• Nenhum resultado encontrado

Domenico Scarlatti por Dean Stucliffe Heteroglossia e estilo misto

CAPÍTULO 02 – INVESTIGAÇÕES ESTILÍSTICAS E SUGESTÕES

2.1 Domenico Scarlatti por Dean Stucliffe Heteroglossia e estilo misto

O musicólogo Dean Stucliffe, ao situar as sonatas de Scarlatti no panorama estilístico do século 18, inicia seu estudo afirmando que “Domenico Scarlatti não se enquadra”:

Domenico Scarlatti não se enquadra. Se perguntarmos a quem, aonde, ou a que ele se enquadra, e até mesmo se questionarmos com a ligeira desconfiança própria de qualquer forma de investigação histórica, não se poderá obter respostas confortáveis. (STUCLIFFE, 2002, p. 1, tradução do autor)18

As sonatas de Scarlatti, em sua imensa maioria em forma binária, revelam uma linguagem que é construída por fontes diversas. Para Stucliffe, Scarlatti não pertence com clareza a um estilo musical específico, causando estranhamento a discordância entre diferentes teóricos ao tentar definir suas fontes estilísticas19. Stucliffe afirma que há dificuldades em delimitar sucessores e antecessores ao estilo de Scarlatti, e de contextualizar sua produção nos estilos musicais do século 18. Ele apresenta uma revisão da literatura produzida sobre o compositor, enfatizando as diversas possibilidades de classificação de sua obra:

Nas tentativas (dos críticos) para uma classificação estilística, eles escolheram enfatizar ingredientes diferentes: o passado (Barroco, mas às vezes também a polifonia do Renascimento), o presente incerto (Galante, Rococó, pré-Clássico, pós-Barroco, o estilo do meio do século), o futuro próximo (Clássico), o futuro distante (Modernismo) ou nada dos acima

18

Texto original: “Domenico Scarlatti does not belong. Whether we ask to whom, to where, or to what

he belongs, and even if we ask the questions with the slight diffidence proper to any such form of historical enquiry, no comfortable answers can be constructed.”

19

Notem-se as possíveis descrições realizadas sobre a Sonata K. 238, já classificada, dependendo do autor, como Portuguesa, Espanhola, Italiana ou Francesa (STUCLIFFE, 2002, p. 81).

citados (originalidade). O definitivo nesse posicionamento estilístico incerto é, claro, a ausência. (STUCLIFFE ,2002, p. 51, tradução do autor)20

Assim, encontra-se nas sonatas uma variedade de construções. Observamos tanto aspectos tradicionais do Barroco, como contraponto, linhas de baixo contínuas, sequências harmônicas, (como verificamos nas sonatas K. 30, K. 37, K. 218); elementos do estilo Galante, como linhas melódicas reminiscentes da realização vocal da opera buffa sobre acompanhamentos esparsos, (como identificamos nas sonatas K. 308, K. 309); além de estruturas fraseológicas e construções rítmicas cujos padrões muito diferem do que é encontrado no contexto da época, derivadas, possivelmente, da relação do compositor com a música popular ibérica (como visto nas sonatas K. 218, K. 213)21.

Em muitas sonatas, é marcante uma pluralidade de temas coexistindo, muitas vezes bastante contrastantes entre si. Tal diversidade, certamente, diferencia a produção de Scarlatti de mestres barrocos como J.S.Bach (1685-1750) e Handel (1685-1759), os quais nasceram, inclusive, no mesmo ano em que ele. Stucliffe aponta tal característica, em sua análise da Sonata K. 193, como “uma relutância em dar uma elaboração completa a um afeto – sugerindo uma forte orientação anti- barroca (STUCLIFFE, 2002, p. 18, tradução do autor) 22.

Stucliffe, ao buscar uma maneira de descrever o estilo do compositor, utiliza o termo Heteroglossia23, referindo-se à coexistência de diversas variedades

20

Texto original: “In their (critics) attempt at stylistic classification, they have chosen to emphasize

different ingredients: the past (Baroque, but sometimes also Renaissance polyphony), the uncertain present (Gallant, Rococo, pre-Classical, Pos-baroque, Mid-century style), the near future (Classical), the far future (Modernism) or none of the above (originality). The ultimate in uncertain stylistic placement is, of course, absence.”

21

Tal incomum distribuição dos períodos musicais, com uso aparentemente improvisado e extensivo de repetições e ostinatos, tem recebido atenção em estudos recentes. Sua análise mostra-se bastante útil à compreensão das intenções retóricas do compositor, com implicações na construção da performance em termos de articulação, agógica e gradações de intensidade. Como exemplo desses estudos, citamos One man show: improvisation as theatre in Domenico Scarlatti´s Keyboard

Sonatas, de Chris Willis (2008) e Temporality in Domenico Scarlatti, de Dean Stucliffe (2008),

integrantes da coletânea de artigos Domenico Scarlatti adventures. Essay to commemorate the 250th

aniversary of his death. 22

Texto original: “reluctance to give full elaboration to an affect – suggesting a strongly anti-baroque

orientation.”

23 “[Heteroglossia é] a operação de múltiplas forças discursivas operando em sistemas culturais. Para

Batkin, a heteroglossia é claramente evidente no funcionamento da linguagem, onde a ficção de uma única linguagem nacional está sempre tentando conter a estratificação, diversidade e aleatoriedade,

de elementos estilísticos dentro de uma única linguagem. Assim, as possibilidades distintas de interpretação, análise e recepção da obra scarlatiana são resultado de tal estilo “misto”.

Nesse contexto estilístico, em que muitas linguagens coexistem simultaneamente, apresentam-se ao intérprete de Scarlatti questões artísticas e intelectuais que certamente devem ser consideradas em um estudo interpretativo. Além disso, a notação do compositor, no que tange à performance, apresenta raríssimas indicações de dinâmica e de articulação. Sua escrita de ornamentos é menos detalhada se comparada à dos mestres germânicos e franceses, assim como as notações de andamento.

O estudo em questão busca achar premissas para a interpretação de sonatas escolhidas ao piano contemporâneo. Inicialmente, entendemos que a busca de uma autenticidade puramente sônica é descartada, já que Scarlatti nunca teve contato com esse instrumento em sua forma atual. Contudo, de que maneira os resultados obtidos pela investigação da performance histórica podem contribuir para uma execução mais coerente desses textos, mesmo ao piano? Nas próximas seções, apresentaremos uma discussão relativa a possíveis referenciais teóricos e históricos para a performance das sonatas de Scarlatti, e elencaremos sugestões interpretativas obtidas da leitura desses documentos.

2.2 Referências para a interpretação das sonatas de Scarlatti

Com o intuito de definir referências para a interpretação das sonatas de Scarlatti, consideramos necessário, inicialmente, situar o compositor cronológica e geograficamente. No século 18, os estilos interpretativos apresentavam diferenças entre os diversos países. Contudo, muitos dos músicos empreendiam viagens pela

produzidas no confronto diário dos discursos profissionais, de classe, de geração e de época” (DOCKER, 1994, p.71, APUD STUCLIFFE, 2002, p. 82, tradução do autor). Texto original:

“[Heteroglossia is] the operation of of multi-voiced discursive forces at work in whole culture systems. For Batkin heteroglossia is clearly evident in the workings of language, where the fiction of a unitary national language is always trying to contain the stratification, diversity and randomness produced in the daily clash of professional, class, generational and period utterances.”