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CAPÍTULO 02 – INVESTIGAÇÕES ESTILÍSTICAS E SUGESTÕES

2.3 Sugestões interpretativas

2.3.4 Ornamentação

A coerente realização da ornamentação, nos períodos Barroco e Clássico, é de grande importância na compreensão e na comunicação dos eventos musicais. Mais do que simples adornos, os ornamentos possuíam a função de enfatizar ou realçar o afeto das passagens, criando dissonâncias e suspensões com implicações na articulação e na agógica. Além disso, adquirem importância estrutural ao se tornarem peças pivotais na construção motívica.

C. P. E. Bach, Quantz e Geminiani dedicaram longas páginas de seus tratados ao estudo da ornamentação. O que vem à tona, primeiramente, é a distinção na construção do código dos ornamentos, que inclui os símbolos, nomenclatura e resoluções. Tais diferenças variam de acordo com o país, o autor e a época. Badura-Skoda, em seu estudo sobre a interpretação da obra de Bach ao teclado, afirma que:

Ao estudarmos o desenvolvimento dos símbolos de ornamentação nos dois séculos em que Bach viveu, torna-se aparente que os mesmos ornamentos às vezes tinham nomes diferentes em diferentes províncias ou países, e que, vice-versa, o mesmo nome poderia designar ornamentos executados em uma variedade de maneiras. Símbolos internacionalmente reconhecidos para os ornamentos mais comuns tornaram-se de uso comum apenas no fim do século 18. (BADURA-SKODA, 1995, pp. 254-255, tradução do autor)35

Apesar de tais diferenças, todos os tratadistas enfatizam o uso da ornamentação como um importante recurso de declamação expressiva ao intérprete. Para C. P. E. Bach, os ornamentos:

fazem a conexão entre as notas; dão-lhes vida; dão-lhes, quando necessário, um acento e um peso especiais; tornam as notas agradáveis, despertando, assim, uma atenção especial, ajudam na expressão; seja em peça triste, alegre ou de qualquer outro tipo. (BACH, 2009, p. 69)

Quantz, por sua vez, realça o aspecto melódico dos ornamentos e sua inflexão como dissonâncias:

Sem apojaturas, uma melodia frequentemente soaria de forma magra ou plana. Se ela deve ter um ar galante, ela deve conter mais consonâncias que dissonâncias; mas se muitas das consonâncias ocorrem em sucessão, e várias notas rápidas são seguidas por uma longa que também é uma

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Texto original: “If we study the development of the ornamentation symbols in the two centuries in

which Bach lived, it becomes apparent that the same ornaments sometimes had different names in different provinces or countries, and that, vice versa, the same name could designate ornaments executed in a variety of different ways. (…) Internationally recognized symbols for the most common ornaments came into general use only towards the end of the eighteenth century.”

consonância, o ouvido pode facilmente ficar fatigado delas. Por isso, dissonâncias devem ser usadas de vez em quando para despertar o ouvido. Nessa conexão, apojaturas podem ser de grande utilidade, desde que elas se transformem em dissonâncias, como quartas e sétimas, se elas estão antes de terças e sextas em relação ao baixo, e se elas são apropriadamente resolvidas pelas notas seguintes. (QUANTZ, 1966, p. 91, tradução do autor)36

Na execução da velocidade dos ornamentos, Quantz (1966, pp. 101-103) recomenda trinados mais lentos para peças melancólicas, e mais rápidos para peças mais alegres, além de observar o registro do instrumento, sugerindo que quanto mais grave, mais lenta deve ser a execução ornamental.

Geminiani, por sua vez, apresenta um quadro bastante interessante de execução de ornamentos, associando-os ao afeto pretendido. Segundo a autora Teresa Silva:

vemos como Geminiani descreve a maneira prática de se acrescentar

pathos à execução. O mordente é o ornamento responsável pelos mais

variados afetos, dependendo da execução: alegria, fúria, raiva, resolução, horror, medo, lamentação, afeição e prazer. Já os ornatus que produzem alegria, ternura, amor e prazer são conseguidos principalmente pelo efeito dos trillos e appogiaturas. O close shake é relacionado à majestade e dignidade, mas também pode representar aflição e medo, dependendo da execução. A ênfase dada ao conteúdo emocional do discurso musical em seu texto explicativo dedicado ao close shake caracteriza o estilo patético de Geminiani. (SILVA, 2009, p. 109)

No que tange a Scarlatti, torna-se especialmente difícil construir uma execução historicamente orientada de seus ornamentos. Segundo Kirkpatrick (1953, p. 365) o compositor nunca usou um vocabulário codificado completo de ornamentação, como existiu na França, com Couperin e Rameau. As indicações de Scarlatti resumem-se a trinados e apojaturas, não existindo muitas fontes de referência para a execução de tais ornamentos para a música italiana para teclado.

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Texto original: “Without appoggiaturas a melody would often sound very meagre and plain. If it is to have a gallant air, it must contain more consonances than dissonances; but if many of the former occur in succession, and several rapid notes are followed by a long one that is also a consonance, the ear may easily be wearied by them. Hence dissonances must be used from time to time to rouse the ear. And in this connection appoggiaturas can be of considerable assistance, since they are transformed into dissonances, such as fourths and sevenths, if they stand before thirds or sixths reckoned from the bass, and are then properly resolved by the following notes.”

Para Kirkpatrick, Quantz pode ser usado como referência, pois se associa à música inspirada pela ópera e música instrumental italiana.

Na seção dedicada à performance, Kirkpatrick (1953, p. 367) faz algumas recomendações para a execução de ornamentos em Scarlatti, assegurando utilizar, ao menos, uma maneira de emprego em voga no período do compositor.

Para apojaturas, o autor sugere que sejam iniciadas de maneira tética. Uma evidência pode ser obtida pela observação da figura a seguir, em que, no compasso 85, o compositor escreve os valores reais das notas, em uma passagem que corresponde a um trecho anteriormente escrito de maneira ornamentada, no compasso 77. Assim, em muitos casos, a observação de passagens semelhantes na reexposição das sentenças musicais pode ser útil para verificar a intenção do compositor em sua escrita de ornamentos (KIRKPATRICK, 1953, p. 368).

Figura 13 - Exemplo de resolução de apojatura em Scarlatti, através da observação de passagens correspondentes na Sonata K. 470 (KIRKPATRICK,1995, p.368).

Ao mesmo tempo, Kirkpatrick (1953, p. 368) aponta que Scarlatti é bastante inconsistente e descuidado na notação do valor rítmico das apojaturas, como visto na figura 14, em que elas são ora escritas em colcheias, ora em semínimas, ou em semicolcheias. Isso revela que os valores rítmicos anotados nas apojaturas não podem ser tomados como norma na identificação da velocidade dos ornamentos.

Para trinados, Kirkpatrick (1953, pp. 378-379) comenta que o compositor

usa dois tipos de sinais, utilizados indiscriminadamente: tr e . Na execução desse ornamento, o autor sugere que ele deve ser iniciado com a nota superior, citando C. P. E. Bach, Agricola e Mancini. Contudo, o autor admite que não há evidências conclusivas a esse respeito.

Figura 14 - Exemplos da inconsistência na notação de apojaturas por Scarlatti, utilizando diferentes valores rítmicos para as pequenas notas, mesmo em passagens similares (Sonata K. 216) (KIRKPATRICK, 1953, p. 368).

Quanto aos valores rítmicos do trinado, Kirkpatrick (1953, p. 390) defende que a velocidade e duração do ornamento são subjetivas, dependendo do gosto do intérprete. Para ele, a indicação tremolo, presente em algumas sonatas, também se refere ao trinado (KIRKPATRICK,1953, p. 393).

Além dos trinados e apojaturas, Kirkpatrick (1953, pp. 393-396) elenca alguns ornamentos não indicados por sinais, tendo todas as “pequenas” notas escritas por Scarlatti. Para esses ornamentos, o autor faz associações à terminologia Franco-Alemã. São eles o mordente, o grupeto, o slide e acciaccatura37.

É evidente que as sugestões de Kirkpatrick, embasadas em fontes de época e em expressiva análise motívica e estrutural, são rico material de estudo para a interpretação das sonatas. No entanto, não podem ser tomadas como definitivas, devido à inconsistência da escrita do compositor e às condições particulares da música italiana. Badura-Skoda (1995, p. 359) apresenta um ponto de vista divergente, especialmente em relação à execução da nota inicial do trinado. Para ele, os trinados na Itália ainda se iniciavam pela nota principal, e não pela superior, utilizando como evidência o Tratado de Tosi, publicado em 1752.

Sobre a diferença de execução do trinado na Itália em relação a outros países, Badura-Skoda afirma que:

os múltiplos desenvolvimentos em relação à ornamentação ocorridos na Europa levaram a uma situação em que, do meio do século 18 em diante, (embora não antes disso), todos os teóricos alemães recomendavam a

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Para uma maior compreensão dos efeitos da acciaccatura, recomendamos a consulta ao estudo interpretativo para a Sonata K. 119, desenvolvido no quinto capítulo desta tese.

execução do trinado tendo como nota inicial a auxiliar superior ou inferior. Porém, na prática, não era sempre possível aderir estritamente a uma regra que via o trinado primariamente como uma cadeia de apojaturas. Os italianos perceberam isso mais claramente do que todos, tanto em teoria como na prática, e eles não tinham regras imutáveis para trinados. Mordentes e praltriller continuaram a se iniciar pela nota principal. (BADURA-SKODA, 1995, p.305, tradução do autor)38

As múltiplas evidências comentadas nos tratados revelam a necessidade da cuidadosa realização da ornamentação nas sonatas de Scarlatti. O fato de sua escrita não ser tão detalhada e sistematizada em comparação aos mestres alemães e franceses não suprime a função expressiva e formal de seus ornamentos. Novamente, a análise da função harmônica e motívica, e a observação do desenho de passagens semelhantes, são importantes elementos a serem considerados pelo intérprete.

Um último aspecto a ser investigado no campo da ornamentação dessas sonatas diz respeito à ornamentação livre, com a adição, pelo intérprete, de ornamentos não escritos pelo compositor. A prática era recorrente no século 18, e comentada pelos teóricos, os quais recomendavam parcimônia e a necessidade da observância do afeto da peça.

Para C. P. E. Bach (2009, p. 71), a execução dos ornamentos para os quais não há indicações depende do “bom gosto” na música. Quantz (1966, p. 134), por sua vez, é especialmente enfático ao discutir tal prática, citando a necessidade da observação da harmonia e do baixo-contínuo, tendo-se o cuidado de não obscurecer as notas principais. Ele apresenta também uma preocupação formal, recomendando, por exemplo, que a prática da livre ornamentação seja feita apenas após a repetição ou barra dupla.

Observamos, na escuta de vários intérpretes de Scarlatti, que existe cautela no uso de livre ornamentação em suas sonatas. Acreditamos que a escrita dos movimentos vivos já é bastante detalhada, com uma textura muito desenvolvida

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Texto original: “the manifold European developments in ornamentation led to a state of affairs where, from the middle of the eighteenth century onwards (though no earlier than that), all German theorists asked for the trill to begin on the upper or lower auxiliary. However, in practice it was not always possible to adhere strictly to a rule that saw the trill primarily as a chain of appoggiaturas. The Italians perceived this most clearly of all, in both theory and practice, and they did not have immutable rules for trills. Mordents and praltriller continued to begin on the main note.”

tanto nos registros graves quanto agudos. Mesmo assim, apojaturas,mordentes e trinados podem ser acrescentados como recursos de ênfase em suspensões a fim de marcar pontos estruturais e de contraste.

CAPÍTULO 03 - DOMENICO SCARLATTI AO PIANO: FISICALIDADE