Em ampla perspectiva, a revista Veja assume as seguintes estratégias ao abordar temáticas relacionadas aos DHs em suas reportagens: i) axiologização eufórica da categoria fundamental Opressão e disfórica da Liberdade; ii) antissujeito impõe a parada pelo excesso; iii) sujeito manipulado a iniciar uma narrativa de atenuação, frente ao recrudescimento que ameaça sua existência; iv) as vítimas, enquanto actantes discursivos, figurativizados somente por integrantes da classe média em estereotipia; v) articulação do medo, da vergonha e da compaixão, como reguladores dos valores transferidos pelo enunciado; vi) passionalização e o acontecimento. Vale notar que a mudança da vítima, sujeito central nas narrativas de ambas as reportagens, indo da família de classe média branca para um rapaz acorrentado, negro, pobre, acusado de cometer furtos opera alterações pouco significativas nas estratégias de Veja. A principal diferença se dá no destaque dado ao João Hélio e sua família, gerando compaixão, e a diluição do menino acorrentado e violentado em meio a outras questões apresentadas pela publicação, ensejando menos compaixão e mais vergonha pelos problemas do país elencados por Veja.
A publicação Carta Capital utiliza as seguintes estratégias: i) axiologização eufórica da Liberdade e disfórica da Opressão; ii) antissujeito impõe a parada pelo excesso ; iii) sujeito manipulado a iniciar uma narrativa de atenuação, frente ao recrudescimento que ameaça sua
existência; iv) estereotipia do sujeito em sua figurativização como militante de esquerda engajado socialmente; v) passionalização e o discurso do acontecimento.
A reportagem de Carta Capital pode, na superfície de seu enunciado, alinharse aos preceitos humanistas. De certo, a própria omissão no ‘Caso João Hélio’ parece demonstrar um alinhamento com os DHs nas escolhas editoriais. Não dar espaço demasiado a pautas que vitimizem determinado grupo social em detrimento de outros segmentos da população auxilia na gestão da alteridade no âmbito da opinião pública e do imaginário coletivo. Na contramão da passionalização promovida pelas reportagens como a de Veja, Carta Capital preferiu, ao menos neste recorte, publicizar outros assuntos.
Todavia, quando a vítima e o perpetrador da violência aproximavamse da estereotipia do arcabouço ideológico da publicação, Carta passou a utilizar estratégias semelhantes à Veja. A passionalização do discurso, o uso da função emotiva, em detrimento da objetividade referencial jornalística, e a forjação de uma alteridade operada em triagens no eixo da inteligibilidade, aproximam a revista pretensamente de esquerda ao semanário “rival”, a Veja, supostamente de direita. O que se observa, na comparação entre os textos de ambas as publicações, são escolhas do enunciador muito semelhantes com o fulcro de engajar seu enunciatário na identificação com o sujeito da narrativa: a família de classe média, no ‘Caso João Hélio’ contado por Veja, e a ativista social, engajada em uma luta heroica e minoritária contra uma maioria ignorante e acrítica, como colocado por Carta.
Em verdade, as estratégias para que o enunciatário identifiquese com o sujeito da narrativa não são, por si só, um artifício que denote o discurso passional de absolutos ou a triagem entre os valores do bem e do mal. O engajamento passionalsensorial com a narrativa é um recurso corriqueiro nas artes, na comunicação, ou seja, nos simulacros que compõem a realidade, permitindo projeções e identificações inerentes às subjetividades e à empiria. Conferir um peso negativo a esses mecanismos tão essenciais ao fazer persuasivo resvalaria em um purismo utópico de afastamento e objetividade.
O gatilho que transporta a narrativa do âmbito normal das estratégias de engajamento e identificação para a passionalização se dá, primeiramente, com a escolha de um antissujeito pelo excesso. Seja a “bandidagem”, que possui liberdade demais e amedronta a todos os “cidadãos de bem”, seja a sucessão de erros e o prolongamento dos mandatos do governo
petista, que impede o alcance de um grau civilizatório pelo Brasil, seja a “onda conservadora” e o repentino ressurgimento do fascismo no Brasil, o qual impossibilita a justiça social e a ação de uma esquerda pretensamente consciente e atuante, os antissujeitos escolhidos por Carta e Veja sufocam o sujeito da narrativa e o enunciatário. Narrativas de recrudescimento (“mais mais”) propõem uma dinâmica que simula a própria extinção da identidade do sujeito.
Impelido a uma rápida atenuação (“menos mais”), operase, na arena perceptiva do sujeitomanipulado, uma triagem de valores. Separamse os bons dos maus, a partir de um acontecimento, um episódio que suscita discursos de absoluto impactantes. Por isso, a seleção e a fabricação, nos termos da gramática crítica de Vaz et al (2005), são importantes na assunção do “dizer apaixonado” (GOMES, 2008) do jornalismo. O ‘Caso João Hélio’ e o episódio do rapaz negro acorrentado no Rio de Janeiro são apresentados como um assomo, a gota d’água que justifica, inclusive, a não observância do registro objetivo tradicional do jornalista. Abundam o uso da função emotiva, de adjetivações e termos carregados de subjetividade. Os lugares de vítima, herói e vilão são triados cuidadosamente: a família de classe média branca, o bandido negro e pobre chamado de coitadinho por defensores de DHs, o governo petista incompetente, a classe média cansada de pagar impostos, a esquerda combativa e esclarecida, a direita fascista e ignorante.
As modalizações, que levam os sujeitos a saber e a crer com base nas manipulações empreendidas na enunciação, também os patemizam, configurando o acento passional final para a reificação dos antissujeitos. A compaixão, o horror, a vergonha e o ódio juntamse à foria, ou seja, as disposições disfóricas e eufóricas do discurso para direcionar o enunciatário na interpretação dos papéis propostos. Nesse sentido, o horror canalizado em direção ao antissujeito, associado à construção do acontecimento e da triagem dos valores da narrativa, coadunam com a descaracterização, no nível discursivo, do antissujeito, enquanto agente: o “bandido” é animalizado por Veja no ‘Caso João Hélio’; na tortura do menino acorrentado no bairro do Flamengo, Veja destitui o governo de qualquer qualidade; Carta Capital , por sua vez, segrega todas as pessoas que pensam diferente de um estereótipo de esquerda e os relega a uma posição de ignorância. Em todos os exemplos, o antissujeito, usualmente possuidor de seu próprio programa narrativo e valores, é transformado em objeto. Dessa maneira, as possibilidades de diálogo e de uma leitura menos categórica e binária das problemáticas
propostas são descartadas, afinal o Outro não é digno do estatuto de sujeito de uma narrativa própria.
A objetividade e a imparcialidade do jornalismo idealizado são horizontes a serem perseguidos pelos profissionais da área. Observam as condições para o exercício de uma função integrante do sistema democrático de qualquer país. A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa são direitos fundamentais, assegurados pela Constituição. Ao despirse dos preceitos da isenção entre as partes envolvidas e do afastamento do objeto em jogo, os jornalistas diminuem a qualidade do debate público acerca dos temas publicizados. Em verdade, as abordagens relacionadas aos DHs acabam por acirrar posicionamentos passionais frente a temáticas, como a violência urbana e outros problemas sociais, que exigem interpretações racionais e ponderadas.