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capítulo 2: governo da política

1. anarquia e organização

Procurando estabelecer alguns pontos em comum entre a reflexão de Malatesta e a de Gramsci, Levy apresentou ambos autores compartilhando da ideologia produtivista. Para corroborar sua suposição, cita uma passagem na qual Malatesta afirma que,

ao invés de pensar em destruir as coisas, os trabalhadores devem estar atentos para que os patrões não os extorquem; devem impedir que patrões e governo façam apodrecer os produtos para a especulação ou por descuido, que deixem a terra inculta e os operários sem trabalho, que façam produzir coisas inúteis ou danosas. Os trabalhadores devem, desde já, considerar-se como patrões e começar a agir como patrões. Destruir as coisas é ato de escravo: escravo rebelde, mas sempre escravo (MALATESTA, 1975[29], p. 86).

A partir disso, Levy acrescenta que tanto quanto Lênin e Gramsci, Malatesta “enfatizava a importância de adquirir o controle das funções sociais dadas previamente pelo Estado”. Acrescentou também que, ainda semelhante a Gramsci, “Malatesta viu a necessidade não precisamente de substituir o Estado atual com novos arranjos, mas de ‘abolir os obstáculos existentes nas instituições para a transformação revolucionária’” (LEVY, 1996, p. 181). É preciso dizer que isso é simplificar enormemente as coisas. Sabe-se que Gramsci se queixava da propaganda anarquista contra a disciplina de partido. Dizia que essa propaganda era ineficaz entre os trabalhadores de Turim, justamente porque ali tratava-se de uma disciplina que tinha “sua base histórica nas condições econômicas e políticas em que se desenvolveu a luta de classes” (GRAMSCI, 1974, p. 27). Já Malatesta escrevia, em abril de 1920: “Disciplina: eis a grande palavra com a qual se paralisa a vontade dos trabalhadores conscientes” (MALATESTA, 1975[12], p. 49). O que está em jogo são duas concepções opostas de organização.

Malatesta não se limitou a criticar fortemente o otimismo de Kropotkin formulado na sua concepção do comunismo anárquico, “concepção que pessoalmente considero demasiado otimista, demasiado ingênua, demasiadamente confiante nas harmonias naturais” (Ibid., 1975[334], p. 234). Segundo Malatesta, Kropotkin “tinha aceito a idéia, comum então entre os anarquistas, de que os produtos acumulados da terra e da indústria eram de tal forma abundantes que por muito tempo não seria necessário preocupar-se com a produção”. Com isso, Kropotkin colocou o consumo como problema imediato e afirmou, “que para fazer triunfar a revolução era necessário satisfazer de modo rápido e amplo as necessidades de todos, e que a produção seguiria o ritmo do consumo”. Daqui surgiu a expressão fortemente difundida de tomar na abundância, expressão, segundo Malatesta, colocada em moda por Kropotkin, e que se tornou “a maneira mais simples de conceber o comunismo”, porque precisamente “a mais apta aos prazeres da multidão” e, por isso, “a mais primitiva e a mais realmente utópica” (Ibid., 1975[372], p. 376-377).

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Era absurdo, mas era atraente e por isso foi rapidamente acreditada e aceita. Era muito cômodo para a propaganda poder dizer: “Vocês sofrem a fome, têm penúria de tudo, enquanto os armazéns e os mercados estão cheios de coisas que não servem a ninguém; apenas precisam estender a mão e tomá-las”. O sucesso desses opúsculos entre os anarquistas foi enorme. (...) Procuramos nos opor à corrente, mas com pouco sucesso. O talento literário e o alto prestigio da personalidade de Kropotkin fizeram aceitar pela maioria a infeliz fórmula do tomar na abundância [presa nel mucchio] (“la prise au tas”) e a maioria, certamente interpretando de modo grosseiro o pensamento de Kropotkin, não duvidou que a abundância existisse e que fosse praticamente inexaurível (Ibid., 1975[340], p. 264).

Malatesta notou que o otimismo de Kropotkin colocava em jogo a própria realização da anarquia, pois supunha o ato revolucionário de eliminação das forças materiais defensoras do privilégio, como suficiente para sustentar práticas sociais anárquicas. Assim, “muitos deram importância exclusiva ao fato insurrecional sem pensar naquilo que é preciso fazer para que uma insurreição não permaneça um ato de violência reacionária”, e viram nas “questões práticas, nas questões de organização, no modo de prover o pão cotidiano (...) questões ociosas: são coisas, eles dizem, que se resolverão por si, ou as resolverão a posteridade” (Ibid., 1975[336], p. 241). Mas, ao contrário dessa corrente, Malatesta afirmou que a positividade revolucionária residia na organização anarquista, e disse que “é o nosso modo de construir o que constitui propriamente o anarquismo e que nos distingue dos socialistas. A insurreição, os meios para destruir são coisas contingentes, e a rigor se poderia ser anarquista sendo igualmente pacifista, como é possível ser socialista sendo insurrecionalista” (Ibid., 1975[20], p. 64).

A “abolição dos obstáculos” mencionada por Levy é coisa meramente contingente. O que deve distinguir efetivamente os anarquistas são seus métodos de organização. Aqui está a razão pela qual Malatesta deu à organização um grande destaque na sua reflexão, e pela qual se colocou, desde muito cedo, ao lado dos chamados anarquistas “organizadores”, em oposição aos anarquistas “anti- organizadores”. Como observou Adriana Dadà, a década que se seguiu entre os anos de 1880 a 1890 foi marcada pelo desenvolvimento de uma tendência anti-organizadora e individualista no anarquismo, provocada em certa medida, de um lado, pela

repressão indiscriminada de qualquer atividade subversiva e, de outro, pela esperança de uma revolução iminente, para a qual bastava uma ação violenta e exemplar. “A prática insurrecionalista tinha, com efeito, ativado o mecanismo insurreição/repressão/novas insurreições, jogos de forças menores, e provocou, portanto, atos de revolta totalmente indiferentes a todo vínculo com ações enquadradas em uma perspectiva estratégica, transformada pouco a pouco na indiferença por toda forma de discussão e organização que ligasse e coordenasse a atividade insurrecional e revolucionária em geral” (DADÀ, 1984, p. 46). É preciso igualmente considerar, como apontou Maurizio Antonioli, a resposta formulada pelos anarquistas, por exemplo, durante o congresso de Londres de 1881, contra as formas de organização do socialismo legalitário. Nesse congresso, Carlo Cafiero teria insistido “sobre a necessidade de dar vida a ‘círculos independentes uns dos outros, coligados pelos fins comuns da ação’, e insistia na necessidade de dispersar sobre o território os núcleos vitais do anarquismo para os subtrair da repressão do Estado” (ANTONIOLI, 1999a, p. 56). Tudo indica que foi a partir dessa conjugação que se deu a passagem que levou o anarquismo da recusa contingente de organização para a negação como princípio de qualquer forma de organização, quando “o individualismo se torna uma prática válida da luta no presente e ao mesmo tempo característica essencial da sociedade pós- revolucionária” (DADÀ, 1984, p. 46).

Precisamente nesse contexto Malatesta traça sua definição de anarquia como organização sem autoridade, formulada em La Questione Sociale, de Florença, em 1884, primeiro periódico dirigido por ele. Malatesta afirma que em uma organização sem autoridade o governo se torna um non sense, mas para que essa organização se realize e exista, é preciso um método que funcione como timão necessário para dirigir a navegação anárquica.

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Anarquistas nas finalidades, porque acreditamos que apenas com a anarquia a humanidade poderá alcançar o bem-estar e a paz (...), nós somos igualmente anarquistas no método, porque acreditamos que uma autoridade constituída, um governo qualquer será sempre e fatalmente um obstáculo para o triunfo do princípio de solidariedade, uma razão para o eterno retorno [corsi e ricorsi, concepção da história cíclica de Vico] na civilização, de alternâncias de revoluções e reações (Ibid., 1884c).

Malatesta atribuiu a recusa do princípio de organização a um erro provocado pelo exagero da crítica anarquista à organização, identificando-a com a autoridade. Segundo ele, muitos anarquistas, por “ódio à autoridade, rejeitaram qualquer organização, sabendo que os autoritários designam com esse nome o sistema de opressão que desejam constituir” (Ibid., 1889b). Porém, para Malatesta, aquilo que os autoritários chamam organização “é simplesmente uma hierarquia completa, legiferante, que age em nome e no lugar de todos”, ao contrário, o que os anarquistas entendem por organização “é o acordo que se faz, em virtude dos interesses entre os indivíduos agrupados para uma obra qualquer; são as relações recíprocas que derivam das relações cotidianas que os membros de uma sociedade estabelecem uns com os outros”. Mas sobretudo, a organização anarquista, segundo Malatesta, “não tem lei, nem estatutos, nem regulamentos que cada indivíduo é obrigado a subscrever, sob pena de um castigo qualquer; essa organização não possui nenhum comitê que a represente, os indivíduos não são ligados a ela pela força, mas permanecem livres e autônomos para abandonar a organização quando ela quiser substituir sua iniciativa” (Id.). Mas Malatesta reconheceu que a Primeira Internacional, “malgrado toda a terminologia anti-autoritária, malgrado as lutas combatidas e vencidas em nome da autonomia e da liberdade”, permaneceu sempre uma organização autoritária até a morte, provocada por seu próprio autoritarismo. “A Internacional em seu nascimento imitou a organização do Estado: Conselho Geral (governo central) com os secretários gerais para cada país (ministros); conselhos regionais, provinciais etc. (governos cantonais etc.); congressos gerais, regionais etc., com direito de fazer leis, aceitar ou rejeitar programas e idéias, admitir ou expulsar indivíduos ou grupos (parlamentos)” (Ibid., 1889g). Foi, segundo ele, levando em consideração exemplos como o da AIT

que os anarquistas não souberam distinguir a “organização em si do fundo autoritário que a deturpava, e começaram a predicar e a experimentar a desorganização, querendo eleger como princípio o isolamento, o desprezo dos compromissos assumidos e a não solidariedade, quase como se fossem uma conseqüência do programa anarquista, quando na verdade são sua negação” (Id.). Para Malatesta, os anarquistas, pensando combater a autoridade, não perceberam que estavam atacando o próprio princípio de organização. E assim faziam como se para combater a autoridade do Estado pretendessem o retorno a um modo de vida selvagem. Querendo deixar livre campo para a iniciativa individual, produziram isolamento e impotência. Era preciso, portanto, não negar a organização, mas organizar-se “em modo perfeitamente anárquico, quer dizer, sem nenhuma autoridade nem evidente nem mascarada” (Id.).

Todavia, parece que essa noção de organização que Malatesta esforçou-se em distinguir e preservar não deixou, porém, de causar efeitos bastante ambíguos. Como observou Maurizio Antonioli, “o anarquismo organizado, o assim chamado ‘partido’6 nas suas diversas articulações autônomas, modificava gradualmente a própria fisionomia, nem tanto porque ‘menos subversivo’ e ‘mais educativo’, mas porque se apresentava (...) combatendo com as armas civis da organização, da propaganda e da ação popular coletiva” (ANTONIOLI, 1999b, p. 130). Nesse final do século XIX e começo do XX, o reconhecimento formal da liberdade de associação por alguns governos liberais abriu a possibilidade de uma existência “legal” ao movimento anarquista. Como mencionou Pier Carlo Masini, o Ministro do Interior italiano Giuseppe Zanardelli “tinha desenvolvido o princípio da mais ampla liberdade de

6 A noção de “partido” tinha para os anarquistas uma conotação completamente diferente da que se conhece hoje e uma problemática política oposta dos partidos convencionais. Malatesta dava à palavra partido dois dignificados: “um, de grupo organizado de pessoas vinculadas por um pacto social, outro, de todo um conjunto de pessoas que aderem a uma dada ordem de idéias e têm um objetivo comum” (1975[114], p. 284). Adriana Dadà notou como desde muito cedo, “já nas lutas que envolveram a ala anti-autoritária da Primeira Internacional, encontramos o elemento característico da história dos anarquistas na Itália: o alternar-se de ações de massa e de ações de vanguarda, a oscilação entre movimento mais ou menos espontâneo ‘dos revolucionários’ e a afirmação de seus militantes como portadores de uma presença organizada, de partido” (DADÀ, 1984, p. 7).

155 associação, fazendo-se defensor da fórmula “reprimir não, prevenir”, pronunciada pelo Presidente do Conselho Cairoli” (MASINI, 1974, p. 153). Ainda que na prática o discurso de Zanardelli não contemplava os anarquistas internacionalistas, condenando e perseguindo a AIT como associazione di malfattori, permanecia esse fato, como notou Antonioli, de que “a questão da organização inseria-se no quadro de um discurso mais amplo, como aquele relativo às modalidades de uma presença anárquica no tecido político geral” (ANTONIOLI, 1999a, p. 72). Assim, parece que a organização anarquista, ao reclamar o direito a uma existência pública e civil, tendeu a rejeitar como prejuízos aquelas formas de recusas e contraposições diretas contra a sociedade. Foi essa atitude que suscitou uma oposição resoluta por parte dos anti-organizadores, temendo que a “constituição do partido determinasse uma institucionalização do movimento e, consequentemente, a pacificação da tensão revolucionária” (Id.).

Tais fatos parecem confirmar a opinião de Daniel Colson a respeito da noção de organização, descrita por ele como um “termo infeliz, emprestado da biologia para designar os agrupamentos militantes (...) e o laço que os une. Rudimentar, essa noção tende a isolar os elementos, a hierarquizá-los (as mãos, a cabeça, o baixo, o alto etc.) e a submete-los a um todo que lhes assinalaria sua função e seu valor”7 (COLSON, 2001, p. 217).

7 A idéia que conhecemos de organismo data do século V a.C. Anteriormente, o pensamento pré-socrático exprimia as coisas na sua dimensão de multiplicidade. Mais tarde, com o socratismo, a multiplicidade das coisas foi considerada por uma ótica de unidade conceitual (cf. REALE, 2002, p. 21 et seq.). Em seguida, a idéia de organismo e de organização marca, com Cuvier, a passagem da história natural para a biologia, representando um conjunto de órgãos que estão ligados a funções que mantêm com eles uma relação de subordinação funcional. A noção de organismo, com a biologia, fez “extravasar – e largamente – a função em relação ao órgão e submeteu a disposição do órgão à soberania da função. Dissolve-se, senão a individualidade, pelo menos a independência do órgão: é erro crer que ‘tudo é importante num órgão importante’; é preciso dirigir a atenção ‘mais para às próprias funções do que aos órgãos’” (FOUCAULT, 2000b, p. 363).