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capítulo 2: governo da política

2. questão social

A partir da segunda metade do século XIX, começou a se desenhar uma nova estratégia política que encontrou no princípio da organização o campo do qual retirou os instrumentos de análise. Essa estratégia atravessou a reflexão de dois autores que tinham em comum o fato de terem vivenciado a revolução de 1848, porém em campos opostos: Tocqueville e Proudhon. O primeiro, que tinha insistido, na sua Memória sobre o pauperismo, de 1837, sobre a eficácia da organização popular contra as agitações operárias, viu na revolução de 1848, e na violência de seus atos, a confirmação de suas inquietações. O segundo, que tinha queimado, no plano das idéias, o princípio de propriedade em seu libelo O que é a Propriedade?, de 1840, viu os operários de 1848 o queimarem de fato, e atacou o princípio da organização, dizendo “ocultar um pensamento dissimulado de exploração e de despotismo” (PROUDHON, 1979, p. 62). A revolução de 1848 foi o retorno ao debate político da questão social.

De acordo com Procacci, questão social foi um sentido importante e novo emprestado à pobreza durante as agitações revolucionárias do final do século XVIII, um sentido que colocava frequentemente um desafio e uma questão a ser resolvida. Um sentido emprestado à pobreza que se tornou “uma das grandes questões de interesse público e ocupou nos espíritos um lugar real e simbólico no qual estavam em jogo as chances da nova ordem social e a obsessão de seu fracasso. Assim nasce a questão social, espaço discursivo e prático ao mesmo tempo, designando os problemas que a miséria finalmente coloca à sociedade” (PROCACCI, 1993, p. 13). Essa questão, que inquietou os revolucionários de 1789, emergiu no cenário político, violenta e ameaçadora, sob os efeitos da revolução de 1848. A partir de 1848 entra em cena uma forma suprema de violência operária, ao menos para a sociedade liberal. Tocqueville impressionara-se pelo caráter popular da revolução que acabava de ser realizada, um “caráter que eu não diria principal, mas único e exclusivo; a onipotência que havia dado ao povo propriamente dito, ou seja, às classes que trabalham com as mãos, sobre

157 todas as outras”. A Revolução de Fevereiro lhe parecia, finalmente, “feita inteiramente à margem da burguesia, e contra ela” (TOCQUEVILLE, 1991, p. 91-92). Correlativamente, Foucault mostrou como na passagem do século XVIII para o XIX surgiu um ilegalismo popular novo, de outro tipo. Foi nessa época que as ilegalidades conheceram um desenvolvimento a partir de novas dimensões, que portavam consigo os efeitos da revolução de 1848, incorporando movimentos que entrecruzaram “os conflitos sociais, as lutas contra os regimes políticos, a resistência ao movimento de industrialização, os efeitos das crises econômicas” (FOUCAULT, 2000a, p. 227). Assim, tendo sido uma prática limitada a ela mesma, as ilegalidades populares durante a revolução ganharam uma dimensão de “lutas diretamente políticas, que tinham por finalidade, não simplesmente fazer ceder o poder ou transferir uma medida intolerável, mas mudar o governo e a própria estrutura do poder” (Id.). Outro aspecto fundamental da revolução de 1848 foi, diz Proudhon, que a revolução não buscou o triunfo de um partido, mas aspirava fundar uma experiência e uma filosofia social novas.

Antes da batalha de junho, a Revolução tinha apenas consciência dela mesma: era uma aspiração vaga das classes operárias em direção a uma condição menos infeliz. (...) Graças à perseguição que ela sofreu, a Revolução hoje conhece-se a si mesma. Ela expressa sua razão de ser; ela conhece seu princípio, seus meios, seu fim; ela possui seu método e seu critério. Ela somente tem necessidade, para se compreender, de seguir a filiação das idéias dos seus diferentes adversários. Nesse momento, ela se liberta das falsas doutrinas que a obscurecem, dos partidos e das tradições que a encobrem: livre e brilhante, vocês a verão apoderar-se das massas e as precipitar em direção ao futuro com um impulso irresistível (PROUDHON, 1979, p. 25).

A Revolução conhece-se a si mesma. Em 1848 foi “extraordinário e terrível ver exclusivamente nas mãos dos que nada possuíam toda uma imensa cidade cheia de tanta riqueza, ou melhor, toda essa grande nação, pois, graças à centralização, quem reina em Paris comanda a França” (TOCQUEVILLE, 1991, p. 92). A filosofia da Revolução de Fevereiro foi o socialismo que, após ter suscitado a guerra entre as classes, segundo Tocqueville, continuou sendo seu “caráter mais essencial e a lembrança mais temível” de 1848 (Ibid., p. 95). E ele tinha razão. Em um primeiro momento, foi essa temível lembrança do radicalismo de 1848 que esteve presente na

fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores, atuando sobretudo pela figura de Mazzini, cujo republicanismo democrático, tão temido pela monarquia italiana, foi gestado nos antecedentes parisienses a 1848 e continha uma profunda aversão pela monarquia liberal de Luís Felipe. Para Mazzini, a monarquia liberal era particularmente insidiosa porque dava ao povo a esperança de uma mudança significativa realizada através de reformas moderadas e constitucionais. “O liberalismo, seja ‘alla Luís Felipe’, seja nas formas nas quais seria praticado sucessivamente pela monarquia piemontesa, era particularmente perigoso porque seus tons moderados dissipavam a diversidade de princípios e atenuavam a sensibilidade nos confrontos dos problemas morais”. Foi essa disposição que fez Mazzini afastar-se dos carbonários, “que preferiam a cooperação com os monarquistas moderados”, para fundar La Giovine Italia em 1831 (SARTI, 2000, p. 64). Esse radicalismo fará aproximar Mazzini a Bakunin em 1861, quando os dois revolucionários se encontram em Genova para discutir o apoio comum que dariam à insurreição polonesa, assim como foi esse radicalismo que, em 1864, o lançará nas filas da AIT. Mas a AIT também herdou o radicalismo de 1848 com os franceses refugiados em Londres, que não eram partidários de Blanqui nem de Proudhon, e com os delegados internacionalistas da Suíça francesa.

Seja como for, parece que a revolução de 1848 fez seu o eco lançado pelo libelo de Proudhon sobre a propriedade, na medida em que foi a oposição entre proprietários e não-proprietários que atravessou todo o corpo social durante as agitações de 1848. Tocqueville lembra como o povo, após descobrir que sua posição de inferioridade não era devida à constituição do governo, voltou-se contra a propriedade, olhando-a “como principal obstáculo para a igualdade entre os homens, até o ponto de parecer o único signo de desigualdade” (TOCQUEVILLE, 1991, p. 92). Em 1840, Proudhon tinha correlacionado o político com o problema econômico nos duplos escravidão/propriedade e assassinato/roubo. Para Tocqueville foram essas “falsas teorias” que haviam “assegurado às pessoas pobres que o bem dos ricos era de

159 alguma maneira o produto de um roubo cujas vítimas eram elas”, fazendo da revolução “um esforço brutal e cego, mas poderoso, dos operários para escapar às necessidades de sua condição (que lhes havia sido descrita como uma opressão ilegítima) e para abrir a fórceps um caminho em direção àquele bem-estar imaginário (que se lhes havia mostrado de longe como um direito)” (TOCQUEVILLE, 1991, p. 150).

Opressão ilegítima e direito ao bem-estar. A revolução de 1848 foi um momento de crise em que a governamentalidade teve sua racionalidade política reformulada. Foi um acontecimento que colocou a noção de soberania num impasse: a insurreição de 1848 projetou a sombra perigosa da revolução de 1793 como obra incompleta, na medida em que era evidente o não cumprimento da promessa rousseuaniana da transferência da soberania do príncipe para o povo. Os acontecimentos de 1848 fizeram reacender na sociedade o fogo de múltiplas batalhas. Estava em jogo a legitimidade do poder central, a manifesta fragilidade do novo fundamento do poder saído da Revolução Francesa. E isso fez com que a questão social fosse definida nos seguintes termos: “como reduzir a distância entre o novo fundamento da ordem política e a realidade da ordem social, com a finalidade de assegurar a credibilidade da primeira e a estabilidade da segunda, caso não se queira que o poder republicano seja novamente investido de desesperanças desmedidas e vítima do desencantamento destruidor desses mesmos que deveriam defendê-lo?” (DONZELOT, 1994, p. 33). A resposta para essa questão foi encontrada no preenchimento de um estranho vazio existente entre indivíduo e Estado e que, liberais e conservadores concordavam, provocava um excesso de Estado. Tanto liberais quanto conservadores admitiam que “houve um deslocamento ou um desaparecimento dos corpos e das associações que agregavam localmente os indivíduos e, desse modo, intercalavam-se entre eles o Estado. A rápida redução da existência desses corpos, ou pelo menos da sua capacidade de controlar os indivíduos, colocou-os numa relação de face a face direta com o Estado” (Ibid., p. 57). Foi, portanto, um vazio formado pela perda de uma certa organização da sociedade com seus laços, suas hierarquias, suas

influências tradicionais, suas relações de subalternação, de paternidade etc., vazio que deixava unicamente ao Estado a tarefa de se ocupar dos indivíduos. Excesso de Estado como fonte inevitável de conflitos que sempre riscavam a legitimidade da soberania da república e reascendiam o fogo revolucionário de 1793. Procacci mostrou como funcionou, depois da revolução, uma estratégia de neutralização da revolta popular que tomou como encargo o fator organizacional. “Pela primeira vez, com efeito, uma tentativa de neutralização política consistia em tentar organizar o povo: e isso certamente porque as reivindicações populares às quais o governo devia fazer frente comportavam uma demanda de organização. Mas, também, porque uma nova racionalidade política via, finalmente, na organização uma maneira de governar” (PROCACCI, 1993, p. 288). As associações e os clubes operários apresentavam a vantagem de fazer da organização um hábito e de reduzir o antagonismo social. O Estado previdenciário nasce em 1848. As organizações criadas nessa época pelo Estado para canalizar o movimento popular visavam a sindicalização dos operários como “uma maneira de neutralizar a reivindicação de um direito individual ao trabalho” (Ibid., p. 289). Foi a partir dessa noção de organização que se procurou desarmar politicamente os antagonismos entre proprietários e não-proprietários. O potencial de ruptura da miséria foi amortecido com a idéia de dever social, tornado moral ativa do cidadão, novo sujeito da sociedade civil, que serviu de registro para reinscrever as relações políticas no interior do corpo social, despolitizando-as e despotencializando-as, sendo que, de outro modo, reforçariam um face a face entre Estado e indivíduo. “A associação tornava-se assim ao mesmo tempo um modo de resistência contra as tendências despóticas do poder numa sociedade democrática, e uma prática socializada do poder, um tipo de via direta da educação dos cidadãos ao self-government” (Ibid., p. 311).

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