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CAPÍTULO 02 – INVESTIGAÇÕES ESTILÍSTICAS E SUGESTÕES

2.3 Sugestões interpretativas

2.3.3 Andamentos

A leitura dos tratados evidencia o quanto a execução inadequada dos andamentos poderia comprometer a percepção afetiva das obras. Para Carl Philip Emanuel Bach (2009, p. 133), os executantes rápidos “não oferecem nada à alma sensível do ouvinte”, devendo-se “preencher com sentimentos mais doces o ouvido, e não o olho, e mais que o ouvido, o coração.” Entretanto, a postura do autor é ainda mais crítica com as execuções demasiado lentas: “aqueles cujo espírito adormecido se traduz por uma execução monótona merecem mais críticas do que aqueles que tocam com velocidade excessiva” (BACH, 2009, p. 134).

Quantz, por sua vez, oferece uma interessante gradação dos andamentos baseada na pulsação humana. Tal sugestão, em nossa opinião, pode ser relacionada à prosódia musical da época, em sua relação íntima com o canto, com a dança, e com a própria fala. Essas manifestações são todas marcadas pela corporeidade, as quais necessitam de um ritmo e de uma respiração adequadas à sua comunicação e correspondente compreensão pelo ouvinte. Quantz (1966, p. 284) sugere, por exemplo, para o Allegro Assai, um tempo para o pulso (humano) de cada mínima; para o Allegreto, um pulso para cada semínima; para o Adagio um pulso para cada colcheia, e para o Adagio Assai um pulso para cada semicolcheia.

Quantz (1966, p. 115) também apresenta interessantes sugestões para a execução de compassos compostos e de adágios no estilo italiano, revelando sua preferência por uma execução mais fluente.

Scarlatti apresenta indicações pouco variadas para a execução dos andamentos em suas sonatas. Apesar dos poucos termos utilizados, as escolhas de andamentos devem ser ponderadas relacionando uma série de especificidades do texto do compositor. Kirkpatrick (1953, pp. 294-296) elenca, entre elas, a respiração da frase da dança, a declamação melódica das notas rápidas, o movimento da harmonia de base, as sutilezas da construção musical, a polifonia, o ritmo harmônico, a observação de hemiolas e a superposição de métricas binárias e ternárias.

Assim, as análises da sintaxe do compositor e das especificidades rítmicas de cada uma de suas sonatas mostram-se valiosas à sugestão de andamentos apropriados à comunicação dessas obras. A essa investigação, deve- se aliar o estudo do gesto técnico/interpretativo, especialmente em sonatas que demandam alto grau de exigência e resistência física. Nesse sentido, pode-se questionar de que maneira a velocidade escolhida apresenta implicações na percepção do caráter virtuosístico de muitas dessas obras.

Stucliffe apresenta um argumento interessante a favor de andamentos bastante rápidos na execução das sonatas mais virtuosísticas, as quais se assemelham a estudos pianísticos:

Não há dúvida de que uma grande proporção das Sonatas de Scarlatti é executada de maneira rápida e, dependendo da concepção, com dinâmicas fortes. (…) Muitos intérpretes parecem conscientes ao não querer tocar Scarlatti de acordo com essa reputação, e investem suas performances com algo que me parece uma gravidade falsa; tornando seus andamentos mais lentos, eles obviamente esperam fazer com o que o compositor soe mais sério. (...) Mas qual o problema com a velocidade? Uma vez mais, o problema está nos nossos ouvidos do século 19. Ironicamente, para uma era profundamente associada à chamada ascensão do virtuoso, o século 19 também nos legou uma atitude suspeita em relação à virtuosidade (...). Enquanto há muitas sonatas de Scarlatti que podem envolver possivelmente uma sequência dramática ou narrativa, livremente compreendida, para muitas outras teremos que encontrar modelos alternativos para nos satisfazer intelectualmente, evitando a necessidade de sermos apologistas. Se estamos condicionados a achar que o propósito da música é sobretudo a expressão mental e emocional, podemos considerar uma noção alternativa de música como expressão corpórea. (STUCLIFFE, 2003, p. 10, tradução do autor)33

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Texto original: “There can be no doubt that a high proportion of the Scarlatti Sonatas are fast and, if

Notamos que, devido a especificidades do seu mecanismo34, o piano é capaz de executar uma série de elementos técnicos em andamentos distintos dos observados ao cravo. Isso traz à baila um questionamento fundamental nesta pesquisa: há de se manter os andamentos proporcionados pelo uso dos instrumentos de época, ou esses tempos podem ser alterados, dadas as possibilidades do novo meio sonoro? Consideramos que a possibilidade da execução veloz e clara, resultante do emprego do duplo escape e do robusto sistema de abafadores do piano, pode contribuir para uma percepção acurada do vertiginoso elemento motriz dessas sonatas. Entre as sonatas dessa natureza, citamos, como exemplo, a Sonata K. 24, cujo trecho inicial é visto na figura 12.

Assim, se esteticamente algumas sonatas convencem como estudos de bravura pianística, não nos parece impeditiva uma abordagem virtuosística que se utiliza dos modernos recursos instrumentais.

his reputation, and consequently they invest their performances with what seems to me a false gravitas; by slowing the speed of execution down, they obviously hope to make the composer sound more serious. (…) But what´s wrong with speed? Once more the problem lies with our nineteenth- century ears. Ironically for an age thoroughly associated with the so-called rise of the virtuoso, the nineteenth-century also bequeathed us a suspicion of virtuosity, which for our purposes may be translated as a suspicion of prolonged displays of virtuosity (…) While there are many Scarlatti Sonatas which could involve a possible dramatic or narrative sequence, loosely understood, for many others we will have to find alternative models that can satisfy us intellectually and obviate the need to be apologists. If our conditioning suggests to us that the business of music is above all emotional or mental expression, we can consider as an alternative the notion of music as bodily expression.” 34

Citamos, como exemplo, o recurso do duplo escape. Esse mecanismo foi inventado por Sebastién Érard no início do século 19, permitindo que, durante a execução de notas repetidas, o martelo do piano não voltasse a sua posição inicial cada vez que os dedos acionassem as teclas, ficando em uma posição intermediária, mais próxima das cordas. Tal ferramenta imprime agilidade e clareza para a realização de repetições e ornamentos, sendo extensivamente explorada na escrita virtuosística do Romantismo.

Figura 12: Scarlatti, Sonata K. 24, trecho inicial. Edição Gilbert.