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Aspectos do desenvolvimento da execução tecladística até a época de

CAPÍTULO 03 – DOMENICO SCARLATTI AO PIANO FISICALIDADE E O GESTO

3.1 Aspectos do desenvolvimento da execução tecladística até a época de

Para uma melhor compreensão das inovações técnicas encontradas nas sonatas de Scarlatti, apresentamos, a seguir, uma breve síntese do desenvolvimento da execução tecladística entre os séculos 16 e 18. Como evidências, elencamos fatos depreendidos da leitura de alguns métodos de execução instrumental desse período, compilados por Luca Chiantore, em Historia de la técnica pianística. Tais estudos revelam indicações focadas no uso dos dedilhados e na postura das mãos, pouco considerando aspectos relacionados ao uso dos braços, cotovelos e ombros.

Para Chiantore (2001, p. 41), o primeiro autor a tratar de questões técnicas com claridade é o madrilenho Tomás de Santa Maria (1510-1570), na obra intitulada Arte de tañer fantasia (1565). As indicações de Santa Maria apontam para uma postura de “mão de gato”, com os dedos encurvados e com os nós dos dedos afundados, sem deixar os braços longe do torso (CHIANTORE, 2001, p. 41). Quanto aos dedilhados, Santa Maria apresenta combinações entre dois, três e quatro dedos, onde já se considera o relevo do teclado entre teclas brancas e pretas, além de mencionar o uso do polegar nas passagens de dedos nas escalas (CHIANTORE, 2001, p. 44). Para Chiantore (2001, p. 48), a postura sugerida por Santa Maria mostra-se eivada de tensão, sendo pouco adequada à sensibilidade barroca que viria a se desenvolver nas décadas seguintes, cuja execução demandaria uma maior flexibilidade das mãos.

Em 1593, Girolamo Mancini (1561-1610), conhecido como Girolamo Diruta, publica, em Veneza, a primeira parte de Il transilvano. Dialogo sopra il vero modo di sonar organi, et instrumenti di penna. As indicações de Diruta, apesar de similares às de Santa Maria quanto à posição arqueada dos dedos, já não contemplam os “nós dos dedos afundados”, por pedirem um pulso mais alto e uma mão “leve e mole”. Chiantore (2001, p. 50) observa que enquanto Santa Maria pedia que a mão se mantivesse “rígida para ferir maior golpe”, Diruta sugere uma mão “leve e suave”, guiada e sustentada pelo braço. Em relação aos dedilhados, Chiantore (2001, p. 53) aponta que Diruta foi o primeiro a relacionar o uso de determinados grupos de dedos às notas que devem receber maior apoio, de forma a contrastar o ataque com as notas que devem ser executadas mais levemente. Isso já implica uma articulação expressiva do discurso musical, derivada e influenciada pelo canto, apontando a uma estética puramente barroca.

Apesar do florescimento de uma imensa variedade de tratados de execução musical no século 18, poucos foram os teóricos que apresentaram novas sugestões aos escritos de Diruta. A maioria dos autores, tais como Girolamo Frescobaldi (1583-1643), Jan Sweelinck (1562-1621), John Bull (1562-1628) e Johann Froberger (1616-1667) dedicaram-se mais a questões estéticas e teóricas do que a elementos de técnica instrumental (CHIANTORE, 2001, p. 57).

Na França, as leituras da obra de Jean Denis (1600-1672), Traité de l´accord de espinette (1650) e da obra de Michel de Saint Lambert, Le principle du clavecin (1702), sugerem uma postura elegante, em que o pulso e as mãos devem ser mantidos numa mesma altura, o que parece similar à disposição sugerida por François Couperin (1668-1733) em L´Art de toucher Le clavecin, de 1716 (CHIANTORE, 2001, pp. 57-60). Mais inovadoras são as sugestões de Jean Phillipe Rameau (1683-1764), no prólogo dedicado à “mecânica dos dedos”, presente na edição de 1724 das Pieces de Clavecin. O autor aprofunda-se na questão da flexibilidade dos pulsos e de suas implicações na naturalidade da articulação digital, que, assim, pode partir das falanges e não se limitar a um ataque da ponta dos dedos. Ele também sugere uma posição arredondada dos dedos intermediários, derivada da queda natural do polegar e do quinto dedo (CHIANTORE, 2001, pp. 64 - 65).

Para Chiantore, o “detalhismo e a elegância” do estilo francês repercutiram no desenvolvimento da música instrumental na Alemanha, tendo em vista a influência das obras de Rameau e de Couperin no tratado de Friederich Wilhelm Marpurg (1718-1795), Die Kunst das Klavier zu spielen, publicado em 1750, sendo esse o primeiro trabalho de importância que um teórico alemão dedicou ao teclado (CHIANTORE, 2001, p. 70).

Em relação à produção tecladística alemã, a mais interessante contribuição encontrada no estudo de Chiantore é a sua reconstituição de alguns aspectos da técnica de execução de J. S. Bach. Tal reconstituição39 se baseia em poucos dedilhados deixados pelo compositor no Clavier-büchlein, e em alguns dos manuscritos dos seus alunos.

Notamos profundas diferenças ao comparar as sugestões técnicas depreendidas dos tratados citados com o estilo instrumental scarlatiano. Entre as razões para tal, é possível elencar as mencionadas especificidades estilísticas da obra do compositor, que, diferentemente dos padrões barrocos, já apresenta, em um único movimento, uma variedade de texturas, contrastes temáticos e aspectos melódicos já reminiscentes do estilo Galante e do Classicismo. Outra marcante particularidade do estilo instrumental de Scarlatti é a presença da fisicalidade na execução desse repertório, como explanaremos na próxima seção. Tal fisicalidade se revela pelo uso extensivo de amplos gestos espaciais como saltos e cruzamentos de mãos, aliados à intensa exploração de dificuldades técnicas, como oitavas, acordes e notas duplas. Para Chiantore, não é possível reconstruir completamente elementos da execução tecladística de Scarlatti e de seus contemporâneos com base em documentos de época:

o que mais surpreende, nos textos teóricos italianos e ibéricos do século 18, é a escassez de referências ao acusado experimentalismo que tantos artistas estavam praticando ao sul da Europa. Inclusive quanto ao dedilhado, os exemplos que possuímos são tão isolados entre si que não nos permitem desenhar um quadro coerente e completo dos dedilhados

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Entre as características elencadas, por exemplo, destacam-se: o uso do polegar de maneira bastante distinta daquela realizada por pianistas atuais, em combinações de dedilhado 1-1-1, 1-5-1-5, ou 1-4-14; o uso do quinto dedo em notas pretas e muitas vezes em posições incômodas, e dedilhados que objetivam o mínimo deslocamento possível da mão, no caso de arpejos e saltos (CHIANTORE, 2001, pp. 73-76).

compreendidos entre Cabanilles40 e Soler. (CHIANTORE, 2001, p. 69, tradução do autor)41

Dessa maneira, apresentamos a seguir algumas considerações contemporâneas sobre o conceito de fisicalidade, relacionando-o a alguns procedimentos tecladísticos encontrados nas sonatas de Scarlatti. Objetivamos compreender de que forma tais gestos físicos e disposições espaciais atuam como marcadores expressivos e formais no discurso musical desse compositor.

3.2 Aspectos instrumentais presentes na obra de Scarlatti em face do conceito