violentos, pouco ou nada pode­se fazer para        mudar a realidade que se impõe ­ e a estetização do sofrimento, transformando a dor em        entretenimento e diversão. 

Esses produtos da programação televisiva ou das publicações impressas decorrem da        fabricação e da     seleção, processos de delimitação social e discursiva dos papéis de vítima e        agressor, assim como a ênfase dada a algumas vítimas e a alguns sofrimentos em detrimento        de outros. Ainda que seja compreensível, do ponto de vista dos critérios de noticiabilidade do        jornalismo, o qual lança seu olhar em busca do único, do bizarro, noticiar a morte do menino        João Hélio, não se pode perder de vista a profusão de assassinatos atrozes com pouca ou       

nenhuma visibilidade nos bairros mais pobres, em virtude do silêncio da cobertura da grande        mídia. Há um patente crivo seletivo por parte de alguns veículos do qual decorre uma        vitimização exacerbada em parcelas da população. Estas, mesmo que afetadas pela        criminalidade urbana, estão longe de figurar majoritariamente nas estatísticas de violência do        país . 27

A cobertura midiática excessiva de casos de violência contra a classe média e os        discursos passionais nela presentes, que delimitam um Nós e um Eles, “cidadãos de bem” e        “bandidos”, distanciam­se dos ideais de coesão social e igualdade de direitos, basilares na        teoria humanista. O constante reforço da posição vítima de determinado grupo social e do        lugar “bandido” de um estereótipo específico acirra a estrutura segregacionista da sociedade.        Nesse diapasão, a omissão de         Carta Capital    parece indicar uma abordagem mais próxima dos       DHs. Ao não dar publicidade a mais um caso de violência, a revista parece não querer instigar        esse funcionamento discursivo, cujas repercussões sociais têm se mostrado sensíveis. 

Já o caso do rapaz acorrentado no Flamengo, após ser violentado por um grupo de        “justiceiros”, ganhou destaque. A reportagem de capa da revista semanal       Carta Capital    (edição nº 787, de 14 de fevereiro de 2014), intitulada “O Brasil de Sheherazade a D. Yvonne:        Olho por Olho vs Cidadania; Ódio vs Solidariedade; Privilégio vs Igualdade”, utiliza as        figuras da jornalista Rachel Sheherazade e da ativista social Yvonne Mello, responsável pela        soltura do menino acorrentado ao poste e a publicação do fato em redes sociais, como        manifestações no nível do discurso dos valores administrados no texto. 

Para tanto, Carta Capital figurativiza o sujeito da narrativa, um militante de esquerda        típico, cujo objeto­valor é a justiça social, através de Yvonne Mello. Ela, contudo, não é        qualquer militante de esquerda, mas o estereótipo máximo, a iconização subjetiva, a        exacerbação figurativa, a qual traz uma pletora de traços, constituintes de um esquerdista de        classe média perfeito

27 Carta Capital apresenta os dados de homicídios no Brasil: “Matou­se mais no Brasil do que nas doze maiores                                   

zonas de guerra do mundo. Os dados são da Anistia Internacional no Brasil e levam em conta o período entre        2004 e 2007, quando 192 mil brasileiros foram mortos, contra 170 mil espalhados em países como Iraque, Sudão        e Afeganistão. Os números surpreendem e são um reflexo de uma "cultura de violência marcada pelo desejo de        vingar a sociedade", conta Atila Roque, diretor­executivo da base brasileira da Anistia Internacional. De acordo        com os últimos levantamentos feitos pelo grupo, 56 mil pessoas foram assassinadas em solo brasileiro em 2012,        sendo 30 mil jovens e, entre eles, 77% negros.” PELLEGRINNI, M.       Violência: Brasil mata 82 jovens por dia             .​  Carta Capital. Publicado em: 4 de dez de 2014. Acessado em: 30 de dez de 2015. Disponível em:        <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/violencia­brasil­mata­82­jovens­por­dia­5716.html> 

Não foi a primeira vez que a educadora pulou da cama para socorrer garotos em        situação de rua. Em julho de 1993, Yvonne Mello denunciou a célebre Chacina da        Candelária, quando oito jovens sem­teto foram assassinados por policiais militares.        Naquela época, ela fazia uma experiência de ‘escola sem portas e janelas’ com 200        crianças do Centro do Rio, e tinha dado fichas telefônicas aos guris para que        entrassem em contato em caso de urgência. (Anexo G, referência nº 3)  

Casou­se pela primeira vez quando estudava Filologia e Linguística na Sorbonne, e        foi morar na Suécia, onde conheceu a social­democracia. ‘Eu me defino como        social­democrata e parlamentarista.’ De volta ao Brasil, em 1989, começou seu        projeto de educar meninos de rua [...] (Anexo G, referência nº 4)  

Viúva de Álvaro Bezerra de Mello, vice­presidente da rede de hotéis Othon, seu        segundo marido, desde 1997 se dedica ao projeto Uerê, mantido por ela no        Complexo da Maré e ao trabalho de capacitar professores da rede pública em 20        favelas a aplicar sua pedagogia para crianças em zonas de conflito. (Anexo G,        referência nº 4)  

Meu sonho é uma escola pública obrigatória para todos, para que as classes sociais        se conheçam. Aqui, quando alguém tem um pouco mais de dinheiro, tira o filho da        escola pública para colocar na particular’, critica, para horror das dondocas que a        rodeiam na zona sul. ‘A maior parte só aceita filantropia. Ou você faz caridade e é        santa ou luta contra o status quo e é maldita.’ (Anexo G, referência nº 4) 

O efeito provocado por essa caracterização é a identificação do enunciatário com o        sujeito da narrativa. A senhora não faz filantropia, mas atua ativa e criticamente para mudar a        sociedade por intermédio de seu trabalho social. Graduou­se no exterior em cursos de        Humanas e aproxima­se da social­democracia. Mora na zona sul, possui determinado padrão        aquisitivo, mas não deixa de manter laços e atividades nas regiões menos abastadas da cidade.        A axiologização dos valores construídos desde as categorias fundamentais ­ Opressão vs        Liberdade ­ até as figuras da superfície do discurso ­ Yvonne e Rachel ­ produzem uma        coerência a partir da qual o enunciatário sofre o       fazer persuasivo e entra em conjunção com as        ideias propostas pelo enunciador. 

Apresentar as figuras e os temas do discurso purificados e polarizados apenas facilita a        compreensão e a transmissão dos valores em jogo. Na simplificação das complexas        circunstâncias político­sociais do país, as quais comportariam gradações e ponderações,        apresenta­se Rachel Sheherazade como o espelho de uma suposta maioria. A desqualificação        dessa figura do discurso impede qualquer tipo de identificação e, em última instância, a        problematização da questão de fundo proposta: a violência urbana e a coesão social no espaço        urbano do Rio de Janeiro. “[...] o Brasil continua a viver o mesmo dilema. Precisa escolher        entre Sheherazade e Yvonne Mello. Barbárie e civilização.” (Ref. nº 8) Será que realmente        precisa? 

Como em toda narrativa criada a partir de uma visão estanque de bem e mal, a        reportagem da   Carta Capital   euforiza os valores e as isotopias relacionados ao sujeito e, em        contraponto, estabelece um caráter disfórico para o antissujeito. Nesse intuito, o enunciador,        inclusive, abandona, repetidas vezes, o registro objetivo e referencial, elementares na        linguagem jornalística, com o propósito de agudizar o efeito de sentido do       horror ao Outro. A        violência perpetrada por esse antissujeito é de tal magnitude, que o próprio jornalismo        despe­se de seu distanciamento ­ uma quebra de expectativa ­ como forma de melhor        manipular o enunciatário a entrar em conjunção com os valores propostos. Assim, abundam        termos carregados de subjetividade, conotações, metáforas e adjetivações.  

[...] enxame de reacionários despejou aquele tipo de frase a respeito das quais é            difícil definir o que é pior: se a       indigência mental       ou apobreza vocabular [...]      (Anexo F, referência nº 2) (grifos nossos) 

[...] a ​virulência​ dos ataques [...] (Anexo F, referência nº 2) (grifos nossos) 

Aproveita para atacar o projeto de lei para acabar com os ‘autos de resistência’, um        modo de as polícias esconderem os assassinatos         a sangue­frio, principalmente de      jovens negros na periferia. (Anexo H, referência nº 8) (grifos nossos) 

Na narrativa proposta por Carta, o antissujeito estabelece a       parada pelo excesso de        opressão. O reacionarismo, a ignorância e o ódio, alusivos à caracterização de Rachel        Sheherazade e da supostamente majoritária “porção intolerante do Brasil”, impedem a        conjunção de Yvonne e do enunciatário com a justiça social. “Alguns poucos resistem”,        coloca a publicação em tom de heroísmo. 

Yvonne integra o Brasil que tenta resistir a um outro Brasil, mais influente e cada        vez mais alimentado pelo ódio. Ela é o avesso de outra personagem notória desse        enredo, a jornalista e apresentadora do SBT Rachel Sheherazade [...] (Anexo F,        referência nº 2) 

Mas não deixe se enganar. Sheherazade foi a grande vencedora do embate. A horda        que saqueia e depreda o território da opinião pública e confunde ação criminosa com        liberdade de expressão saiu em peso em sua defesa. (Anexo G, referência nº 3)   “Por compartilhar nas redes sociais a foto do menor, Yvonne Mello tem sofrido        ameaças” (Anexo G, referência nº 5)  

“Os 20 anos entre a Chacina da Candelária e o caso do jovem preso ao poste expõem        a decadência civilizatória do País.” (Anexo H, referência nº 8)  

“Desta vez parece haver uma ruptura, ‘povo contra povo’ [...] Antes protegida e        aplaudida, a educadora sofre mais ataques. Antes raros, personagens como        Sheherazade se sentem livres para defender crimes, sob aplauso de quem parece        abominar e estar disposto a evitar qualquer possibilidade de igualdade, mesmo se ela        não passar de um sonho ainda distante.” (Anexo H, referência nº 8)  

O progresso narrativo do sujeito esquerdista de classe média, que busca a justiça        social, vê esse ser semiótico diminuir­se frente ao excesso imposto pelo antissujeito em uma        narrativa de recrudescimento (“mais mais”). No esquema abaixo, articula­se o gráfico tensivo,        cuja disposição localiza a intensidade e a extensidade, a partir das operações, que determinam        a forma como as interações afetivas ocorrem e os valores adentram na arena perceptiva do        sujeito. O   recrudescimento, acirrando a narrativa de         excesso de liberdade da “bandidagem”, e        a solicitação de uma narrativa de       atenuação para que a própria existência constitutiva o        sujeito não se veja ameaçada. 

 

GRÁFICO 2: Gráfico tensivo do percurso do recrudescimento à minimização. Fonte: editado a        partir de LIMA, 2014. p. 61. 

Nessa esteira, o antissujeito é colocado como “mais influente e cada vez mais        alimentado pelo ódio”, “grande vencedora do embate”, “horda”, “ruptura” etc. A conjugação        das isotopias da grandeza e da coação (o sujeito “tem sofrido ameaças”) reforçam esse efeito        de sentido produzido pela manipulação, que visa a transferir valores e delimitar vítimas,        algozes e vilões. A sintaxe fundamental corrobora esse funcionamento com os processos de        asserção e negação das categorias semânticas dispostas na semântica fundamental. Em um        primeiro momento, na reportagem, há a asserção da liberdade, com a apresentação do sujeito        e suas qualidades, definidoras de sua posição eufórica. Posteriormente, a asserção da opressão        por meio da demonstração da força da Rachel Sheherazade e sua “horda” de intolerantes. Por        fim, a negação da liberdade, a partir da exposição do aumento da violência urbana, da internet       

como espaço livre para a intolerância confundida com liberdade de expressão e outras        situações, as quais capitulam a sorte da liberdade e daqueles que a defendem. 

A oposição fundamental Opressão vs Liberdade, no nível mais abstrato do percurso        gerativo de sentido, será axiologizada e concretizada de maneira a euforizar a liberdade e        disforizar a opressão. À categoria opressão, estão ligados o actante narrativo do antissujeito e        as figuras e os temas, cujo tratamento conferido pelo enunciador é negativo. Assim, Rachel        Sheherazade, o ódio, a “decadência civilizatória” e tantos outros actantes discursivos        concretizam essa parcela das forças contrárias que estabelecem­se na base do discurso e de lá        irradiam significação. Por sua vez, à categoria da liberdade, relacionam­se o actante narrativo        do sujeito e as figuras e os temas aos quais é conferido um caráter positivo. Dona Yvonne, o        engajamento social e a resistência heroica a uma suposta maioria intolerante.