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capítulo 2: governo da política

1. o método serial

Para um procedimento analítico, a origem do poder, suas formas ou sua organização, dizem pouco ou nada da realidade do poder. Assim, pouco importa se o poder se diz de origem popular, se toma a forma democrática ou se está organizado de maneira contratual: como veremos de maneira mais detalhada, uma analítica das

97 práticas de governo, ou estudos em governamentalidade, possui precisamente a particularidade de deslocar a análise dos problemas relacionados à legitimidade do poder, à noção de ideologia e com as questões das fontes do poder e sua detenção, termos típicos das teorias da soberania forjadas nos séculos XVIII e XIX, época em que, segundo ROSE (1999, p. 1), o modelo de poder político foi formado por um discurso constitucional e filosófico que projetou “um corpo centralizado no interior de qualquer nação, um ator coletivo com o monopólio legítimo do uso da força em um território demarcado”. Foi também uma concepção de poder que implicou algumas idéias particulares acerca da natureza humana dos sujeitos do poder, concebidos como indivíduos autônomos e sujeitos de direito. Implicou igualmente concepções políticas de agrupamentos sociais dos quais emanam a identidade que fornece as bases para suas ações e interesses políticos: por exemplo, a noção de classe, de raça etc. Finalmente, esse modelo de poder político implicou também uma definição da liberdade em termos essencialmente negativos.

A liberdade foi imaginada como ausência de coerção ou dominação; era uma condição na qual a vontade subjetiva essencial de um indivíduo, um grupo ou um povo pôde ser expressada e não foi silenciada, subordinada ou dominada por um poder estranho. Os problemas centrais dessas análises foram: “Quem detém o poder? Para quais interesses ele é utilizado? Como é legitimado? Quem o representa? Como pode ser assegurado ou contestado ou derrubado?” Estado/sociedade civil; público/privado; legal/ilegal; mercado/família; dominação/emancipação; coerção/liberdade: os horizontes do pensamento político foram estabelecidos por meio dessa linguagem filosófico-sociológica. (Id.).

Para demonstrar a tese de que sob as diversas formas de governo o que subsiste é invariavelmente o princípio de autoridade, Proudhon adota na sua análise o método serial, que pode ser descrito como “um tipo de conhecimento que não é exterior, não é transcendente à prática social. (...) a teoria da lei serial é um método de conhecimento assentado no terreno movediço da realidade plural, incapaz de proporcionar repouso à razão. Não é representação estática da realidade: estabelece-se na relação de revezamento com a prática. É um processo bem-determinado de conhecimento, que acompanha o movimento da prática. E quem diz movimento diz

série, unidade diversificada” (PASSETTI & RESENDE, 1986, p. 15). Nesse sentido, a análise serial não toma como objeto primeiro as noções de Estado, lei, democracia, sufrágio, povo, monarquia, república etc., mas, ao contrário, procura fazer a análise a partir das práticas de governo, para perceber como essas mesmas noções de Estado, lei, democracia etc., foram constituídas e emergiram num determinado contexto. Em outras palavras, é sobre o próprio estatuto dessas noções que a análise serial procura interrogar. Assim, não admitir de saída a legitimidade dessas noções que a análise sociológica, política e filosófica adota a priori para explicar a prática governamental, mas, ao contrário, partir da prática governamental para, precisamente, afirmar a insuficiência analítica dessas noções universais como princípio de inteligibilidade do governo. É o que faz do conhecimento serial “um tipo de conhecimento que se processa em decorrência de uma relação prática dos homens com o mundo e suas criações, ensejando o desenvolvimento integrado de teoria e prática” (Ibid., p. 16). Como notou Gurvitch, a dialética serial propõe “procurar a diversidade em todos os seus pormenores”, o que implica a captação incessante da experiência. “Por etapas e com uma clareza crescente, Proudhon faz notar que o movimento dialético começa por ser o movimento da própria realidade social e só depois um método para seguir as sinuosidades desse movimento” (GURVITCH, 1980, p. 136).

Ao tomar o governo na sua concretude, ou melhor, ao tomar o governo como série composta de um certo número de termos historicamente dados, tais como absolutismo, monarquia constitucional, república, democracia, governo direto, anarquia, Proudhon percebe cada um desses termos pertencendo à série governo e constituindo um momento particular na linha de “evolução” do princípio de autoridade. Por exemplo, diz que

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o absolutismo, na sua expressão ingênua, é odioso à razão e à liberdade; sempre a consciência dos povos se sublevou contra ele através dos tempos; em seguida, a revolta fez presente seu protesto. O príncipe foi, portanto, forçado a recuar: ele recuou passo a passo, por uma seqüência de concessões, cada uma mais insuficiente do que as outras, e cuja última, a democracia pura ou governo direto, toca o impossível e o absurdo. O primeiro termo da série sendo, portanto, o absolutismo, o termo final, fatídico, é a anarquia, entendida em todos os sentidos (Ibid., p. 104-105).

Os termos da série governo aparecem como variação do princípio de autoridade, como respostas às táticas da liberdade, como estratégias de poder: é em termos de tática que devem ser percebidas, em uma análise serial, todas as leis e todas as garantias concedidas pelo governo. A lei não possui nenhuma realidade ontológica na série governo, nem é tomada como substância que confere estatuto legal a um Estado democrático em oposição ao absolutismo. O domínio do direito, na análise serial, não possui outro valor que não seja o da ordem da relação, tomado como realidade seriada com dimensão, movimento e ação recíprocos com outras séries. Uma vez que “a série nada tem de substancial nem de causativo” (PROUDHON, 2000a, p. 142), mas “ela indica uma relação de igualdade, de progressão ou similitude” (Ibid., p. 243), seria preciso, portanto, colocar ao lado da lei a impaciência dos povos e a iminência da revolta. Assim, a análise serial demonstraria que foi sempre a partir dessa impaciência e revolta que

o governo teve que ceder; prometeu instituições e leis; declarou como seu mais fervoroso desejo que cada um possa gozar do fruto de seu trabalho sob a sombra de sua vinha ou figueira. Foi uma necessidade de sua posição. Com efeito, a partir do momento em que ele se apresentou como juiz de direito, árbitro soberano do destino, não poderia conduzir os homens seguindo seu bel prazer. Rei, presidente, diretório, comitê, assembléia popular, não importa, foi preciso ao poder regras de conduta: sem elas, como seria possível estabelecer entre seus sujeitos uma disciplina? (PROUDHON, 1979, p. 107-108).

Em uma análise serial o governo aparece sancionando leis não para a liberdade de seus sujeitos, mas sobretudo para “impor a si mesmo limites: porque tudo o que é regra para o cidadão, torna-se limite para o príncipe” (Ibid., p. 108). Isso pelo fato da lei não ser o atributo do Estado democrático, mas uma necessidade decorrente de uma posição na série. É nesse sentido que a análise serial proposta por Proudhon pode ser descrita como uma analítica das práticas de governo que procura investigar o

exercício do poder. Por analítica das práticas é preciso entender um tipo de “estudo relativo a uma análise das condições específicas sob as quais uma organização particular emerge, existe e se transforma” (DEAN, 1999, p. 20). Assim, empreender uma analítica das práticas de governo seria examinar “as condições sob as quais regimes de práticas surgem, existem, são mantidos e transformados. Em um sentido elementar, regimes de práticas são simples cenários regulares e coerentes de modos de fazer e pensar. Regimes de práticas são práticas institucionais, se esse termo servir para designar uma maneira de roteirizar e ritualizar nossos modos de fazer em certos lugares e tempos” (Ibid., p. 21). Uma analítica das práticas de governo procura investigar o poder a partir de sua dimensão técnica ou tecnológica, ou seja, tomando como apoio da análise os instrumentos e mecanismos através dos quais o poder opera, realiza seus objetivos, produz seus efeitos e ganha extensão. Em suma, é um tipo de serialização do governo para tornar inteligível o exercício do poder.

O método serial de Proudhon tem o mérito de analisar o poder fora dessas imagens do Estado e dessas oposições convencionais da filosofia política. Proudhon definiu o problema do poder em termos de práticas de governo, ou seja, em termos de série na qual o governo é compreendido como o exercício da autoridade política. Ao invés de analisar o poder em termos de origem e legitimidade, como fazem as teorias da soberania, Proudhon toma como objeto de análise os projetos, as estratégias e as diversas tecnologias de governo por meio dos quais o princípio da autoridade política não somente é conservado, mas também reinvestido e exercido em sua plenitude. Faz isso, por exemplo, quando demonstra toda a quimera do projeto político de Rousseau, que pretende estabelecer oposição e descontinuidade entre o tipo de poder inaugurado pelo contrato e o antigo poder das monarquias.

O governo vinha de cima, [Rousseau] o fez vir de baixo pela mecânica do sufrágio mais ou menos universal. Ele não teve o cuidado de compreender que, se o governo tinha se tornado, no seu tempo, corrupto e frágil, era justamente porque o princípio de autoridade, aplicado a uma nação, é falso e abusivo; consequentemente, não era a forma do poder ou sua origem que era preciso alterar, mas é sua própria aplicação que era preciso negar. (PROUDHON, 1979, p. 111)

101 Rousseau não introduziu nenhuma descontinuidade com a mecânica do sufrágio, apenas deu outra direção ao exercício do poder soberano. Segundo Proudhon, aquilo que Rousseau faz ao pretender uma identidade entre governo e governados e ao pleitear extrair a legitimidade do governo da universalidade da lei, “não é outra coisa mais do que uma perpétua escamoteação” (Ibid., p. 124) dos fatos da dominação política, porque reduz os jogos de dessimetrias existentes entre a soberania fictícia do povo e o exercício real do poder governamental.

A lei, dizia-se, é a expressão da vontade do soberano: portanto, sob uma monarquia, a lei é a expressão da vontade do rei; numa república a lei é a expressão da vontade do povo. A parte a diferença do número de vontades, os dois sistemas são perfeitamente idênticos: num e no outro o erro é igual: fazer da lei a expressão de uma vontade enquanto deve ser a expressão de um fato. Contudo, seguiam-se bons guias: tomara-se por profeta o cidadão de Genebra e o Contrato Social por Alcorão. (PROUDHON, 1997, p. 28)

Em oposição ao reducionismo de Rousseau, Proudhon empenhou-se em dar visibilidade às práticas de governo a partir de uma linha de transformação, de variação e, sobretudo, de aperfeiçoamento do exercício da soberania. O objetivo era afirmar que esses regimes de práticas não são redutíveis nem às formas nem à origem do poder, mas que, ao contrário, estendiam-se e conectavam-se a um grande número de instituições, sistemas políticos e concepções jurídico-filosóficas. O que as práticas de governo deveriam mostrar é que a instituição soberana, ao contrário de ter sido eliminada pela instituição democrática, tinha sido reinvestida em um outro domínio de objetos, o da economia. Proudhon tinha clareza que a economia política não era um simples ramo do saber relativo à produção da riqueza e à organização do trabalho, mas que também abrangia a esfera governamental, tanto quanto o comércio e a indústria.

Do governo aos administrados, dos administrados ao governo, tudo é serviço recíproco, troca, salário e reembolso; no governo, tudo é direção, repartição, circulação, organização: em que, portanto, a economia política excluiria de seu domínio o governo? Seria pela diversidade dos fins? Mas o governo é a direção das forças sociais em direção ao bem-estar ou à utilidade geral: ora, o fim da economia política não é também o bem-estar de todos, a utilidade, a justiça! Não está entre suas atribuições essenciais distinguir o que é útil do que é improdutivo? Os economistas não se denominaram utilitários? (PROUDHON, 2000b, p. 13)

Afirma Proudhon que essas leis de organização do trabalho das quais a economia política se ocupa são igualmente “comuns às funções legislativas, administrativas e judiciárias” (Id.). Ocorre que, de um lado, a economia política estabeleceu como o princípio que rege a sociedade o privilégio resultante do acaso e da sorte do comércio, e, de outro, o governo se dá por função proteger e defender cada um na sua pessoa, sua indústria e propriedade. Assim, se pelo acaso das coisas “a propriedade, a riqueza, o bem-estar estão de um lado, a miséria de outro, é claro que o governo encontra-se constituído de fato para a defesa da classe rica contra a classe pobre. É preciso, para a perfeição desse regime, que isso que existe de fato, seja definido e consagrado em direito: é precisamente o que quer o poder” (PROUDHON, 1979, p. 47). Por isso, no fundo, a Revolução Francesa, não atacou a soberania na sua materialidade, mas atingiu apenas sua “metafísica governamental”. Das palavras liberdade e igualdade fixadas na constituição e na forma da lei, não existia algum vestígio nas instituições.

Os abusos abandonaram a fisionomia que tinham antes de 1789 para retomar uma outra organização; eles não diminuíram nem em número, nem em gravidade. A força de preocupações políticas, perdemos de vista a economia social. Foi assim que o partido democrático em pessoa, o herdeiro primeiro da revolução, quis reformar a sociedade pelo Estado, criar instituições pela virtude prolífica do poder, corrigir o abuso com o abuso. (Ibid., p. 57)

Para Proudhon, Rousseau reinscreveu o velho problema da soberania em termos de “contrato”, “natureza”, “vontade geral” etc., suprimindo a trama de relações, já que o pacto social deveria ser chamado para produzir seus efeitos, e se ocupando apenas das relações políticas mais superficiais (Ibid., p. 93). Segundo Proudhon (Ibid., p. 93-94), Rousseau não considerou o contrato social nem como um ato comutativo, nem como um ato de sociedade, mas como um ato constitutivo de arbítrio, exterior a toda prévia convenção, para todos os casos de contestação, querela, fraude ou violência possíveis de se apresentarem nas relações e, sobretudo, revestidos de força suficiente para dar execução a seus julgamentos e pagar seus tribunais.

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Rousseau define assim o contrato social: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, de toda força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um se unindo a todos, não obedeça mais do que a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes”. Sim, essas são bem as condições do pacto social quanto à proteção e à defesa dos bens e das pessoas. Mas, quanto ao modo de aquisição e transmissão dos bens, quanto ao trabalho, à troca, ao valor e preço dos produtos, à educação, à essa multidão de relações que, bem ou mal, constituem o homem em sociedade perpétua com seus semelhantes, Rousseau não diz uma palavra, sua teoria é da mais perfeita insignificância (Ibid., p. 94- 95).

O contrato social não seria outra coisa que um seguro mútuo para a proteção das pessoas e das propriedades, quer dizer, “a aliança ofensiva e defensiva dos possuidores contra desapossados, e a parte que nele toma cada cidadão é a polícia da qual está interessado em pagar, ao pro rata de sua fortuna, e segundo a importância dos riscos que o pauperismo o faz correr” (Ibid., p. 95). Portanto, “tudo o mais, a saber, a coisa econômica, a mais essencial, é abandonada ao acaso do nascimento e da especulação” (Ibid., p. 95). É pelo fato, segundo Proudhon (Ibid., p. 98), de Rousseau não ter nada sabido de economia, é porque seu programa fala apenas e exclusivamente de direitos políticos e por ter ignorado a realidade dos direitos econômicos, que, “após ter feito, sob o título mentiroso de contrato social, o código da tirania capitalista e mercantil, o charlatão genovês concluiu pela necessidade do proletário, pela subalternização do trabalhador, pela ditadura e inquisição. Sua filosofia é só frases e recobre apenas vazio; sua política é plena de dominação”.

Assim, o chamado governo direto, defendido pelos democratas rousseaunianos jamais foi outra coisa na história, segundo PROUDHON (Ibid., p. 89), que “a época palingenésica das aristocracias destruídas e dos tronos destroçados”. O governo direto, caro aos democratas, é a fórmula através da qual e “na ausência mesmo de toda realeza, aristocracia e sacerdócio, é possível sempre colocar a coletividade abstrata do povo à disposição do parasitismo da minoria e à opressão da maioria” (Ibid., p. 96). Pacto de raiva, monumento de misantropia, coalizão dos barões da propriedade, do comércio e da indústria contra o proletariado, sermão de guerra social: eis o que é o contrato social aos olhos de Proudhon. Ali onde frequentemente

foi vista uma grande novidade e o nascimento da igualdade e da liberdade entre os homens, Proudhon viu a repetição monótona do velho princípio de autoridade em seu exercício e percebeu como sob esses discursos democráticos e eloqüentes do século XVIII funcionava “essa mesma teoria da soberania, reativada do direito romano, que [se encontrava] em Rousseau e em seus contemporâneos, com um outro papel (...): construir, contra as monarquias administrativas, autoritárias ou absolutas, um modelo alternativo, o das democracias parlamentares” (FOUCAULT, 1999a, p. 42).