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A análise em termos de relações de forças no domínio político é um dos aspectos fundamentais nos estudos em governamentalidade. Como sugeriu ROSE (1999, p. 5), nesses estudos as investigações sobre governo consideram as forças que atravessam os múltiplos conflitos através dos quais a conduta dos indivíduos está sujeita ao governo: prisões, clínicas, salas de aula e abrigos, empresas e escritórios, aeroportos e organizações militares, mercados e shopping centers, relações sexuais etc. O objetivo da análise é

localizar as relações de força a um nível molecular, a maneira como circulam através de múltiplas tecnologias humanas, em todas as práticas, arenas e espaços nos quais programas para a administração dos outros imbricam-se com técnicas para a administração de si mesmo. Ela focaliza sobre as várias manifestações disso que se poderia chamar “a vontade de governar” representada em uma multidão de programas, estratégias, táticas, dispositivos, cálculos, negociações, intrigas, persuasões e seduções objetivando conduzir a conduta dos indivíduos, grupos, populações – e até de si mesmo.

Em uma perspectiva da governamentalidade questões de Estado e soberania, tradicionalmente centrais para as investigações do poder político, são deslocadas. “O Estado aparece agora como simples elemento – cuja funcionalidade é historicamente específica e contextualmente variável – em meio a muitos circuitos de poder, conectando uma diversidade de autoridades e forças, no interior de uma totalidade variada de conjuntos complexos” (Id.).

O termo governamentalidade foi forjado no curso “Segurança, Território, População” [Sécurité, Territoire, Population]; malgrado o título, o curso vai lidar com outra problemática a partir da aula de primeiro de fevereiro de 1978: se as aulas anteriores, como explica FOUCAULT (2004b, p. 91) tinham sido dedicadas à série segurança-população-governo, agora tratar-se-á de estudar o problema do governo. O deslocamento é de tal modo visível que, após ter introduzido a problemática da governamentalidade, Foucault dirá no fim dessa aula “que no fundo, se eu quisesse ter dado ao curso que realizo este ano um título mais exato, não seria certamente ‘segurança, território, população’ que eu teria escolhido. O que gostaria de fazer agora (...) seria qualquer coisa que eu chamaria de uma história da ‘governamentalidade’” (Ibid., p. 111). Como ressalta da sua própria afirmação, essa noção se tornou fundamental para o conjunto da obra de Foucault. Seria preciso seguir alguns de seus desenvolvimentos para melhor compreender essa importância.

Logo após a aparição do primeiro volume de História da Sexualidade, Michel FOUCAULT (2001c, p. 231) dizia, em entrevista de janeiro de 1977, que o essencial de seu trabalho foi “uma re-elaboração da teoria do poder”. Nessa re- elaboração afirma ter abandonado uma concepção tradicional do poder como

25 mecanismo essencialmente jurídico que dita a lei, poder como interdição com seus efeitos negativos de exclusão, rejeição etc. A Ordem do Discurso, de 1970, aparece como um momento de transição, no qual à articulação do discurso com os mecanismos de poder, Foucault afirma ter proposto uma resposta inadequada ao retomar a concepção de poder que tinha utilizado em História da Loucura e que, no contexto desse projeto, lhe pareceu suficiente, já que “durante o período clássico, o poder se exerceu sobre a loucura sem dúvida nenhuma, pelo menos sob a forma maior da exclusão; assiste-se, então, a uma grande reação de rejeição na qual a loucura encontrou-se implicada. De modo que, analisando esse fato, pude utilizar sem muito problema uma concepção puramente negativa do poder” (Ibid., p. 229). Segundo Foucault, foi sua experiência concreta a propósito das prisões, em 1971-1972, que o convenceu de que “não era em termos de direito, mas em termos de tecnologia, em termos de tática e estratégia” (Id.) que era preciso analisar o poder. Essa substituição ele operou primeiramente em Vigiar e Punir, publicado em 1975.

Foi no interior dessa re-elaboração da teoria do poder que Foucault forjou os neologismos biopolítica e governamentalidade, ambos destinados a analisar relações de poder sob diferentes aspectos: o primeiro ao nível dos processos ligados à população, o segundo ao nível das tecnologias de governo. Essas duas noções constituem a contribuição mais importante de Foucault para o debate no interior da ciência política: sua força de inovação inaugurou um novo ramo de saber no domínio da política, sobretudo com a escola anglófona governmentality studies, que rompeu com as tradições liberal e marxista de análise do poder.

Com as contestações de 1968, o colapso do comunismo na Europa oriental e na ex-URSS, assistiu-se também à crise dos modelos hegemônicos no pensamento político, representados pelo liberalismo e pelo marxismo, e um novo horizonte foi aberto, permitindo uma “insurreição de saberes sujeitados” que provou a eficácia de críticas descontínuas, locais e particulares, críticas que, segundo Foucault (1999a, p. 10), tinham sido até então suspensas pelos efeitos de teorias envolventes e globais. A

irrupção de uma imensa criticabilidade das coisas levantava problemas relacionados ao poder e ao seu funcionamento nos diversos campos do saber, desde a medicina até a pedagogia, passando pela psiquiatria, pela criminologia, pela psicanálise etc. A contestação, portanto, atingiu o poder no lugar mesmo onde se exercia, na imediatice de seu exercício e através dos próprios corpos que ele investia. Lutas locais e particulares contra a autoridade de um poder que atuava a nível microfísico: poder do macho, do pai, do homem, do branco, do médico, do psicanalista etc., questionados por homossexuais, por filhos, por mulheres, por negros, por doentes, por loucos etc. A partir das contestações de 1968 o desejo começou a ser levado em conta, fazendo emergir um certo sujeito revolucionário plural. Sujeito que não era somente proletário, mas proletário e homossexual, louco, drogado, feminista, estudante. O final dos anos 1960 foi um período caracterizado pela eficácia das ofensivas dispersas e descontínuas contra as redes de poder. O tipo de saber que essas ofensivas fez circular foi o saber das pessoas, um saber que era particular, local, diferencial e imanente à luta; incapaz, portanto, de se tornar unânime e de exigir consenso, e que retira sua força unicamente da resistência que oferece a tudo que buscava aprisioná-lo. Foram saberes que se manifestaram lá onde materialmente e progressivamente o sujeito era construído pelo poder a partir da multiplicidade dos corpos, das forças, das energias, dos desejos e dos pensamentos.

De um lado, desbloqueio de uma crítica não hierarquizada do poder e, de outro, lutas locais e horizontais contra o poder: trata-se de um cenário que tornou atual e urgente uma tradição anárquica do pensamento político ocidental que tinha sido, desde a derrota da Revolução Espanhola e a ascensão totalitária na Europa e na América, se não desqualificada, ao menos desacreditada na sua força crítica. Foi a partir desse cenário, como dirá COLSON (2004, p. 31), que “a idéia anarquista podia reafirmar uma concepção do mundo na qual todas as coisas estão reportadas a uma pluralidade infinita de forças e de pontos de vista em luta por sua afirmação, uma concepção na qual, como tinha afirmado Proudhon, todo grupo é um indivíduo, dotado

27 de subjetividade, porque todo indivíduo é ele mesmo um grupo, uma resultante (portanto, um fluxo subjetivo), um composto de potências e de vontades”.

A partir da sua militância no GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões), Foucault (2001b, p. 1174) constatou a insuficiência das análises do poder de que se dispunha. Dizia que, não obstante o interesse de um grande número de jovens pelo engajamento na luta contra a prisão, faltavam-lhes os instrumentos analíticos “porque o PC, ou a tradição marxista francesa em geral, pouco ajudam naquilo que concerne aos marginais, naquilo que compreende seus problemas e o que apresenta suas reivindicações. A esquerda ela mesma tem a maior repugnância de fazer esse trabalho. Nós temos necessidade de análises a fim de poder dar um sentido a essa luta política que começa”.

Além disso, vivia-se o tempo de uma urgência política que se apresentou, segundo Foucault, desde o fim do nazismo e do stalinismo, como problema do funcionamento do poder no interior das sociedades capitalistas e socialistas. Não o funcionamento global do poder, tal como poderia aparecer em termos de Estado, classe ou castas hegemônicas, “mas toda essa série de poderes sempre mais tênues, microscópicos, que são exercidos sobre os indivíduos no seu comportamento cotidiano e até em seus corpos. Vivemos imersos no fio político do poder, e é esse poder que está em questão. Penso que desde o fim do nazismo e do stalinismo todo mundo se coloca esse problema. É o grande problema contemporâneo” (2001b, p. 1639). Mas diante dessa urgência colocava-se a incapacidade analítica da época: segundo Foucault, enquanto a direita questionava o poder em termos de Constituição, de soberania, enfim, em termos jurídicos, o marxismo questionava-o em termos de aparelhos de Estado. Parecia suficiente denunciar o poder de uma maneira polêmica e global:

o poder no socialismo soviético era chamado pelos seus adversários de totalitarismo; e, no capitalismo ocidental, era denunciado pelos marxistas como dominação de classe, mas a mecânica do poder não era jamais analisada. Pôde-se começar a fazer esse trabalho apenas depois de 1968, quer dizer, a partir das lutas cotidianas e conduzidas na base, com aqueles que se debatiam nas malhas mais finas das redes do poder. É lá onde o concreto do poder apareceu e ao mesmo tempo a fecundidade visível dessas análises do poder para se dar conta dessas coisas que tinham ficado até lá fora do campo da análise política. Para dizer as coisas mais simplesmente, o internamento psiquiátrico, a normalização mental dos indivíduos, as instituições penais têm certamente uma importância muito limitada quando busca-se somente a significação econômica. Ao contrário, no funcionamento geral das engrenagens do poder, elas são sem dúvida essenciais. (FOUCAULT, 2001c, p. 146)

Era uma dificuldade que provinha, segundo FOUCAULT (2001b, p. 1180), do desconhecimento quase completo acerca do poder e desse fato de que nem Marx nem Freud eram suficientes para fazer “conhecer essa coisa enigmática, ao mesmo tempo visível e invisível, presente e oculta, investida por toda parte, que se chama o poder”. Nem a teoria do Estado, nem a tradicional análise dos aparelhos do Estado, davam conta do campo de exercício do poder.

É o grande desconhecido: quem exerce o poder? Onde ele exerce? Atualmente, sabe-se suficientemente quem explora, para onde vai o lucro, nas mãos de quem ele passa e onde ele será reinvestido, mas o poder... Sabe-se bem que não são os governos que detêm o poder. Mas a noção de “classe dirigente” não é nem muito clara, nem muito elaborada. “Dominar”, “dirigir”, “governar”, “grupo no poder”, “aparelho de Estado” etc., existe aqui todo um jogo de noções que exigem análises. Assim como seria preciso saber até onde se exerce o poder, por quais relés e até quais instâncias frequentemente ínfimas, de hierarquia, de controle, de vigilância, de interdições, de obrigações. Por toda parte, onde existe poder, o poder se exerce. Ninguém, propriamente falando, é seu titular; e, no entanto, ele se exerce sempre numa certa direção, com uns de um lado e os outros do outro; não se sabe precisamente quem o tem; mas sabe-se quem não o tem (Ibid., p. 1180-1181).

Portanto, o problema dessa insuficiência aparece ligado, desde o começo dos anos 1970, aos impasses das teorias liberal e marxista do poder. Segundo Daniel DEFERT (2001, p. 55), quando da publicação de o Anti-Édipo Foucault diz a Deleuze que “‘é preciso se desembaraçar do freud-marxismo’. Deleuze responde: ‘Eu me encarrego de Freud, você se ocupa de Marx?’”. No resumo do curso “Teorias e instituições penais” no Collège de France, nos anos 1971-1972, Foucault (2001b, p. 1257) afirmava sua hipótese de trabalho segundo a qual “poder e saber não estavam ligados um ao outro somente pelo jogo dos interesses e das ideologias” e o problema

29 não era o de saber como o poder imprime ao saber conteúdos e limitações ideológicas, mas de colocar no início de toda análise a implicação necessária entre saber-poder. A partir de 1972, portanto, Foucault desloca o nível da sua análise, que passa da “arqueologia do saber” à “dinástica do saber”: após ter analisado as formações discursivas e os tipos de discurso em Arqueologia do Saber e As palavras e as coisas, seu projeto é agora estudar como esses discursos puderam formar-se historicamente e sobre quais realidades históricas eles se articularam, ou seja, em quais condições, históricas, econômicas e políticas, eles emergiram. A questão do poder ganha cada vez mais relevo. “Parece-me que fazer a história de certos discursos, portadores de saberes, não é possível sem ter em conta as relações de poder que existem na sociedade onde esse discurso funciona. (...) As palavras e as coisas, situa-se no nível puramente descritivo que deixa inteiramente de lado toda análise das relações de poder que sustentam e tornam possível a aparição de um tipo de discurso” (FOUCAULT, 2001b, p. 1277). Trata-se de uma análise inversa da tradição marxista, que consiste em explicar as coisas em termos de superestruturas, quando, ao contrário, o sistema penal ao qual se dedicou FOUCAULT (2001b, p. 1298) “é um sistema de poder que penetra profundamente na vida dos indivíduos, relacionando-os ao aparelho de produção”. Na mesma época, segundo Daniel DEFERT (2001, p. 57), Foucault “empreende a análise das relações de poder a partir da ‘mais indigna das guerras: nem Hobbes, nem Clausewitz, nem luta de classes, mas a guerra civil’”.

O curso de 1972-1973 no Collège de France intitulado “A sociedade punitiva”, que deveria chamar-se inicialmente “A sociedade disciplinar” (Ibid., p. 58), é talvez a primeira elaboração sistemática da concepção do poder de Michel Foucault. Foi após esse curso, em abril de 1973, que Foucault terminou “a primeira redação do livro sobre as prisões (Vigiar e punir)” (Id.). Nele, Foucault mencionou o hábito que se tinha, no século XIX, de classificar as sociedades conforme a maneira pela qual elas tratavam seus mortos. Existiam, então, dois tipos de sociedade: as incineradoras e as inumatórias. Em analogia a esse tipo de classificação, Foucault pergunta se “não seria

possível classificar as sociedades segundo a sorte que elas reservam, não aos mortos, mas a aqueles dos que entre os vivos ela pretende se desvencilhar, segundo a maneira pela qual as sociedades dominam esses que procuram escapar ao poder, o modo como as sociedades reagem a esses que transpõem, rompem ou contornam, de uma maneira ou de outra, as leis” (FOUCAULT, 1973, fl. 1). Assim, existiram sociedades, como as gregas, que privilegiaram o exílio, o banimento para fora das fronteiras, a interdição a certos lugares; outras sociedades, como as germânicas, organizaram compensações, impuseram reembolsos, converteram o dano em dívida, o delito em obrigação financeira; existiram ainda sociedades como as ocidentais que, até o fim da Idade Média, praticaram a exposição dos corpos e os marcaram por meio da ferida, de cicatrizes e amputações, impuseram suplícios, “em suma, apropriaram-se dos corpos e neles inscreveram as marcas do poder” (FOUCAULT, 2001b, p. 1325). Finalmente, chegaria o tempo das sociedades que, como a nossa, aprisionam. Trata-se de um tipo de sociedade que em todas as justificativas que elaborou define como seu inimigo os criminosos ou aqueles que escapam ao poder. “Em suma, os reformadores, na sua grande maioria, buscaram, a partir de Beccaria, definir a noção de crime, o papel da parte pública e a necessidade de uma punição, a partir unicamente do interesse da sociedade ou da pura necessidade de protegê-la. O criminoso lesa antes de tudo a sociedade; rompendo o pacto social, ele se constitui nela como um inimigo interior” (Ibid., p. 1329). Foucault definirá essa prática de aprisionamento como uma técnica, e a prisão como uma tecnologia de poder própria a nossa sociedade e cujo funcionamento possui três caracteres fundamentais: 1) é um tipo de poder que intervém na distribuição espacial dos indivíduos, promovendo vigilâncias, deslocamentos, separações, fixações e circulações com fins específicos – esse aspecto Foucault o retomará mais detalhadamente no curso “O poder psiquiátrico” (cf. FOUCAULT, 2003b, p. 42 et seq.); 2) é um poder que atua não através de uma grade jurídica que teria por finalidade o estabelecimento do interdito e do proibido, que não atua unicamente através de efeitos negativos, que, ao contrário, intervém menos em

31 nome da lei e mais em nome da norma, da regularidade e da ordem – Foucault dedicará o curso “Os anormais” aos processos de normalização das condutas (cf. FOUCAULT, 2002c, p. 52 et seq.); finalmente, 3) é um poder sem origem ou de difícil determinação daquilo que seria um ponto de partida ou de chegada, em virtude de seu funcionamento em rede; em outras palavras, trata-se de um poder que é menos o instrumento de uma soberania ou de um absolutismo: seu exercício é capilar, local, microfísico. Aqui, talvez, o estudo que procura demonstrar de maneira detalhada esse caráter microfísico do poder seja o livro Vigiar e Punir (cf. FOUCAULT, 2000a, p. 117 et seq.) e, sobretudo, as investigações realizadas acerca das lettres de cachet publicadas inicialmente no artigo “La vie des hommes infâmes”, de 1977 e depois reunidas no livro Le Désordre des familles, publicado somente em 1982, mas iniciado no mesmo período, juntamente com Arlette Farge. Com esse trabalho, Foucault procurou mostrar “como o poder seria leve, fácil, sem dúvida, de desmantelar, se ele não fizesse senão vigiar, espreitar, surpreender, interditar e punir; mas ele incita, suscita, produz; ele não é simplesmente orelha e olho; ele faz agir e falar” (FOUCAULT, 2003e, p. 219-220). A lettre de cachet, em uma definição muito geral, era “uma carta escrita por ordem do Rei, assinada por um secretário de Estado e selada [cachetée] com o selo [cachet] do Rei” (FOUCAULT & FARGE, 1982, p. 364). Tratava-se de cartas régias que continham uma ordem real de prisão ou de internamento, organizadas sob a forma de “serviço público” para suprimir uma espécie de vazio “judiciário”. Essas ordens eram habitualmente solicitadas contra alguém por seus próprios familiares, pai ou mãe, filho ou filha, vizinhos, algumas vezes pelo pároco da cidade ou algum outro personagem influente. De modo que é preciso tomar essas ordens não como “bel prazer real servindo para aprisionar nobres infiéis ou grandes vassalos desobedientes (...), como ato público buscando eliminar, sem outra forma de processo, o inimigo do poder” (Ibid., p. 10), mas sobretudo como o hábito pelo qual as famílias “para resolver certas tensões, lá onde a autoridade, devido a sua hierarquia, era impotente e quando o recurso à justiça não era nem possível (porque o

problema era demasiado insignificante) nem desejável (porque teria sido demasiado lento, demasiado custoso, infame, incerto)” (Ibid., p. 346). Graças a esse mecanismo particular, a prática das lettres de cachet pôde tomar tanta amplitude e seu arbítrio pôde ser considerado perfeitamente aceitável.

Charles Bonnin, coveiro do cemitério dos Santos Inocentes, dirige-se muito humildemente a V.A. para lamentar que sua mulher afundou-se desde muito tempo num distúrbio tão terrível que se tornou o escândalo público de todos seus vizinhos, causando diariamente a ruína total do suplicante, tendo vendido tudo o que existia no quarto, até mesmo minhas roupas, das crianças pequenas e as dela, para satisfazer seu alcoolismo, que atingiu de tal modo o suplicante que atualmente convalesce no leito, doente sob os cuidados de sua pobre mãe, que muito pena para subsistir, para onde foi em retiro forçado, pois sua dita mulher recusou-se abrir a porta onde se trancou já faz três dias para se embebedar, pelo que espera o suplicante que Meu Senhor queira ordenar que ela seja aprisionada no hospital pelo resto de seus dias, e ele será obrigado a pregar a Deus pela saúde e prosperidade de V.A. ([1728] apud FOUCAULT & FARGE, 1982, p. 49)

Jeanne Catry apresenta muito humildemente a V.A. que tendo esposado dito Antoine Chevalier, pedreiro, há 46 anos, ele tem dado sempre algum sinal de loucura que aumenta de ano em ano e que se atribuía somente a sua conduta má e devassa, porque ele não se comportou jamais como homem de nível, tendo sempre consumido no cabaré tudo o que ganhava sem ter nenhum cuidado com sua família, e tendo sempre vendido até mesmo os