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As diferentes compreensões sobre a obra musical e a mudança paradigmática

CAPÍTULO 04 – IMPLICAÇÕES SOBRE AUTENTICIDADE

4.1 As diferentes compreensões sobre a obra musical e a mudança paradigmática

Para compreender a disseminação dos ideais de autenticidade no fenômeno da interpretação musical é necessário, primeiramente, identificar quando, e de que maneira, as performances passaram a ser norteadas pela “fidelidade absoluta” às intenções do compositor. Dessa forma, observa-se que até o início do século 19 tais ideais não guiavam os intérpretes da maneira como atuam em nossa contemporaneidade.

Para exemplificar melhor esse panorama, notamos que, até o final do século 18, a maior parte das obras musicais era composta sob encomenda, para fins específicos desejados por seus patrocinadores, que podiam ser religiosos, cênicos ou de entretenimento. Além disso, essas obras não tinham o objetivo de serem entidades artísticas únicas, pelo contrário, muito do material era reaproveitado pelos autores em processos de paródia57. Ao mesmo tempo, eram raras as ocasiões em

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Segundo Swain (2013, p.228) a paródia é uma técnica composicional em que um compositor utiliza uma melodia já existente a fim de criar uma nova obra, utilizando, neste processo, padrões imitativos, melódicos e harmônicos. Observamos que as paródias podiam ocorrer tanto entre obras de um mesmo compositor, como, por exemplo, a paródia realizada por Mozart entre o Agnus Dei, da Missa

que as obras eram executadas em sua totalidade: movimentos de música instrumental intercalavam-se a números vocais e de dança, sendo apresentados, muitas vezes, em ambientes ruidosos. Mozart, ao comentar a estreia da Sinfonia Paris, na cidade de mesmo nome, afirma:

Bem no meio do primeiro Allegro veio uma passagem que eu sabia que agradaria, e a plateia toda se animou – houve um grande aplauso: - e, como eu sabia, quando escrevi a passagem, o efeito que ela teria, eu a trouxe novamente no fim do movimento. (...) O Andante foi bem recebido também, mas o Allegro final agradou especialmente – porque eu tinha ouvido que, aqui, os Allegros finais começam como os primeiro Allegros, com todos os instrumentos tocando e, geralmente, em uníssono; portanto, eu comecei o movimento com apenas dois violinos tocando suavemente por oito compassos – então, subitamente, vem um forte – mas os ouvintes tinham, por causa do começo quieto, pedido silêncio entre si, como eu esperava que eles fariam, e então vem o forte – bem, aí ouvir, e aplaudir, foi a mesma coisa. Eu estava tão encantado, fui logo após ao Palais Royal – comprei um sorvete para mim, rezei um terço como tinha prometido, e fui para a casa. (MOZART, 1778, APUD ROSS, 2005, tradução do autor)58

Entretanto, a partir de Beethoven, observa-se uma mudança de paradigma, uma vez que, já em vida, este compositor advoga para si uma independência dos aspectos mundanos e aristocráticos que o cercam. Dessa maneira, sua arte passa a ser ideologicamente vista como um produto único e transcendental, destinada a ser apreciada apenas esteticamente. Para Alvarenga:

É profundamente difundida a imagem beethoveniana do artista independente, revolucionário, genial e intempestivo. Essa imagem surge como uma referência sagrada aos objetivos e comportamentos do músico

da Coroação K.317, e a ária Dove Sono, da ópera As Bodas de Fígaro; quanto entre obras de autores diferentes, como o arranjo feito por J. S. Bach do Stabat Mater de Pergolesi, no Salmo BWV 1083.

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Texto original: “Right in the middle of the first Allegro came a passage that I knew would please, and

the entire audience was sent into raptures—there was a big applaudißement;—and as I knew, when I wrote the passage, what good effect it would make, I brought it once more at the end of the movement (...) The Andante was well received as well, but the final Allegro pleased especially—because I had heard that here the final Allegros begin like first Allegros, namely with all instruments playing and mostly unisono; therefore, I began the movement with just 2 violins playing softly for 8 bars—then suddenly comes a forte—but the audience had, because of the quiet beginning, shushed each other, as I expected they would, and then came the forte—well, hearing it and clapping was one and the same. I was so delighted, I went right after the Sinfonie to the Palais Royal—bought myself an ice cream, prayed a rosary as I had pledged—and went home.”

no século 19. Ser compositor é buscar agir artisticamente como Beethoven, ser um músico consagrado é autoproclamar-se seu herdeiro. Compositores de correntes tão opostas quanto Brahms ou Wagner duelarão pela legitimidade de sua obra tendo como argumento Beethoven e, mais importante: jogados à livre concorrência estabelecida num campo onde a luta pela legitimidade e reconhecimento é disputada pelos membros internos do campo com suas instituições consagradoras (salas de ópera e concerto, críticos musicais, estetas…), irão duelar por sua concepção do que é Beethoven e, por conta disto, o que é arte. (ALVARENGA, 2015b)

Essa diferente compreensão ideológica em face das obras musicais trouxe implicações nos conceitos reguladores das atividades que permeiam o meio interpretativo, tais como a relação dos intérpretes com o texto musical, a organização das salas de concertos, e o próprio ritual da execução musical em público, aspectos extensivamente debatidos por Lydia Goehr em The imaginary museum of musical works. Uma das possibilidades para a compreensão dessa mudança paradigmática se dá pelo conhecimento do conceito de Werktreue59, a ideia de que a obra musical possui um significado artístico que só pode ser revelado quando a performance atende os ideais de seu criador. De acordo com a autora, no contexto da Werktreue, ainda existe espaço para diversas interpretações de uma mesma obra, contudo, tais versões não estão livres de cumprir sua obrigação precípua, a de revelar o conteúdo da obra como aquele concebido pelo compositor. (GOEHR, 1992, pp. 232-234).

Ao mesmo tempo, a ideia da sala de concerto como um espaço destinado à silenciosa fruição estética das obras artísticas passa a se consolidar. Ainda que as múltiplas implicações sociológicas, econômicas e culturais desse fenômeno transcendam os limites desta tese, é importante compreender que uma de suas causas decorre da reação artística aos processos de mercantilização da arte, que ocorrem concomitantemente ao processo de Revolução Industrial, no século 19. Para Alvarenga, como reação à tal mercantilização:

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De acordo com Goehr (1989, p. 55), o termo Werktreue foi inicialmente utilizado pelo escritor E.T.A. Hoffmann (1776-1822) e significa “ser fiel à obra”, ou seja, ser fiel ao significado puro da obra como concebido pelo autor, significado esse que deriva das obras em si, sendo isento de elementos extramusicais.

o artista passa a advogar pela singularidade da arte, abrindo uma verdadeira clivagem entre o campo de produção artística (a arte pela arte, a arte produzida em concorrência aos outros artistas) e a arte para o mercado. (...) Na música, a denegação da economia e o processo de autonomia como um todo aceleram a separação ocorrida no século 19 entre a música erudita e a música ligeira. O século 19 vê uma verdadeira expansão do mercado musical como um todo e, como reação, todo um discurso idealista acerca da música toma forma. Amparado num processo de hierarquização dos gostos (por sua vez amparado em instituições de consagração como a crítica, as revistas musicais, as salas de concerto), o século 19 produz a separação entre a música pura e a música que tem como função servir a outros propósitos não musicais. (ALVARENGA, 2015a)

Essa reação à mercantilização da arte pode ser considerada como típica do Romantismo:

Uma reação a uma sociedade em profunda mudança, reificada em sua essência, é a postura mais clara dos romantismos em geral. Não é de se estranhar, portanto, que o objeto artístico vai assumir sua conceituação moderna, ou seja, aquilo que não tem função, que é desinteressado com a sociedade, que é pura e simplesmente “arte”. (ALVARENGA, 2015c)

Assim, esta mudança na valoração estética das obras musicais alterou profundamente as partituras, que passaram a apresentar as indicações do compositor de maneira muito mais detalhada. Se, antes do início do século 19, o trato do intérprete na realização da notação musical já imbuía a responsabilidade da correta comunicação estilístico-expressiva60 das obras interpretadas, com o advento do conceito de werktreue a ideia de fidelidade ao texto se expande: o conhecimento estilístico não é mais suficiente para uma coerente execução, já que agora é necessário obedecer todos os acentos, andamentos, intensidades, ligaduras, ornamentos e elementos de orquestração, expressamente providos pelo compositor. As possibilidades criativas do intérprete passam a ser restringidas por essa notação detalhista, em uma dramática mudança no conceito regulador da prática da execução musical, que já não admite tanto espaço para improvisação ou mudanças no arranjo instrumental, conceitos que eram corriqueiros nos períodos anteriores.

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Mesmo que as obras compostas antes da mudança paradigmática beethoviana não possuíssem o status de entidades artísticas autônomas que adquiririam a partir do Romantismo, era notória a preocupação de diversos teóricos com a necessidade de uma correta enunciação desse material, mesmo quando muitos dos recursos interpretativos, tais como a articulação e a dinâmica, fossem pouco anotados nas partituras, como explicitado no segundo capítulo desta tese.

Entretanto, esse padrão interpretativo que objetiva uma execução fiel à concepção do autor, tanto em termos instrumentais quanto expressivos, passou a regular também a performance de repertórios compostos anteriormente à mudança paradigmática do século 19, e pode ser relacionado à emergência dos ideais de autenticidade, ideais estes que provocam relevantes questionamentos à natureza do nosso trabalho pianístico com as sonatas de Scarlatti, como será explicitado nas seções seguintes.