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capítulo 2: governo da política

4. obediência e soberania

Retomando a singularidade do questionamento proudhoniano quando se pergunta não sobre a realidade da idéia do governo, mas acerca de sua validade, de sua procedência, de seu desenvolvimento, de sua economia, enfim, acerca de todo um jogo no qual não estão implicadas apenas as formas do conhecimento, mas o sujeito do saber, quais são os efeitos que sobre a subjetividade pode ter a existência de discursos verdadeiros acerca do governo? Como, a propósito do governo, foram formadas certas práticas jurídico-políticas que implicaram a existência e o desenvolvimento de discursos verdadeiros sobre os sujeitos do poder: seus direitos, o exercício de sua soberania, sua identidade enquanto governado? Mencionamos como Proudhon, no volume dedicado ao Estado, de sua extensa obra De la justice..., precisou a posição do problema político a partir da consideração não da origem do governo, não de sua forma e nem tampouco de sua organização, coisas que ele considerou o material do governo, mas sim a partir do pensamento que o anima, sua idéia. Como a idéia do governo foi sempre, explícita ou silenciosamente, um prejuízo radicalmente oposto à justiça, engendrando uma falsa hipótese para a política? Foi a (an)arqueologia dessa idéia de governo que Proudhon propôs estudar?

As racionalidades de governo, funcionam como instrumentos lógicos através dos quais os povos se têm servido, ou melhor, têm sido arrastados por eles, para escrever a história da perenidade dos governos. Essas racionalidades não são

arcaísmos que sobreviveram à prova dos tempos. As idéias não morrem, como afirmaram DELEUZE & GUATTARI (2005, p. 14), “elas podem então mudar de aplicação, mas guardam algo de essencial, no encaminhamento, no deslocamento, na repartição de um novo domínio. As idéias sempre voltam a servir, porque sempre serviram, mas de modos atuais os mais diferentes”. As racionalidades atuam programando e orientando o conjunto das condutas humanas, constituem a lógica existente tanto nas instituições, na conduta dos indivíduos, quanto nas relações políticas; as racionalidades atuam inclusive nas formações mais violentas (FOUCAULT, 2001c, p. 803), de maneira que o maior perigo não reside na própria violência, mas na sua racionalidade, na medida em que é nas formas da racionalidade que “a violência encontra sua ancoragem mais profunda e tira sua permanência”. A racionalidade governamental é o que arrasta insensivelmente os homens “da monarquia absoluta à monarquia constitucional, dessa a uma república oligárquica ou censitária, da oligarquia à democracia, da democracia à anarquia e da anarquia à ditadura, para logo recomeçar pela monarquia absoluta e percorrer de novo e perpetuamente a mesma escala” (PROUDHON, 1869, p. 51).

É bastante significativo que Proudhon não tenha visto na economia política apenas um discurso servindo de justificação das relações de produção, como o fez Marx, e que tampouco tenha aceitado restringi-la, como pretenderam alguns economistas, no estreito e neutro círculo da produção, da circulação, dos valores, do crédito etc. Proudhon afirmou que a economia política também se estendia ao domínio do governo: à legislação, à instrução pública, à constituição da família, às relações de autoridade e hierarquia etc. (PROUDHON, 2000b, p. 149). Assim, a economia política não se limita apenas a coletar observações dos fenômenos da produção e da distribuição das riquezas, mas também organiza uma jurisprudência através da qual “ela supõe a legitimidade dos fatos descritos e classificados” (PROUDHON, 2003, p. 90). A partir disso, Proudhon percebeu que o velho princípio da soberania política das monarquias tinha se reinvestido nesse novo campo de objetos próprios à economia

129 política. Em outras palavras, as racionalidades do governo, que retiravam suas verdades da imagem do rei soberano, encontraram na economia política a justificação para seu exercício. FOUCAULT (2004c, p. 35) observou como a irrupção de um modelo de mercado na história da governamentalidade constitui um fenômeno absolutamente fundamental, na medida em que será a economia quem fornecerá o domínio das práticas através das quais o poder governamental será exercido. Ou seja, a economia forneceu ao governo seus instrumentos estratégicos.

Proudhon faz a crítica da economia política considerando-a não, como se costuma fazer, “como a fisiologia da riqueza”, mas como “a prática organizada do roubo e da miséria; assim como a jurisprudência (...) não passa da compilação da rubricas do banditismo legal e oficial” (PROUDHON, 2003, p. 90). Dizia que o direito que emana da economia faz “da concorrência uma guerra civil, da máquina um instrumento de morte, da divisão do trabalho um sistema de embrutecimento do trabalhador, da taxação um meio de extenuação do povo e da posse da terra um domínio feroz e insociável”. Em suma, não há nessa jurisprudência “outra coisa que o direito da força, direito que procede do Rei ou de Deus” (PROUDHON, 1869, p. 60- 61). Tudo ocorre como se a economia política estivesse estruturada de uma maneira tal, como se feita para “uma sociedade na qual todos os sentimentos estão voltados para a guerra e para a desconfiança”, como se tivesse tomado um “estado de espoliação recíproca enquanto o tipo indestrutível das leis econômicas” (PROUDHON, 2000b, p. 29).

Essas racionalidades do campo econômico penetraram e orientaram as práticas de governo ditas democráticas. A partir disso, na série governo encontraram- se dois termos. O primeiro: uma concepção de sociedade de indivíduos similares e justapostos, sendo que “cada um dos quais sacrifica uma parte de sua liberdade para que todos possam permanecer justapostos sem lesar uns aos outros e viver juntos em paz”. Essa é a verdadeira teoria de Rousseau, diz PROUDHON (1869, p. 47), e “não é mais do que o sistema da arbitrariedade governativa”. O segundo termo da série

emergiu “após ter-se esgotado o governo de direito divino, o governo da insurreição, o governo da moderação, o governo da força, o governo da legitimidade”: esse foi o “governo dos interesses” (PROUDHON, 1947, p. 51), que concebeu a sociedade como uma ficção, resultando do desenvolvimento espontâneo de uma massa de fenômenos e necessidades previamente presentes nos indivíduos: o laissez-faire, laissez-passer tudo e todos! Esse governo fez da oferta e da procura duas divindades caprichosas e ingovernáveis, “empenhadas em semear o distúrbio nas relações comerciais e o engodo nos pobres humanos” (PROUDHON, 2000b, p. 28).

A partir disso, quando os homens questionaram: por que pretendeis reinar sobre mim e me governar? A resposta foi: “porque as faculdades individuais sendo desiguais, os interesses opostos, as paixões antagônicas, o bem particular de cada um oposto ao bem de todos, é preciso uma autoridade que sinalize os limites dos direitos e deveres, um árbitro que impeça os conflitos, uma força pública que faça executar os julgamentos do soberano” (PROUDHON, 1979, p. 105). O poder foi definido, portanto, precisamente como essa força arbitrária que rende a cada um o que lhe pertence, força que assegura e faz respeitar a paz. É uma tal exposição que se repete desde a origem das sociedades, igual em todas as épocas e na boca de todos os poderes: “encontráreis idêntica, invariável, nos livros dos economistas malthusianos, nos jornais da reação e na profissão de fé dos republicanos. Não existe diferença, entre todos eles, a não ser nas medidas de concessão que pretendem fazer à liberdade: concessões ilusórias, que acrescentam às formas de governo ditas temperadas, constitucionais, democráticas etc., um tempero de hipocrisia cujo sabor as tornam ainda mais suspeitas” (Id.).

Assim, o governo, na simplicidade de sua natureza, é apresentado como condição absoluta e necessária de ordem: “é por ela que ele aspira sempre, e sob todas suas máscaras, ao absolutismo: com efeito, a partir desse princípio, quanto mais o governo é forte, mais a ordem se aproxima da perfeição” (Id.). Governo e ordem apareceriam, portanto, numa relação lógica de causa e efeito. Mas, diz Proudhon, a

131 relação concreta e efetiva que o governo mantém com a ordem não é a de causa e efeito, mas, ao contrário, a relação “do particular ao geral”. E porque existem várias maneiras de conceber a ordem, “quem nos prova que a ordem na sociedade seja aquela que apraz a seus mestres de indicá-la?” (Ibid., p. 106) E todos aqueles antagonismos de interesses e de fortuna, as oposições dos bens e as desigualdades das faculdades, por que tudo isso deveria servir de pretexto à tirania? (Id.). Não seriam esses antagonismos justamente que comportariam a questão social? Essa questão o governo não soube resolver senão com o cassetete e a baioneta: “Saint-Simon tinha razão de tornar sinônimas essas duas palavras, governamental e militar” (Id.). Desde o momento em que o governo se deu como princípio as verdades da economia política, não há possibilidade de manter a ordem fora da consagração da obediência. “Não há saída: antagonismo inevitável, fatal, dos interesses, eis o motivo; centralização ordenadora e hierárquica, eis a conclusão” (Ibid., p. 222).

O que era a soberania do príncipe? O direito de fazer morrer. O que é a soberania da economia política? O direito de deixar morrer. É a fórmula e o princípio de “Malthus, que recomenda, sob as ameaças as mais terríveis, a todo homem que não tem para viver nem trabalho nem sustento, que se vá, sobretudo de não fazer filhos. A família, quer dizer, o amor e o pão são, da parte de Malthus, proibidos a esse homem” (PROUDHON, 1996a, p. 118). Esse princípio econômico de Malthus, que os economistas tornaram dogma, é a teoria do “assassinato político”, a “organização do homicídio” como equilíbrio entre população e meios de subsistência.

Eis, portanto, qual é a conclusão necessária, fatal, da economia política (...): morte a quem nada possui. Para melhor captar o pensamento de Malthus, traduzamo-lo em proposições filosóficas, despojando-o de seu verniz oratório: “a liberdade individual, e a propriedade que é sua expressão, são dadas na economia política; a igualdade e a solidariedade não o são. Sob esse regime, é cada um por si: o trabalho, como toda a mercadoria, está sujeito à alta e à baixa, e daí decorrem os riscos do proletariado. Todo aquele que não tiver renda nem salário, não tem o direito de exigir coisa alguma dos outros: sua infelicidade recai apenas sobre ele; no jogo da fortuna a sorte apostou contra ele”. Do ponto de vista da economia política essas proposições são irrefutáveis, e Malthus, que as formulou com tão alarmante precisão, está ao abrigo de qualquer crítica. (PROUDHON, 2003, p. 108)

A esse estado de coisas, os economistas tomam partido ao concluir que “tudo isso concorre para o bem, e consideram qualquer proposta de mudança como hostil à economia política” (Ibid., p. 111), fazendo da revolução ou das instabilidades do poder a maior das necessidades diante, diz Proudhon, de todas essas fantasias de comédia que são as constituições e o sufrágio universal.

Ao conservar o princípio da soberania, a economia política procurou, no fundo, pacificar esses fenômenos particularmente constantes e numerosos na história das nossas sociedades, que são as instabilidades políticas que têm caracterizado toda consciência histórica do Ocidente: “Que há na história que não seja o apelo à revolução ou o medo dela?” (FOUCAULT, 1999a, p. 98) A economia política confirmou uma vez mais essa particularidade, que “nas sociedades humanas não existe poder político sem dominação” (Ibid., 2001c, p. 804), e fez com que um dos maiores paradoxos da política seja esse fato de que, “no momento mesmo em que o Estado começa a praticar seus maiores massacres, é também o momento em que ele passa a se preocupar com a saúde física e mental de seus indivíduos” (Ibid., p. 802).

A economia eternizou na política o pauperismo, o crime, a guerra, as convulsões, e o despotismo quando pretendeu eternizar o proletariado. Depois de tudo, o ato de ser governado pode ser designado por meio dessa, talvez, a mais célebre descrição de PROUDHON (1979, p. 248).

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Ser governado é ser averiguado, inspecionado, espionado, dirigido, legiferado, regulamentado, confinado, catequizado, exortado, controlado, estimado, apreciado, censurado, comandado por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude... Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, anotado, registrado, recenseado, tarifado, timbrado, medido, cotado, cotizado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, admoestado, impedido, reformado, endireitado, corrigido. É ser, sob pretexto de utilidade pública e em nome do interesse geral, taxado, exercido, racionado, explorado, monopolizado, chantageado, pressionado, mistificado, roubado; em seguida, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, caçado, brutalizado, abatido, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, como se não bastasse, satirizado, ridicularizado, ultrajado, desonrado. Eis o governo, eis sua justiça, eis sua moral! E dizer que existe entre nós democratas que pretendem que o governo contenha o bem; socialistas que desejam, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, essa ignomínia; proletários que colocam sua candidatura à presidência da república! Hipocrisia!...

Através dessa análise no domínio do político proposta por Proudhon, é possível demonstrar a existência de uma problemática que chamo “anarquia e governamentalidade”, e que coloca a especificidade da anarquia e do anarquismo como sendo constituída por um posicionamento crítico frente ao exercício do poder e uma atitude contrária ao governo, entendido como princípio de autoridade: posicionamento e atitude em que o governo é analisado não através das formas e das origens do poder, mas a partir das práticas e do exercício do poder. Quero sugerir que a configuração inaugural que Proudhon deu à anarquia permite não somente aproximá- la disso que é conhecido atualmente como “estudos em governamentalidade”, mas que também permite apontar, a partir dessa configuração, a possibilidade de uma relação de procedência: de que maneira e em que medida seria possível falar de uma procedência desses estudos em governamentalidade na anarquia esboçada por Proudhon no século XIX? Talvez seja isso o que poderíamos chamar de “tese” neste trabalho. Em todo caso, a problemática “anarquia e governamentalidade” é o que certamente possibilita colocar a pertinência da crítica anarquista para um estudo das relações de poder realizado fora dos reducionismos e determinismos provocados pelas análises centradas no Estado.

Como mencionado por Dean, os Estados nacionais foram constituídos a partir de um longo e complexo processo de pacificação interna de territórios, de monopólio do uso legítimo da violência, de taxações. Processos que impuseram crenças comuns, um cenário comum de leis e de autoridade legal, um certo índice de literatura e de linguagem e até mesmo um sistema estável e contínuo de tempo e espaço. Mas, apesar da complexidade desse processo de constituição dos Estados, a imagem comumente encontrada na literatura especializada da ciência política, é a de um Estado

tomado como um ator relativamente unificado, composto de diplomacia e de exército perseguindo interesses geopolíticos e de um sistema interno de autoridade. Na realidade, as teorias do Estado nas ciências sociais assumem essa unidade quando se empenham em descobrir as fontes do poder do Estado e a base de sua legitimidade. Teorias democráticas, liberais, pluralistas, elitistas, marxistas e feministas do Estado colocam essas mesmas questões de maneiras diferentes. Portanto, a fonte do poder pode ser variavelmente identificada no povo, nos indivíduos, nas elites, nas relações de produção, no patriarcado. Aqueles que detêm o poder serão o povo, as elites, a classe dominante, o homem etc., e a legitimidade de sua ordem estará assentada sobre a lei, a classe hegemônica, a ideologia dominante, o consenso dos governados, a cultura patriarcal etc. (DEAN, 1999, p. 24).

São análises cujo foco recai sobre o problema da soberania, o problema da relação entre o soberano e os sujeitos. Essas análises se propõem examinar a legitimidade do soberano, as bases da autoridade e do direito e, a partir disso, estabelecer os fundamentos da soberania, que serão encontrados no direito divino, ou na ordem da lei, ou na ordem do povo. E as bases da autoridade soberana serão estabelecidas na fé, ou no contrato, ou na ideologia. Portanto, o problema que elas colocam é o de saber: quem detém o poder? É legítimo seu exercício? Qual a base da autoridade do soberano e da relação entre soberano e sujeitos? A personagem central desses edifícios teóricos é o poder soberano. É invariavelmente da personagem do rei que, como observou FOUCAULT (1999a, p. 30), eles fundamentalmente tratam, seja como servidores, seja como adversários.

Também o marxismo retomou a análise do poder em termos de soberania. Assim como a teoria liberal ou jurídica do poder, o marxismo sofre do que Foucault

135 chamou de economismo na teoria do poder. Enquanto na teoria liberal o poder aparece como um direito que o indivíduo cede para constituir a soberania política, através de uma operação jurídica que estabelece analogia entre poder e riqueza, a análise marxista estabelece uma funcionalidade econômica do poder, em que o poder teria como função essencial garantir e perpetuar determinadas relações de produção e, consequentemente, dominações de classe. “Em linhas gerais, se preferirem, num caso, tem-se um poder político que encontraria, no procedimento da troca, na economia da circulação dos bens, seu modelo formal; e, no outro caso, o poder político teria na economia sua razão de ser histórica, e o princípio de sua forma concreta e de seu funcionamento atual” (Ibid., p. 20). Ao contrário, para Proudhon e para o anarquismo, o que está em questão é menos o nome, a forma ou a origem do governo, do que o próprio princípio de autoridade. Não é, portanto, a delimitação formal ou jurídica do poder sob a forma de governo, seja ele qual for, mas é o princípio de autoridade, como dimensão factual e constituinte do exercício do governo, que deve servir de grade para a inteligibilidade das relações de poder.

A autoridade é para o governo isso que o pensamento é para a palavra, a idéia para o fato, a alma para o corpo. A autoridade é o governo em seu princípio, como a autoridade é o governo em seu exercício. Abolir um ou outro, se a abolição é real, é destruí-los ao mesmo tempo; pela mesma razão, conservar um ou outro, se a conservação é efetiva, é manter ambos (PROUDHON, 1979, p. 85).

Foi nesses termos que Proudhon se posicionou diante do rousseaunismo de sua época, não vendo nele mais do que a autoridade reinvestida. Em seu curso de 1976, FOUCAULT (1999a, p. 40), falando da teoria da soberania, evocou a alegoria do Leviatã: “homem artificial, a um só tempo autômato, fabricado e unitário igualmente, que envolveria todos os indivíduos reais, e cujo corpo seriam os cidadãos, mas cuja alma seria a soberania”. Segundo Foucault, essa teoria, que data da Idade Média, foi reativada do direito romano para constituir-se em torno do problema da monarquia e do monarca, e desempenhou quatro papéis. O primeiro deles foi a justificação do poder das monarquias de tipo feudal; depois, ela serviu de instrumento

e justificação para a constituição das grandes monarquias administrativas; em seguida, o terceiro papel, a partir do século XVI e XVII, circulou indiscriminadamente nas mãos das forças opostas pelas guerras de religião, tanto para a limitação quanto para o fortalecimento do poder régio: católicos monarquistas ou protestantes anti- monarquistas, protestantes mais ou menos liberais ou católicos regicidas etc.; finalmente, diz Foucault,

no século XVIII, é sempre essa mesma teoria da soberania, reativada do direito romano, que vocês vão encontrar em Rousseau e em seus contemporâneos, com um outro papel, um quarto papel: trata-se naquele momento de construir, contra as monarquias administrativas, autoritárias e absolutas, um modelo alternativo, o das democracias parlamentares. E é este papel que ela ainda representa no momento da Revolução. (Ibid., p. 41-42)

Retomando o fio desse raciocínio, seria preciso dar à teoria da soberania um quinto papel, atribuído pelo marxismo e pela social-democracia no século XIX, e que fez funcionar no interior do socialismo os mesmos mecanismos de poder que a burguesia tinha instaurado com o sistema representativo. Como sugeriu HINDESS (1993, p. 301), liberalismo, socialismo e democracia, se considerados a partir de suas reflexões sobre o poder, podem ser compreendidos como simples variações sobre um mesmo tema governamental. “A presença de figuras vistas como realidades naturalmente ou historicamente dadas, ou como artefatos que ainda não estão completamente realizados, é um aspecto onipresente da vida política: veja-se o estatuto da ‘nação’ ou do ‘povo’ no discurso nacionalista, ou da ‘classe trabalhadora’ no marxismo e em muitos outros socialismos”. É a partir desse estatuto, que Hindess chamou ontológico, que são fixados o caráter e os limites da legitimidade governamental, e definidos os objetivos para uma variedade de projetos governamentais. Portanto, o que permeia figuras como nação, povo, classe etc., é o mesmo tipo de estatuto ontológico da comunidade de indivíduos livres, erroneamente atribuído apenas ao liberalismo. Segundo HINDESS (Ibid., p. 308) essa figura jogou