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contra-organização anarquista

capítulo 2: governo da política

4. contra-organização anarquista

É preciso entender a reflexão de Malatesta acerca da organização como uma postura contra-organizativa, na medida em que, sem negar a organização, procura contrapor à estratégia da organização burguesa práticas de organização anarquista. Como dissemos, ao contrário dos anarquistas anti-organizadores8, Malatesta rejeitou como sendo completamente insuficiente e inadequada a resposta sob a forma da recusa

8 ANTONIOLI (1999a) cita, entre outros, Paolo Schicchi, os stirnerianos Attilio e Ludovico Corbella e Oberdan Gigli. Outros anti-organizadores menos “intransigentes” foram Ettore Molinari, Nella Giacomelli e Luigi Galleani.

167 do princípio de organização. Uma tal resposta trazia o inconveniente do extremismo, e continha um duplo prejuízo: não apenas colocava o anarquismo no impasse de uma posição meramente negativa, como também era uma posição que impedia perceber o funcionamento do mecanismo estratégico colocado em jogo. É notável como Malatesta insistia no fato de que “todas as instituições que oprimem e exploram o homem tiveram sua origem em uma necessidade real da sociedade humana e se sustentam precisamente sobre o prejuízo de que essa determinada necessidade não possa ser satisfeita sem aquelas instituições determinadas, fazendo suportarem todo o mal que produzem pela força dessa pretensa necessidade” (MALATESTA, 1889g). É o que o ocorre, por exemplo, com a propriedade que, mesmo reduzindo a massa dos trabalhadores à miséria e transformando a sociedade em uma matilha de lobos se devorando mutuamente, encontra sua justificativa também na necessidade dos indivíduos se garantirem contra a tirania do Estado. É o que ocorre com a lei que, mesmo tendo sido feita para defender os privilegiados e constranger o povo a suportar sua posição, ela também responde a necessidade da incolumidade pessoal dos indivíduos. Até mesmo o autoritarismo, seja nas suas manifestações secundárias seja na sua manifestação máxima da forma Estado, na medida em que obscurece com sua sombra fatal grande parte da vida social, reponde igualmente a uma necessidade de cooperação. Portanto, é preciso perceber esse fundo de positividades que não somente atuam, mas que sustentam essas redes de instituições negativas, nas quais os indivíduos são ao mesmo tempo vítimas e beneficiários.

Ora, se alguém, para destruir a propriedade quisesse proclamar a sujeição do indivíduo ao Estado, ou se para abolir a lei quisesse proclamar a liberdade de se degolar mutuamente, ou se para combater a autoridade e o Estado quisesse predicar a vida do homem selvagem ou da tribo isolada, não se faria mais do que reafirmar a necessidade da propriedade, da lei e da autoridade e se alcançaria portanto um objetivo diametralmente oposto ao almejado (Id.).

Dessa forma, mesmo admitindo que a “organização autoritária é uma coisa completamente diversa daquela que os anarquistas organizadores defendem e, quando podem, praticam” (Ibid., 1975[334], p. 234), Malatesta tinha clareza de que “as

pessoas agem sempre em função de qualquer coisa de imediatamente realizável, e no fundo têm razão, porque não se vive apenas de negação, e quando não se tem nada de novo para estabelecer retorna-se fatalmente ao antigo” (Ibid., 1975[261], p. 72). Daí a necessidade de combater a idéia muito difundida “segundo a qual a tarefa dos anarquistas seria simplesmente aquela de demolir, deixando para a posteridade a obra de reconstrução”. Segundo Malatesta, não se tratava de prescrever para a posteridade um futuro, mas do fato grave e urgente de que “devemos e deveremos fazer por nós, se não quisermos deixar o monopólio da ação prática a outros que endereçaram o movimento em direção a horizontes opostos aos nossos” (Ibid., 1975[334], p. 235- 236).

A questão da organização continha, para Malatesta, a perenidade do exercício governamental.

Eu digo que seria muito difícil encontrar uma instituição atual qualquer, mesmo entre as piores, também as prisões, os lupanares, a polícia, os privilégios, os monopólios, que não responda direta ou indiretamente a uma necessidade social, e que só será possível destruí- las realmente e permanentemente quando se as substitua com qualquer coisa que satisfaça melhor as necessidades que as produziram. Não me perguntem, dizia um companheiro, que coisa substituiremos ao cólera: ele é um mal e o mal é preciso destruí-lo e não substituí-lo. É verdade, mas a desgraça é que o cólera perdura e retorna se não se substituem por condições higiênicas melhores aquelas que permitiram o surgimento e a propagação da infecção (Ibid., 1975[336], p. 238).

Para Malatesta a polícia não era uma atividade meramente repressiva, mas um vetor de força governativa. Nesse deslocamento, que leva de um acento ordinariamente negativo sobre a polícia para vê-la atuando sob um fundo de positividade, é significativo que ele fez aparecer os mecanismos positivos da polícia como tecnologia de governo. Subtraindo da reflexão o juízo moral, Malatesta apontou a positividade que algumas instituições, mesmo entre as piores, como a polícia, produzem na sociedade. Se tais instituições produzissem apenas efeitos negativos, sua eliminação seria fácil. Mas porque elas respondem também a uma “necessidade social”, só será possível de fato substituí-las encontrando uma maneira de satisfazer mais efetivamente as necessidades que as provocaram. Por isso, conferir ao

169 anarquismo, no ato insurrecional, uma finalidade meramente destrutiva equivale a “dar às instituições que se pretende abolir o tempo de se refazerem dos golpes recebidos, impondo-se novamente, talvez com outros nomes, mas certamente com a mesma substância” (Ibid., 1975[340], p. 248-249). Então, dizia,

é preciso abolir as prisões, esses lugares tétricos de pena e de corrupção, onde, enquanto gemem os prisioneiros, os carcereiros endurecem o coração e tornam-se piores do que os detidos: de acordo. Mas quando se descobre um lascivo que estupra e mutila corpos de crianças, é necessário colocá-lo em um estado de não poder mais prejudicar se não se quer que ele faça outras vítimas e termine linchado pela multidão. (...) Destruir os lupanares, essa torpe vergonha humana (...). Mas o lupanar se reformará logo, público ou clandestino, sempre que houverem mulheres que não encontrem trabalho apto e vida conveniente. (...) Abolir a polícia, esse homem que protege com a força todos os privilégios e é o símbolo vivo do Estado: certíssimo. Mas para poder aboli-lo permanentemente e não vê-lo reaparecer sob outro nome e com um outro uniforme, é preciso saber viver sem ele (Ibid., 1975[336], p. 239-240).

É óbvio que Malatesta não pretende que se conserve qualquer coisa como uma espécie de resíduo dessas instituições, não se trata disso. Trata-se do perigo iminente de sua permanência, resultante do fato de que a mera negação das formas institucionais que assumem determinadas instituições não basta para aboli-las. Por exemplo, Malatesta diz que é “infelizmente verdadeiro que se dêem cotidianamente ocasiões nas quais a polícia aparece como instrumento útil” (Ibid., 1975[78], p. 198). Por exemplo, um agredido, “encontrando-se em perigo de vida e sem possibilidade de defesa, ficará naturalmente contente pela aparição dos faróis da polícia” (Ibid., 1975[137], p. 326). Desse modo, “por ódio e medo do delito, a massa da população aceita e suporta qualquer governo” (Ibid., 1975[275], p. 102). Mais do que um ato de negação, é preciso um saber viver sem polícia, ou seja, rejeitar não somente suas formas institucionais, mas também o regime de práticas que lhe são correspondentes. É preciso propor não um outro regime, mas um saber-fazer que prescinda dessas instituições. É preciso, por exemplo, “evitar sempre que a defesa contra o delinqüente torne-se uma profissão e sirva de pretexto para a constituição de tribunais permanentes e de corpos armados, que logo se tornarão instrumentos de tirania” (Ibid., 1975[340],

p. 249-250). É nesse momento que a questão da organização em Malatesta ganha uma dimensão fundamental para o anarquismo; e ele a formula nos seguintes termos:

Ou da organização social preocupam-se todos, preocupam-se os trabalhadores por eles mesmos e se preocupam imediatamente, na medida em que destroem o velho, e ter-se-á uma sociedade mais humana, mais justa, mais aberta aos progressos futuros; ou da organização preocupam-se os “dirigentes”, e teremos um novo governo que fará aquilo que fizeram sempre os governos, ou seja, fará pagar a massa pelos escassos e maléficos serviços que rende, eliminando-lhe a liberdade e permitindo que seja explorada por parasitas e privilegiados de todas as espécies (Ibid., 1975[336], p. 242).

Mencionei que a valorização da organização em Malatesta é inseparável da desconfiança sistemática nutrida por ele em relação a esse processo de liberação chamado simplesmente insurreição ou revolução. Para Malatesta a revolução e a insurreição, apesar de necessárias, têm um valor meramente negativo. São necessárias porque a história demonstra que “todas as reformas, que deixam subsistir a divisão dos homens entre proprietários e proletários e, portanto, o direito de alguns de viver sobre o trabalho dos outros, não fariam, quando obtidas e aceitadas como benéficas concessões do Estado e dos patrões, mais do que atenuar a rebelião dos oprimidos contra os opressores”, e por isso “não resta outra solução mais do que a revolução: uma revolução radical que abata todo o organismo estatal, que exproprie os detentores da riqueza social e coloque todos homens sobre o mesmo nível de igualdade econômica e política” (Ibid., 1975[45], p. 117). Todavia, é preciso sempre admitir que “a revolução dará imediatamente aquilo que poderá dar, ou seja, aquilo que as massas (e nas massas estão incluídos os homens de idéias, os propagandistas, os intelectuais, os técnicos etc.) serão capazes de fazer” (1975[49], p. 130). E essa capacidade relativa das massas é em tal medida importante que Malatesta admite que, “para fazer a revolução, e sobretudo para fazer com que a revolução não se reduza a uma explosão de violência sem futuro, são necessários os revolucionários” (1975[54], p. 149).

A revolução, portanto, sofre de uma insuficiência que lhe é endêmica, e que pode ser descrita da seguinte forma: a revolução não deve ser pensada como um processo que liberaria nos homens uma essência anarquista em estado embrionário ou

171 adormecido; não é o desbloqueio de uma natureza humana anarquista ou de um fundo subjetivo libertário das amarras opressivas do governo. A revolução, enquanto processo necessariamente negativo, não é jamais capaz de inaugurar a anarquia, simplesmente porque a anarquia não hiberna no interior dos indivíduos, esperando que o longo inverno governamental seja finalmente dissipado pelo sol revolucionário. A revolução é incapaz de liberar ou de produzir uma substância anárquica nos indivíduos. Ela é apenas um “momento em que as massas se elevam moralmente acima de seu nível ordinário e estão prontas a todos os heroísmos” (Ibid., 1975[70], p. 179).

Isso aparece claramente no debate entre educaionistas9 e revolucionários. Recusando o “‘educacionismo’, entendido como sistema que espera a transformação social unicamente, ou principalmente, da generalização da educação, e que acredita que tal transformação poderá realizar-se apenas quando todos, ou quase todos, forem educados”, Malatesta escrevia, no final de 1913, que nas condições da época era “impossível estender a educação além de um limite restritíssimo”. Desse modo, se “para fazer a revolução, quer dizer, se para arruinar as instituições atuais e assegurar o pão e a liberdade, devêssemos esperar que as massas se tornassem conscientemente e inteligentemente revolucionárias – a sociedade ou permaneceria como está ou se modificaria sob a influência de forças independentes de nós e em sentido contrário aos nossos objetivos”. Além disso, dizia que “a propaganda é feita para todos, mas que é semente que germina somente onde encontra terreno fértil” (MALATESTA, 1913i). Para Malatesta, sendo dados um certo ambiente e certas condições econômicas e políticas, os indivíduos não são capazes de se elevarem acima de um certo nível moral. São capazes apenas uma pequena minoria que, frequentemente, encontra-se em condições de ambiente mais favoráveis, mas a maioria não é capaz. De outro lado, é

9 Segundo BERTI (2003, p. 426), um dos maiores expoentes do educacionaismo anarquista no início do século XX foi Luigi Molinari, fundador da revista quinzenal L’Università Popolare, em 1901, que tinha como epígrafe “a verdade nos fará livres”.

igualmente certo que todas as grandes mudanças feitas na civilização foram devidas às revoluções, mas que não constituíram necessariamente rápidas mudanças políticas e econômicas. Ao contrário, foram provocadas pelo descobrimento de novas terras pelas correntes migratórias, pela invenção de novas máquinas ou de novos métodos de produção etc., e nesse processo certamente foi fundamental a educação, que buscou desenvolver nos indivíduos uma capacidade de utilização de todas essas novas possibilidades do ambiente. Pode-se até mesmo admitir que a educação é necessária para produzir “revolucionários”, uma certa categoria de homens dedicados à mudança do ambiente de modo rápido e violento.

Mas esperar que apenas com a propaganda seja transformado o ânimo das massas, é uma ilusão e uma impossibilidade que nos condenaria a ser sonhadores. Existe uma experiência feita por todos os propagandistas, e que já foi contada cem vezes. Vá a uma região nova, virgem de toda propaganda anarquista ou socialista, dedique-se a dialogar no café, faça uma conferência ou convoque um comício e, imediatamente, encontrará um certo número de aderentes, suponhamos dez; e partirá muito contente esperando que, se sozinho e num único dia, foi possível converter para suas idéias dez pessoas, esses dez que lá ficaram, entusiastas e voluntariosos, em breve terão convertido toda a região. Retorne depois de um ano e encontrará os mesmos dez... se não oito; retorne ainda depois de cinco anos e é sempre a mesma coisa. O fato é que você converteu tudo o que existia de conversível. Mas eis que de repente os dez tornam-se cem, e uma larga simpatia, se não uma adesão completa, se manifesta para com nossas idéias. O que aconteceu? Qualquer coisa que transformou o ambiente: foi introduzida uma fábrica ou muitos foram para América e depois voltaram, ou explodiu, em um momento de exasperação, uma greve violenta que colocou em luta aberta os trabalhadores agrícolas contra os proprietários de terra (Ibid., 1975[70], p. 177-179).

É porque a educação é incapaz de converter para a anarquia, ou melhor, é porque na anarquia o procedimento da conversão apenas pode ter um valor relativo e uma existência sempre precária e insuficiente em relação à educação, é por isso que, ao contrário de um certo “número de ‘educacionistas’, que crêem na possibilidade de elevar as massas aos ideais anarquistas antes de que sejam mudadas as condições materiais e morais em que vivem, e com isso remetem a revolução para quando todos serão capazes de viver anarquicamente, os anarquistas estão todos de acordo com o desejo de arruinar o mais cedo possível os regimes vigentes” (Ibid., 1975[209], p. 172). Mas, do mesmo modo que a anarquia não pode ser objeto de conversão em um

173 procedimento educacional, com mais razão ainda “a revolução não pode ser feita para que atue diretamente e imediatamente a anarquia, mas somente para criar as condições que tornem possível uma rápida evolução em direção à anarquia” (Ibid., 1975[211], p. 182-183). A revolução é um ato dramático, necessário “para abater a violência dos governos e dos privilegiados” (Ibid., 1975[211], p. 184-185), e “para poder abater a força material do inimigo comum” (Ibid., 1975[218], p. 201), mas, por ser um fenômeno de ruptura súbita, não serve como operador de conversão dos indivíduos para a anarquia.

Foucault mostrou como o tema da “salvação” cristã, com a noção de metanóia, que é o equivalente latino da noção grego-romana de “conversão”, foi inscrito em um sistema binário. “Situa-se entre a vida e a morte, a mortalidade e a imortalidade ou este mundo e o outro. A salvação nos conduz: da morte para a vida, da mortalidade para a imortalidade, deste mundo para um outro. Nos conduz inclusive do mal para o bem, de um mundo de impurezas para um mundo de purezas etc. Consequentemente, está sempre no limite e é um operador de passagem” (FOUCAULT, 2002b, p. 180). Foi graças a essa conotação cristã que a noção de conversão foi introduzida na prática e na experiência política através da emergência da “subjetividade revolucionária” no século XIX. “Parece-me que, ao longo do século XIX, não é possível compreender o que foi a prática revolucionária, não é possível compreender o que foi o indivíduo revolucionário e o que foi para ele a experiência da revolução se não se tiver em conta a noção, o esquema fundamental da conversão à revolução” (Ibid., p. 206).

É a rejeição desse esquema binário e maniqueísta que está em jogo nessa declaração de insuficiência da revolução. Assim, para Malatesta, tanto a educação quanto a revolução são insuficientes de converter para a anarquia. Com efeito, ele se pergunta se seria possível

supor que, feita a revolução no sentido destrutivo da palavra, cada um respeitará os direitos dos outros e aprenderia logo a considerar a violência, causada ou suportada, como coisa imoral e vergonhosa? Não seria muito mais temerário que tão logo os mais fortes, os mais espertos, os mais afortunados, que podem ser também os mais cruéis, os mais afetados por tendências anti-sociais, tentem impor sua própria vontade por meio da força, fazendo renascer a polícia sob uma ou outra forma? Não supomos e não esperamos que pelo único fato da revolução ter abatido a autoridade presente baste para transformar os homens, todos os homens, em seres verdadeiramente sociais e destruir todo germe de autoritarismo (Ibid., 1975[43], p. 113).

Uma vez que a “insurreição não pode durar mais que um breve tempo” (Ibid., 1975[218], p. 202), após o gesto negativo e destrutivo de eliminação da “força bruta que oprime, só se destrói aquilo que se substitui com qualquer coisa de melhor. (...) Não existem gerações que destroem e gerações que edificam. A vida é um todo indivisível, e a destruição e a criação são gestos contemporâneos. Existem somente períodos nos quais se cria e se destrói rapidamente, e outros nos quais se cria e se destrói lentamente” (Ibid., p. 202-203). Pensar a revolução a partir do esquema binário da salvação é supor uma subjetividade positiva reprimida e bloqueada por processos negativos históricos, econômicos ou sociais que, uma vez rompidos, liberariam por si mesmos efeitos liberadores. Para Malatesta, não há binarismo nenhum, mas jogo permanente e recíproco.

Entre o homem e o ambiente social existe uma ação recíproca. Os homens fazem a sociedade como ela é, a sociedade faz os homens como eles são, e disso resulta uma espécie de círculo vicioso. Para transformar a sociedade é necessário transformar os homens, mas para transformar os homens é necessário transformar a sociedade. A miséria embrutece o homem, e para destruir a miséria é necessário que os homens tenham consciência e vontade. A escravidão educa os homens a serem escravos, e para liberar-se da escravidão é necessário homens que aspirem à liberdade. A ignorância faz com que os homens não conheçam as causas dos seus males e não saibam remediá-los, e para destruir a ignorância é necessário que os homens tenham o tempo e o modo de se instruírem. O governo habitua as pessoas a suportarem a lei e a crer que a lei seja necessária à sociedade, e para abolir o governo é preciso que os homens estejam persuadidos de sua inutilidade e dano. Como sair desse círculo vicioso? (Ibid., 1975[223], p. 227).

Entretanto, pelo fato mesmo da existência desse jogo perpétuo, ocorre que “a sociedade atual é o resultado de mil lutas intestinas, de mil fatores naturais e humanos agindo casualmente sem critérios diretivos”, residindo aqui a possibilidade sempre

175 presente de causar, de quando em quando, sua própria dissolução e transformação. Todavia, desse ocaso da luta existe sempre “a possibilidade de progresso; mas não a possibilidade de anarquia”. Para que a anarquia seja possível, “o progresso deve caminhar ao mesmo tempo e paralelamente, nos indivíduos e no ambiente”, e o papel decisivo dos anarquistas é mais positivo do que destrutivo: eles devem se “aproveitar de todos os meios, de todas as possibilidades, de todas as ocasiões que permite o ambiente atual, para agir sobre os homens e desenvolver a sua consciência e os seus desejos; devemos utilizar todos os progressos efetuados na consciência dos homens para induzi-los a reclamar e impor maiores transformações sociais, que são possíveis e que servem melhor para abrir a via a progressos ulteriores” (Ibid., 1975[223], p. 228). Após uma insurreição, “ou seja, a rápida efetuação das forças acumuladas durante a evolução precedente. Tudo dependerá daquilo que o povo é capaz de querer” (Ibid., 1975[223], p. 236).

Segundo Malatesta, os anarquistas anti-organizadores não compreenderam a “sinonímia entre organização e sociedade” (Ibid., 1982[7], p. 85), e ignoraram um dilema inevitável da vida coletiva, no qual a organização aparece como realizada “voluntariamente para vantagem de todos” ou realizada “pela força por um governo para a vantagem de uma classe dominante” (Ibid., 1975[363], p. 342). Isso porque “aquilo que não conseguirmos fazer nós com nossos métodos, será feito necessariamente pelos outros com métodos autoritários” (Ibid., 1975[340], p. 250). Sendo a organização simplesmente uma prática de cooperação e de solidariedade, ela é também uma condição natural e necessária da vida social, um fato inelutável que se dá entre os indivíduos. Assim, “acontece fatalmente que aqueles que não têm os meios