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CAPÍTULO 02 – INVESTIGAÇÕES ESTILÍSTICAS E SUGESTÕES

2.3 Sugestões interpretativas

2.3.1 Articulação

A leitura das fontes primárias nos revela as variadas possibilidades de articulação presentes na execução musical durante o século 18. É reiterada a função do intérprete como orador, sendo a música uma linguagem que necessita da pontuação apropriada para sua efetiva comunicação:

A execução musical pode ser comparada com a realização de um orador. O orador e o músico têm o mesmo objetivo, tanto na preparação quanto na realização final de suas produções, a saber, tornarem-se os mestres dos corações de seus ouvintes, e provocar suas paixões (...) Esperamos que um orador tenha uma voz audível, clara e convincente, que ele tenha uma pronúncia clara e verdadeira (...), que ele busque uma variedade agradável na voz e na linguagem. (QUANTZ, 1966, p. 119, tradução do autor)27

As fontes revelam que a flexibilidade rítmica, através do uso de pausas e respirações como separação entre elementos diversos, é um recurso crucial à realização dessa prosódia. C. P. E. Bach (2009, p.144) afirma que, devido ao afeto da peça, é necessário fazer com que as notas e pausas durem mais tempo do que o exigido pela notação. Já para Quantz, (1966, p. 122, tradução do autor) “(…) você deve separar aquelas ideias em que um pensamento musical termina e uma nova ideia começa, mesmo que não exista pausa ou cesura” (QUANTZ, 1966, p. 122, tradução do autor)28.

27

Texto original: “Musical execution may be compared with the delivery of an orator. The orator and

the musician have, at the bottom, the same aim in regard to both preparation and the final execution of their productions, namely to make themselves masters of the hearts of their listeners, to arouse or still their passions. (…) We demand that an orator have an audible, clear and true voice; that he have a distinct and perfectly true pronunciation (…), that he aim at a pleasing variety in voice and language.” 28

Texto original: “you must separate those ideas in which one musical thought ends and a new idea

As articulações entre notas não ligadas ou a variedade entre notas desligadas e pequenas ligaduras são as possibilidades de articulação mais usadas. Para andamentos vivos e alegres, são recomendadas notas desligadas, enquanto que para andamentos mais lentos e moderados, devem ser usadas as combinações de articulações de poucas notas ligadas, dependendo do caráter.

É interessante comparar as descrições sobre os golpes de arco mais adequados a cada afeto e andamento. Quantz (1966, p. 230), para os andamentos allegro e presto, sugere ataques leves e destacados, especialmente no acompanhamento; para o Allegreto, ou tempos mais moderados, pede mais seriedade, com um golpe um tanto mais pesado ainda que vivaz; para os movimentos marcados arioso, cantabile, soave, dolce e poco andante, indica um golpe de arco leve e uma execução “quieta”; o que contrasta com os movimentos maestoso, pomposo, affetuoso em que a seriedade é pedida, com um ataque mais pesado e incisivo. Para os andamentos mais lentos, como adagio assai, pesante, lento e largo assai, Quantz sugere o mais pesado golpe de arco, enquanto que para o acompanhamento de movimento lentos, ele sugere notas desligadas (meio- staccato) o que resulta em uma textura bastante transparente.

Já para Geminiani, a autora Teresa Silva observa:

No julgamento de Geminiani, observamos que ele não atribui o conceito

ottimo para nenhum padrão que inclua staccato tanto no movimento lento

quanto no rápido. Ele atribui “ótimo” apenas para combinações de dois golpes, o legato e o swelling the sound no movimento lento, o legato e o arco na corda no tempo rápido. O staccato é considerado bom, apenas nas seqüências de colcheias em tempo rápido. Observamos também que as articulações iguais - arco na corda - sobre seqüências de colcheias são consideradas pessimo e o staccato sobre seqüências de semicolcheias,

cattivo. Portanto, Geminiani demonstra preferência pelas articulações

variadas e desfavorecendo o emprego de articulações repetitivas. Neste caso, a variedade caracteriza um discurso semelhante à fala: os Legati cumprem a função vogais e os stacatti, de consoantes. (SILVA, 2009, p. 96)

C. P. E. Bach também explicita a diferença entre ataques e articulações em diferentes andamentos:

Geralmente, a vivacidade do Allegro é representada por notas em staccato, e a delicadeza dos Adagios por notas sustentadas e ligadas. Na execução

deve-se, portanto, observar essas prioridades e essa maneira de tocar o

Allegro e o Adagio, mesmo que elas não estejam indicadas na peça,

principalmente se o executante ainda não tem conhecimento suficiente do afeto da peça. (BACH, 2009, p. 135)

Em relação à execução ao teclado, C. P. E. Bach é enfático ao mencionar a importância da escolha dos dedilhados mais convenientes à articulação pretendida:

perde-se mais com um dedilhado incorreto do que se pode ganhar com toda arte possível e o bom gosto. (...) Uma vez que quase toda nova ideia tem seu próprio dedilhado, deduz-se que a maneira atual de pensar, ao divergir consideravelmente de épocas anteriores, introduz uma nova maneira de dedilhar. Nossos antepassados, que tratavam principalmente mais da harmonia que da melodia, consequentemente tocavam quase sempre todas as vozes. Veremos que tais ideias desse tipo na maioria das vezes só podem ser executadas de uma maneira, e que elas não tem nem mesmo muitas modificações, determinando para cada dedo sua posição. Consequentemente, tais ideias não são tão traiçoeiras como as passagens melódicas. (BACH, 2009, pp. 31- 32)

C. P. E. Bach (2009, p. 139) também apresenta sugestões de dedilhados para figurações como notas repetidas, segundas melódicas, e escalas de terças, em que se observa o cuidado na manutenção do posicionamento da mão, objetivando a execução das notas com suas durações adequadas. Os dedilhados para grupos de ligaduras também sugerem ênfase na primeira nota.

Como as articulações em Scarlatti muitas vezes não são anotadas, faz-se necessário considerar as sugestões das fontes citadas como parâmetro para sua realização, tendo em vista a função da articulação tanto como recurso expressivo, quanto como de pontuação da sintaxe.