• Nenhum resultado encontrado

FOUCAULT (1999a, p. 111) mostrou como o objetivo de Hobbes foi o de desvincular a guerra do estabelecimento das soberanias. No fundo, o Leviatã não é constituído sob o pano de fundo de uma guerra real, não nasce do sangue das batalhas e dos gemidos dos vencidos. No fundo, o Leviatã é constituído, não em razão de uma guerra efetiva, mas de sua possibilidade sempre aberta, ou de uma guerra virtual sempre presente quando a relação entre os homens não é equilibrada por uma potência acima deles. E nem mesmo nos casos de conquista política de um Estado por outro seria possível afirmar que o soberano é fundado sobre um estado de guerra, já que um povo conquistado sempre prefere viver e obedecer do que morrer, e será essa escolha que estará na base da soberania, e não um estado de violência. Foi de terem preferido viver e obedecer, dessa escolha dos vencidos, que o soberano retira sua legitimidade. Portanto, no fundo da soberania não é jamais a guerra que aparece, ao contrário, “tudo se passa como se Hobbes, longe de ser o teórico das relações entre a guerra e o poder político, tivesse desejado eliminar a guerra como realidade histórica, como se ele tivesse desejado eliminar a gênese da soberania”. Hobbes tornou a guerra e a relação de forças uma coisa completamente indiferente à constituição das soberanias. Essa constituição aparece independente e sem nenhuma relação de causalidade: haja guerra ou não, a soberania será constituída. “No fundo, o discurso de Hobbes é um certo ‘não’ à guerra: não é ela realmente que engendra os Estados, não é ela que se vê transcrita nas relações de soberania, ou que reconduz ao poder civil – e às suas desigualdades – dessimetrias anteriores de uma relação de força que teriam sido manifestadas no próprio fato da batalha” (Ibid., p. 112). É sabido que o alvo de Hobbes era a guerra civil inglesa, era o discurso dos Levers, que reclamavam a destituição de um poder fundado na conquista, era o discurso de Oliver Cromwell e de seus aliados contra o reinado de Carlos I da Inglaterra, a quem acusavam de conquistador. Daí a insistência de Hobbes em repetir que o fundamento da soberania não é jamais a conquista, mas o

79 contrato fundado pelo interesse dos indivíduos de seguirem vivendo em paz e na obediência.

Um desdobramento tardio dessa trama pode ser visto na controvérsia que dividiu os juristas alemães no começo do século XIX, ocasião em que se criou a chamada Escola Histórica de Direito. Como mostrou Chambost, essa controvérsia tem início quando Savigny, seu principal teórico, ao realizar uma análise das fontes do direito sustenta ao mesmo tempo uma forte crítica da codificação, colocando em causa o legicentrismo saído da Revolução Francesa.

À vontade do legislador (arbitrária), ele opunha a idéia de um direito saído diretamente do povo, na duração de sua história. Essa vontade de ancorar o direito na história dos povos era também uma maneira de denunciar as ambições universalistas que Napoleão tinha colocado em seus códigos. Apresentados como a obra-prima da razão, os códigos napoleônicos deviam poder reger não importa qual sociedade, justificando que fosse imposto seu uso aos países conquistados. Contra essa ambição política, a teoria de Savigny marcava o retorno dos costumes como primeiro plano das fontes do direito (CHAMBOST, p. 159-160).

A escola histórica de Savigny encontrou um eco bastante favorável na França, sobretudo porque fazia frente aos métodos da então influente Escola Exegética [École de l’Exégèse], que defendia como dogma a observação estrita das leis pelo estudo dos códigos, em detrimento de outras fontes possíveis do direito, como os costumes etc. O divulgador na França da escola histórica do direito foi Édouard Laboulaye, fundador, em 1855, da revista Revue historique de droit français et étranger, e Eugène Lerminier, seu sucessor no Collège de France para a cadeira de História das Legislações, nos anos de 1831 a 1849. Foi por intermédio desses dois professores, principalmente de Lerminier, de quem assistirá os cursos durante seu período de bolsista em Paris, que Proudhon descobrirá as idéias alemãs da escola histórica de direito.

A problemática da escola histórica consistia “na determinação da ‘influência do passado sobre o presente. Qual é a relação disso que é, a isso que será?’ (...) colocando em questão a doutrina legislativa e estatal dos fundamentos do direito

desenvolvida pela Revolução Francesa, fundada sobre as capacidades da razão” (Ibid., p. 163). O pano de fundo dessa problemática é certamente o conhecido debate entre Edmund Burke e Thomas Paine acerca da Revolução Francesa. De modo breve pode- se dizer que BURKE (1997) combateu ardorosamente a pretensão revolucionária de fazer da eleição o único título legitimo de ascensão ao trono, e que, ao contrário, defendia uma regra fixa para a sucessão dos soberanos. Portanto, era preciso respeitar a hereditariedade da sucessão, porque afinal de contas essa sucessão tinha sido dada aos ingleses pela própria Revolução Gloriosa de 1688, ou seja, ela estava fundada em um acontecimento histórico. Assim, não só lhe parecia injustificável reconhecer como legítimo apenas os tronos eletivos, como também via no fundo dessa afirmação o firme propósito dos revolucionários de invalidar todos os atos praticados pelos reis que eram anteriores aos procedimentos da eleição. A verdadeira intenção dos revolucionários, dizia Burke, era a de atingir e depor retrospectivamente todos os reis que reinaram antes da revolução, para com isso sujar o trono da Inglaterra com a injúria de uma usurpação ininterrupta. Além do que, esses revolucionários franceses, ao mesmo tempo em que negavam a legitimidade dos governos não eleitos, afirmavam também um novo direito: os direitos do Homem. Um direito que é, para Burke, desprovido de fundamento histórico e contra o qual nenhum governo pode invocar a duração do seu império ou a justiça do seu reino. Um direito que não leva em conta a justiça ou a injustiça de um governo, porque se funda em uma mera questão de título, ou, como afirmou, de metafísica política.

Burke notou que tinha sido através dessas falsas pretensões ao direito que os franceses destruíram os direitos que eram verdadeiros. Destruíram as verdadeiras instituições, aquelas que só podiam ser legitimadas pelo tempo; contra elas, os revolucionários opuseram um povo ideal dos filósofos. Assim, por terem assentado a revolução sobre indivíduos abstratos, sobre uma construção filosófica, eles a privaram de toda representação política razoável, configurando-a numa ditadura de princípios abstratos.

81 PAINE (1989) respondeu a Burke escrevendo Os Direitos do Homem, livro no qual distingue os governos que surgem da sociedade, do pacto social, daqueles que surgem do poder e da superstição. Esses últimos, ele diz, foram fundados ou pela astúcia eclesiástica ou pela conquista militar. Já o governo civil nasce do pacto feito entre os próprios indivíduos, único modo pelo qual um governo tem o direito de surgir, e o único princípio que lhe confere o direito de existir. E por quê? Porque o que funda a soberania desse governo é “o interesse comum da sociedade e os direitos comuns do homem” (PAINE, 1989, p. 58). Ora, diz Paine, todos os governos monárquicos são militares, “a guerra é seu comércio, saque e receita o seu objetivo”, seu sistema hereditário é absurdo porque “herdar um governo é herdar o povo, como se os povos fossem rebanhos ou manadas”. Ao contrário, “um governo fundamentado sobre uma teoria moral, sobre um sistema de paz universal, sobre direitos humanos hereditários indestrutíveis” (Ibid., p. 137), traduz simplesmente uma aptidão natural no homem, e “no momento em que o governo formal é abolido, a sociedade começa a agir: começa uma associação geral e o interesse comum produz segurança comum” (Ibid., p. 140). Ou seja, sendo o homem naturalmente uma criação da sociedade, tanto a segurança quanto a prosperidade dos indivíduos dependem de um dos seus princípios fundamentais: o interesse. Daí promover a “circulação incessante de interesse que, passando por seus milhões de canais, fortalece a totalidade do homem civilizado” (Ibid., p. 141). Portanto, as verdadeiras leis não são as do governo, seja ele qual for: “são leis de interesses mútuos e recíprocos. Elas são seguidas e obedecidas porque é do interesse das partes agir assim e não devido a qualquer lei formal que seu governo possa impor ou interpor”. O verdadeiro governo é aquele que governa conforme os interesses.

O debate entre Burke e Paine é bastante ilustrativo daquilo que estava em jogo no que se chamou de legicentrismo da Revolução Francesa ou, o que dá no mesmo, o seu rousseauneismo. Estava em jogo a questão da legitimidade do poder soberano: a soberania do governo é legítima ou, ao contrário, está fundada na

conquista? E a conquista, como título que sustenta a soberania dos governos, é legítima? Qual seria o legítimo fundamento do governo? A resposta para essas questões foi: não, os governos não são legítimos porque a conquista, sobre a qual estão fundados, não produz direito e a única legitimidade possível será dada ao governo que estiver fundado no interesse dos próprios governados. Como notou LAVAL (2007, p. 27), a noção de interesse foi, ao lado da noção de utilidade, um dos conceitos estratégicos através do quais foi operada uma grande mutação mental e intelectual no Ocidente, cujos efeitos foram de “classificar, ordenar e regrar as práticas humanas como se elas estivessem todas conduzidas por uma economia do sujeito ao mesmo tempo especial e homogênea”. O interesse torna-se um instrumento de análise e de cálculo político. O interesse está em toda parte: na sociedade, no governo, no sujeito. É o objeto, o meio e o fim da ação humana.

Esse homem natural, inventado pelo liberalismo, movido somente pelo interesse foi, ao mesmo tempo, a pacificação do antigo guerreiro movido pelo poder e pelo desejo de riquezas. Pacificação do bárbaro e das hordas de aventureiros de estrada, e uma “estratégia de ‘construir’ uma política sobre a natureza humana, e não mais dobrá-la a uma lei transcendente e suas conseqüências normativas” (Ibid., p. 59). O homem natural, portador de interesses mútuos, deverá assumir agora uma conduta menos predatória e mais industriosa: serão os futuros operários que povoarão os grandes centros industriais da Europa. Por isso, tanto Kant quanto Hobbes substituíram a realidade da força pela ficção do interesse. É o interesse que torna, se não possível, pelo menos indefinidamente aproximativo o projeto de paz perpétua kantiano. É o interesse que constitui o índice capaz de solucionar o áspero problema do estabelecimento de um Estado, mesmo que ele seja formado, dirá Kant, por um povo de demônios (KANT, 1984, p. 44-45).

Quanto a Hobbes, de quem a opinião geral fez o apologista do direito do mais forte, ele é no fundo um pacifista. “Hobbes não é em nada um partidário da guerra e da violência; muito ao contrário, ele quer a paz e procura o direito”

83 (PROUDHON, 1998a, p. 128). Hobbes também construiu seu edifício teórico sobre essa ficção do interesse e da utilidade: é pelo interesse de conservação que finalmente um armistício fez destituir as armas na guerra de todos contra todos, fazendo inaugurar o direito. Assim, seja em Kant, seja em Hobbes, a força é incapaz de direito, ao contrário, ela é o estado de não-direito por excelência. Mas, se a força não produz direito, é preciso que o direito seja encontrado em outro lugar, no Estado. Em outras palavras, ao negar o direito da força, todo o papel da filosofia jurídica é o de defender a força do direito como sanção necessária e base única da autoridade governamental.

Proudhon, ao contrário, reivindica o direito da força e defende a guerra como julgamento, e nesse momento Proudhon formula uma das mais importantes dimensões da anarquia: um tipo de empirismo agônico3 do político, que ele chamou “Teoria do direito da força”. Se existe um direito da força, ou melhor, se a força, ou a guerra, é a realidade primeira da qual surgiram todas as nossas relações jurídicas, então trata-se de encontrar o equilíbrio das forças para que o direito encontre sua justiça. É preciso reconhecer a positividade da força para em seguida encontrar sua delimitação. Positividade que os juristas negam de saída, em nome do absolutismo governamental.

Em Proudhon, o problema não é, portanto, o do sangue derramado, mas o do equilíbrio. E sua teoria do direito da força vai nessa direção. Para ele, o homem é um composto de potências, cada uma delas possuindo um direito que lhe é específico. “A alma se decompondo, pela análise psicológica, em suas potências, o direito se divide em tantas quantas categorias, cada uma das quais pode-se dizer que tem sua sede na potência que a engendra, como a justiça, considerada no seu conjunto, tem sua sede na consciência” (Ibid., p. 137). “Composto de potências”, cujo conjunto engendra a justiça. Existe uma potência do trabalho para a qual corresponde um direto do trabalho que dispõe que todo produto da indústria pertence ao seu produtor; existe um direito

3 Foi GURVITCH (1980, p. 136) quem sugeriu que o método de Proudhon, ao recorrer à experiência para captar a diversidade em todos seus pormenores, constitui um empirismo.

inerente à potência da inteligência que dispõe que todo homem pode pensar e cultivar- se, acreditar no que lhe parece verdadeiro e rejeitar o falso; um direito da potência do amor que dispõe sobre tudo o que ele implica entre amantes; um direito da velhice que quer que o mais longo serviço tenha sua superioridade; por fim, “existe um direito da força em virtude do qual o mais forte tem direito, em certas circunstâncias, a ser preferido ao mais fraco, remunerado a mais alto preço, porque é esse direito que o faz mais industrioso, mais inteligente, mais amante, mais ancião” (Ibid., p. 138). Certamente, nenhum desses direitos procede da concessão do príncipe ou da ficção dos legisladores. Eles emanam do que Proudhon chamou dignidade do homem. Esses direitos pertencem a um tipo de economia das potências no homem que forma a justiça. A justiça, segundo Proudhon, é uma potência imanente tão fácil de reconhecer como o amor, a simpatia e todas as afecções do espírito, mas para a qual o cálculo dos interesses e das necessidades é cego. Foi essa potência compósita, mais potente que o interesse e a necessidade, que impulsionou o homem a se associar. Decorre dela a disposição segundo a qual a realidade da justiça repousa no respeito de si mesmo, da própria dignidade, respeito que não apenas coloca a si mesmo em alerta contra tudo isso que insulta e ofende, mas também contra tudo isso que insulta e ofende os outros. A justiça “acontece quando cada membro da família, da cidade, da espécie, ao mesmo tempo que afirma sua liberdade e sua dignidade, as reconhece também nos outros e lhes rende honra, consideração, poder e alegria, do mesmo modo que pretende obtê-las deles. Esse respeito de humanidade em nossa pessoa e na de nossos semelhantes é a mais fundamental e a mais constante de nossas afecções” (Ibid., p. 136).

Direito e força não são idênticos: o primeiro é resultante de uma faculdade, o segundo é parte do homem. Por isso a força tem seu direito, não todo o direito, mas ao “se negar o direito da força (...) seria preciso afirmar, com os materialistas utilitaristas, que a justiça é uma ficção do Estado”. Todavia, a força é “como todas as demais potências, sujeito e objeto, princípio e matéria de direito, parte constituinte do homem, uma das mil faces da justiça” (Ibid., p. 139). Mas a força é também polimorfa, não

85 unitária, múltipla. A matéria é uma força, tanto quanto o espírito, o gênio, a virtude, as paixões, do mesmo modo que o poder é a força política de uma coletividade; “o povo é, a bem da verdade, reconhecido apenas pela forma, e isso porque não existe outra coisa nele mais do que força”. De tal modo que o direito da força não é somente o mais antigo, como também ele serve de fundamento a toda espécie de direito. “Os outros direitos são tão só ramificações ou transformações dele” (Ibid., p. 141).

A introdução dessa noção de força como princípio de inteligibilidade das relações é muito importante por algumas razões. Foi por meio dessa noção que Proudhon rompeu efetivamente com a tradição das teorias jurídicas do poder, com a concepção liberal que, ao negar o direito da força, rendeu culto à força do direito, e fez do contrato social uma operação jurídica razoável e, portanto, necessária. Através dessa operação jurídica, a filosofia encerrou a liberdade naquilo que FOUCAULT (1999a, p. 49) chamou de “ciclo do sujeito ao sujeito”, e que teve por função “mostrar como um sujeito – entendido como indivíduo dotado, naturalmente (ou por natureza), de direitos, de capacidades etc. – pode e deve se tornar sujeito, mas entendido, desta vez, como elemento sujeitado numa relação de poder. A soberania é a teoria que vai do sujeito para o sujeito, que estabelece a relação política do sujeito com o sujeito”.

Essas teorias acerca dos direitos naturais, acerca do contrato, acerca dos interesses e necessidades, tudo isso aparecia para Proudhon como uma espécie de metafísica do poder (ele chamou de ficção jurídica do poder), que fazia perder o real do poder, sua mecânica, sua física, sua materialidade, e que encobria seu exercício como princípio de autoridade. Proudhon não somente rompeu efetivamente com essa teoria jurídica, mas também conferiu à anarquia uma particularidade que a distinguiu do conjunto dos socialismos dos séculos XIX e XX: um princípio de inteligibilidade do político em termos de relações de forças.

Mas dir-se-ia que essa reflexão em termos de relações de forças não é de nenhum modo original, e que, ao contrário, como mostrou FOUCAULT (2004b: 304), estava presente em Leibniz, por um lado, e, por outro, a noção de força penetrou a

racionalidade política do século XVII, como prisma reflexivo fundamental que permitiu a majoração, a conservação e o crescimento da potência de um Estado, dando origem à razão de Estado pela conjugação do dispositivo interno da polícia com o dispositivo externo diplomático-militar. Porém, a diferença fundamental é que em Proudhon o problema não é o cálculo das forças, mas precisamente sua delimitação.

Se cada faculdade, potência, força, porta seu direito com ela mesma, as forças, no homem e na sociedade, devem se balancear, não se destruir. O direito de um não pode prejudicar o direito da outra, porque eles não são da mesma natureza e porque eles não saberiam encontrar-se na mesma ação. Ao contrário, eles apenas podem se desenvolver pelo apoio que se prestam reciprocamente. O que ocasiona as rivalidades e os conflitos é o fato de tantas forças heterogêneas estarem reunidas e ligadas de uma maneira indissolúvel numa única pessoa, tal como se vê no homem, pela reunião das paixões e faculdades, no governo, pela reunião dos diferentes poderes, na sociedade, pela aglomeração das classes. O contrário ocorre quando uma potência similar encontra-se repartida entre pessoas diferentes, como se vê no comércio, na indústria, na propriedade, onde uma multidão de indivíduos ocupam exatamente as mesmas funções, aspiram as mesmas vantagens, exercem os mesmos direitos e privilégios. Então, pode ocorrer que as forças agrupadas, ao invés de conservarem seu justo equilíbrio, se combatam, e que uma só subordine as outras; ou que as forças divididas se neutralizem pela concorrência e pela anarquia” (PROUDHON, 1998: 142).

De outro lado, dir-se-ia que também em Marx, também no marxismo, a noção de força, de luta e de guerra teve um papel decisivo, conhecido pela formulação crítica da luta de classes. De fato, mas ainda aqui é preciso marcar algumas diferenças que são fundamentais. Parece-me que FOUCAULT (1999a) mostra de maneira bastante satisfatória de que maneira o empreendimento do Conde de Boulainvilliers constituiu para a oposição nobiliária francesa do século XVIII aquilo que a noção de luta de classes constitui para o marxismo no século XIX. Porém, o mesmo não poderia ser dito de Proudhon.

Boulainvilliers tinha sido encarregado de explicar, interpretar e recodificar um enorme relatório, encomendado pelo rei Luís XIV, formado por um conjunto de conhecimentos acerca do Estado, do governo e do país necessários para o ocupante do trono. Foucault descreveu a estratégia fixada por Boulainvilliers nesse empreendimento: a de constituir um contra-saber oposto aos saberes eruditos da

87 burguesia em ascensão. Tratava-se de um momento em que o grande inimigo da