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Aspectos instrumentais presentes na obra de Scarlatti em face do conceito de

CAPÍTULO 03 – DOMENICO SCARLATTI AO PIANO FISICALIDADE E O GESTO

3.2 Aspectos instrumentais presentes na obra de Scarlatti em face do conceito de

Inicialmente, faz-se necessário explanar o sentido em que o termo fisicalidade está empregado nesta pesquisa. Para Mário Del Nunzio (2011, p. 16), em seu trabalho Fisicalidade: potências e limites da relação entre corpo e

instrumento em práticas musicais atuais, fisicalidade é “o que se relaciona aos

aspectos físicos do fazer musical: a relação do intérprete com seu instrumento, a corporalidade do intérprete ao executar um instrumento, bem como as propriedades materiais desse instrumento”. Sua pesquisa relata alguns exemplos em que tais aspectos físicos do fazer musical são as forças motrizes na estrutura composicional das obras, resultando em notações que sugerem amplos gestos coreográficos. Para Frank Cox, algumas das implicações do conceito de fisicalidade dizem respeito a exigir:

uma consideração teórica séria do domínio físico – as qualidades físicas dos instrumentos, o drama dos intérpretes tentando sair-se bem em dificuldades insuperáveis, o desenvolvimento de um pensamento corpóreo necessário para dominar parcialmente tais desafios, a perecibilidade de cada execução. (COX, 2002, APUD NUNZIO, 2011, p. 20)

Conclui-se, a partir dessas colocações, que as obras musicais em que a fisicalidade se faz presente demandam, além de um aspecto idiomático42, uma

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Observamos que entre a produção dos compositores acima citados, Juan Cabanilles (1644-1712), e Padre Antonio Soler (1729-1783), se encontra a obra de Domenico Scarlatti.

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Texto original: “ló que más sorprende, en los textos teóricos italianos e ibéricos del siglo XVIII, es la

escasez de referencias al acusado experimentalismo que tantos artistas estaban praticando entonces en el sur de Europa. Incluso limitando al asunto de la digitación, los ejemplos que poseemos son tan aislados entre si que no nos permiten diseñar um quadro coerente y completo de las digitaciones compreendidas entre Cabanilles y Soler.”

energia corpórea considerável por parte do intérprete. Tais obras apresentam, geralmente, uma variedade de gestos técnicos que resultam em uma forma de “coreografia na composição musical, ou seja, a ideia de que o resultado sonoro pode ser subordinado na composição à concepção de ações físicas sobre um determinado instrumento musical” (NUNZIO, 2001, p. 108).

Em relação às sonatas de Scarlatti, observamos indicações expressas do compositor para a realização de amplos saltos e cruzamentos de mãos, mesmo em situações em que as passagens possam ser tocadas sem o uso desse artifício43. Além disso, como já mencionado na discussão sobre as edições dos Essercizi, no capítulo 01, muito do material musical dessas sonatas deriva da exploração de procedimentos tecladísticos como notas repetidas, escalas, arpejos, saltos, escalas de sextas e escalas de oitavas. Tais procedimentos requerem um uso amplo e livre dos membros superiores, o que nos remete a aspectos da técnica pianística que viria a ser desenvolvida no século 19. Nesse sentido, elencaremos alguns exemplos da escrita tecladística de Scarlatti, relacionando-os a aspectos da técnica pianística moderna.

Inicialmente, observamos a presença de escalas de sextas e oitavas, demandando resistência e domínio do movimento de pulsos, braços e cotovelos, como presentes nas sonatas K.96, K. 524 e K. 366:

Figura 15: Scarlatti, Sonata K. 366. Edição Gilbert.

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De acordo com Bernardo Barros (2010, p.26), o termo idiomatismo em música pode se referir ao idioma de um instrumento ou uma técnica instrumental. Além disso, idiomatismo também pode ser compreendido como um sinônimo para estilo em música.

Figura 16: Scarlatti, Sonata K. 96, Edição Gilbert.

Figura 17: Scarlatti, Sonata K. 524. Edição Gilbert.

Observam-se, inclusive, longos trechos em oitavas quebradas, demandando extrema flexibilidade do polegar e dos pulsos, como identificados na Sonata K. 469:

Figura 18: Scarlatti, Sonata K. 469. Edição Gilbert.

Em algumas sonatas, verificamos amplos deslocamentos e arpejos em ambas as mãos, exigindo flexibilidade de pulsos, polegar e cotovelos. Além disso, rápidos reflexos especiais são exigidos, com abruptos saltos entre grupos de semicolcheias e colcheias, como observado nos exemplos a seguir:

Figura 20: Scarlatti, Sonata K. 223. Edição Gilbert.

Os saltos podem aparecer em longos trechos contínuos, exigindo, além da precisão espacial, resistência muscular e clareza de ataques para a condução dos baixos44, como evidenciado nos seguintes exemplos:

Figura 21: Scarlatti, Sonata K. 299. Edição Gilbert.

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Nos pianos modernos, a realização dos saltos é dificultada em comparação ao cravo, uma vez que as distâncias espaciais se mostram maiores na configuração do teclado pianístico.

Figura 22: Scarlatti, Sonata K. 487. Edição Gilbert.

Outra característica bastante comum é o uso extensivo da escrita em notas repetidas, demandando resistência muscular e clareza digital. Na Sonata K. 96, Scarlatti requer expressamente que a passagem seja executada com a mudança de dedos:

Figura 23: Scarlatti, Sonata K. 96. Edição Gilbert.

Finalmente, o uso extensivo de acciaccaturas resulta na presença de acordes cheios, em ambas as mãos, soando quase como clusters. Sua realização demanda extrema resistência e flexibilidade das mãos.

Figura 24: Scarlatti, Sonata K. 175. Edição Gilbert.

Para Stucliffe, a presença extensiva de gestos físicos e técnicos nas sonatas revela que Scarlatti “pensou através de seus dedos, e sua inspiração veio

da simbiose das mãos e o teclado45” (STUCLIFFE, 2003, p. 276, tradução do autor), o que revela o idiomatismo tecladístico e o aspecto performático dessas obras. Entretanto, tais características também colaboraram para que Scarlatti fosse considerado, por alguns pensadores, como um compositor dedicado apenas a uma escrita exibicionista:

o problema é mais sério quando a virtuosidade não é compreendida como “intrínseca” a um argumento musical, mas simplesmente encarada como meros exercícios, escalas, arpejos, elaboradas divisões de notas, ou registros extremos. A menos que esses procedimentos tenham sido “aprofundados” ou “elevados” de alguma maneira, tais manifestações não podem ser apreciadas plenamente, tantas são as discussões que estão implícitas. (STUCLIFFE, 2003, p. 260, tradução do autor)46

A observação de críticas a essas sonatas, como a realizada por Oskar Bie, em 1898, revela que o conteúdo estético de tais obras foi pejorativamente minimizado, como se não fosse além da pura experiência física e dos efeitos acrobáticos47.

Em Scarlatti, procuramos em vão por qualquer motivo interior, e também não sentimos a necessidade de nenhuma entrega emocional da parte do intérprete; suas peças curtas objetivam apenas efeitos sonoros, e são escritas meramente pelo amor de brilhantes passagens tecladísticas, ou a fim de incorporar delicados recursos técnicos. (BIE, 1898, APUD STUCLIFFE, 2003, p. 279, tradução do autor)48

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Texto original: “thought through his fingers, and his inspiration come through the symbiosis of hands and keyboard.”

46

Texto original: “the problem is most accute when virtuosity cannot be understood as “integral” to a

musical argument but simply stares back at us from the page, in the form of mere passagework, scales, arpeggios, elaborate divisions of notes, or registral extremes. Unless they have been “deepened” or “heightened” in some way, such manifestations cannot in all conscience be enjoyed, so many relevant discussions seem to imply.”

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É interessante notar que a má recepção das obras que possuem elementos de fisicalidade ainda é um aspecto inerente à nossa tradição musical, e tem sido problematizada por autores contemporâneos, tais como o alemão Helmut Lachenmann (1935). Ao radicalizar certos aspectos da notação e execução musical, em obras como o seu Segundo Quarteto de Cordas, Lachenmann propôs-se a evidenciar a ambivalência entre dois aspectos da escuta musical, por um lado tradição e

hábito, e por outro, fisicalidade e corporalidade. “Lachenmann crê que tal atrito e ambivalência

esconde uma hierarquização e uma repressão da fisicalidade por parte de nossa tradição musical. Tal fato impulsionou Lachenmann a adotar procedimentos radicais para expor tal ambivalência entre esses dois aspectos, o que resultou em interessantes resultados estéticos e sujeitos a uma discussão muito frutífera” (BARROS, 2010. p. 24).

48

Texto original: “In Scarlatti we seek in vain for any inner motive, nor we do feel any need of an

emotional rendering on the part of the performer; his short pieces aim only at sound effects, and are written merely from the love of brilliant clavier-passages, or to embody delicate technical devices.”

Não se pode ignorar que a produção de compositores/intérpretes é, muitas vezes, marcada pela dualidade entre a composição e a performance, resultando em obras cujo caráter é dominado por exuberantes aspectos da técnica instrumental. Entretanto, não nos parece justo reduzir a obra para teclado de Scarlatti a um mero veículo de exibicionismo para acrobacias técnicas. Objetivando uma melhor compreensão interpretativa desse repertório, investigamos, a seguir, as implicações da presença da corporeidade e da fisicalidade em algumas das sonatas de Scarlatti. Nossa intenção é revelar de que maneira tais elementos técnicos encadeiam-se na escrita do compositor como importantes meios expressivos, com implicações estruturais e também retóricas.

Inicialmente, apresentamos uma discussão sobre os procedimentos tecladísticos na Sonata K. 65, apresentada nas figuras 25 e 26. Tal peça apresenta longas sequências de arpejos, (entre os compassos 3 - 6, 24 - 25, 28 - 29), as quais Stucliffe (2003, p. 283) classifica como um jogo, oferecendo ao intérprete a oportunidade de simular a presença de três mãos. Ele compara tal atividade a uma criança repetindo padrões ao teclado, absorta na execução física, de forma inconsciente.

Ao mesmo tempo, Stucliffe aponta que tais seções livres apresentam um marcante contraste com os trechos cujo discurso é orientado pela estética barroca, (em especial entre os compassos 19 a 22, e 43 a 50), em que se nota um desenvolvimento contrapontístico e um movimento muito mais contido espacialmente. Assim, a presença da fisicalidade mostra-se emblemática à compreensão estilística desse repertório, em termos expressivos e formais.

Não é a primeira vez que uma sonata de Scarlatti parece mapear claramente o debate entre antigos e modernos. O argumento musical da Sonata K. 65 também compreende espaço – o restrito controle do movimento na dicção barroca, material reconhecível do mundo da “verdadeira composição” versus o registro expressivo do nosso assim chamado tema (N.T.: Padrão temático derivado dos motivos em arpejos). Ele também compreende tempo – o material repetido não possui, de fato, sintaxe e é, como se fosse, indefinidamente extensível ao gosto dos dedos (notem-se as repetições e a duração claramente excessivas, a partir do compasso 03), enquanto o material barroco é colocado adiante. (STUCLIFFE, 2003, p. 282, tradução do autor)49

49

Texto original: “Not for the first time, a Scarlatti Sonata seems to map out quite clearly the debate

between ancients and moderns. The musical argument of K. 65 also concerns space – the tight control of movement of the Baroque diction, recognizable material from the world of “true composition” versus the registral expressiveness of our so called subject. It also concerns time – the repeated material has in effect no syntax and is, as it were, indefinitely extendible for as long as the fingers

Essa dualidade entre a apresentação de elementos puramente físicos, implícitos a uma digitação virtuosística, e trechos compostos de maneira mais estrita e convencional, é algo presente em muitas das sonatas. Como compreender tais características? A abrupta interrupção do material convencional pela efusão de correntes tecladísticas, quase que de forma irônica, pode ser vista como um triunfo da fisicalidade sobre o estilo Barroco? Stucliffe oferece uma convincente explanação, baseada em suas observações sobre forma, expressão e conteúdo:

Assim, embora queiramos considerar essa sonata o triunfo do irrepreensível gesto musical sobre a quase rotineira direção antiga, a mensagem final é mais sutil. A liberdade dos espontâneos “motivos-manuais”, por mais que domine a retórica da obra, é ilusória; no contexto de uma forma musical fechada eles dependem de vivenciadas e conscientes maneiras de compor. Somente por essas tolas repetições, uma conclusão não seria alcançada. O novo pode até triunfar na expressividade, mas é o velho que dá, formalmente, a palavra final. (STUCLIFFE, 2003, p. 283, tradução do autor)50

fancy (note its clearly excessive repetitions and duration from bar 03), while the Baroque matter is driven onwards.”

50

Texto original: “Thus, although we may want to make this sonata about the triumph of the

irrepressible physical gesture over the rather routine older direction, the final message is more subtle. The freedom of the unthinking “hand-motives”, for all they dominate the rethoric of the work, is illusory; in the context of a closed musical form they depend on tried and true means of writing music. In their idiot repetitions they are unable to bring about closure. The new may triumph expressively, but the old has the last to say formally.”

Figura 26: Scarlatti, Sonata K. 65, segunda parte. Edição Gilbert.

Um outro exemplo pode ser identificado na análise da Sonata K. 46. Aqui, a escrita de algumas linhas mostra-se fragmentada, sacrificando um desenvolvimento musical convencional pelo impulso da realização física:

Um efeito extraordinário é criado pelas escalas na mão esquerda nos compassos 68 e 71 da Sonata K. 46, onde a nota condutora lá sustenido é deixada suspensa, enquanto que o registro do baixo do compasso anterior é retomado. Isso é ainda mais impressionante já que o registro da escala ascendente é alcançado por um salto abrupto. Isso, novamente, parece proclamar a independência do teclado da condução usual das vozes, o entusiasmo do súbito mergulho em direção a duas oitavas abaixo é mais importante. (STUCLIFFE, 2003, p. 295, tradução do autor)51

Figura 27: Scarlatti, Sonata K. 46. Edição Gilbert.

Tal afirmação também encontra eco na seguinte colocação de Decker, em sua análise sobre os 30 Essercizi (Sonatas K. 01 a K. 30): “Scarlatti pensou fisicamente de tal forma, que a extensão das frases e mesmo barras de compasso parecem ter sido menos consideradas por ele do que o efeito físico global da passagem52” (DECKER, 2008, p. 338, tradução do autor).

Alguns dos gestos físicos preconizados por Scarlatti têm sido compreendidos pelas relações desse repertório com a dança, como se o intérprete realizasse, ao teclado, gestos reminiscentes dos bailarinos. Observamos tais aspectos nas longas sequências de cruzamento de mãos, em que o instrumentista

51

Texto original: “an extraordinary effect is created by the left-hand scales at bars 68 and 71 of K. 46,

where the leading note A# is left hanging when the bass register from the previous bar is resumed. This is all the more striking since the register of the rising scale is itself reached by an abrupt leap. This again seems to proclaim the independence of the keyboard from normal voice-leading conduct; the thrill of the sudden plunge down over two octaves is more important.”

52

Texto original: “Scarlatti thought physically to such a degree that phrase length and even barlines

executa um diálogo ritmado e coreografado entre vários registros do instrumento. Além disso, o senso de dança se reforça pela constância de apoios dos baixos nos tempos fortes, em diálogo com as respostas nos registros superiores, como se verifica na figura abaixo:

Figura 28: Scarlatti, Sonata K. 120. Edição Gilbert.

Sobre tais trechos, Kirkpatrick aponta que:

Em muito desses saltos, que poderiam ser facilmente divididos entre as mãos, as indicações expressas por Scarlatti são para que sejam executados por apenas uma mão. Cinestesicamente, o gesto é importante. O intérprete compartilha o senso de espaço do dançarino, e o esforço e o tempo requisitados para atravessá-lo. (KIRKPATRICK, 1953, p. 193, tradução do autor)53

Outra característica “coreográfica” notada é a exigência de uma independência completa de movimentação, incluindo até mesmo o uso da cintura a fim de que o intérprete se desloque entre os diferentes registros. Para Boyd: “nenhuma outra música para teclado do século 18, e pouco repertório de qualquer

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Texto original: “In many of those leaps which could easily be divided between the hands, Scarlatti’s express directions demand that they be executed by a single hand. Kinesthetically the gesture is important. The player shares the dancer’s sense of space and the effort and timing required to traverse it.”

outro século, é tão “coreografado” para empregar dedos, mãos, pulsos, braços e até mesmo a cintura do intérprete54” (BOYD, 1986, p. 186, tradução do autor).

Em nosso estudo interpretativo, objetivamos realizar tais obras de forma a oferecer uma coerente percepção estética, tanto em termos estruturais quanto expressivos. Percebemos, em Scarlatti, que muitos gestos físicos pontuam e marcam o discurso musical, oferecendo contrastes espaciais, harmônicos e rítmicos com os trechos cuja condução de períodos e linhas é mais tradicional. Além disso, observamos que a virtuosidade também atua como elemento motriz em muitas dessas sonatas, que soam quase como toccatas ou movimentos perpétuos, exigindo do instrumentista uma profunda resistência e tônus físico a fim de revelar tal retórica à audiência. Como exemplo, podemos observar as correntes de colcheias que permeiam toda a Sonata K. 517, na figura 29, na página a seguir.

Um outro aspecto concernente à fisicalidade em Scarlatti se refere às intenções visuais da escrita tecladística desse compositor. Como já mencionado neste trabalho, não é necessário, em muitas das sonatas de Scarlatti, realizar os cruzamentos de mãos indicados pelo compositor para a sua execução. As indicações de Scarlatti, entretanto, implicam em uma performance cuja expressão também ocorre de forma visual, em uma interação de movimentos entre o executante e seu instrumento. Dessa maneira, a próxima seção pretende investigar as intenções musicais e visuais de Scarlatti oriundas de sua coreografia de gestos tecladísticos, explorando a diferença entre a percepção dos espectadores de tais performances e a percepção daqueles que apenas as ouvem. Para tanto, usaremos algumas discussões contemporâneas sobre o gesto musical e suas implicações na percepção estética de determinados repertórios pela plateia.

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Texto original: “No other keyboard music of the eighteenth century, and very little of any other

century, is so “choreographed” to employ the fingers, hands, wrists arms and even the waist of the perfomer.”

Figura 29: Scarlatti, Sonata K. 517. Edição Gilbert.

3.3 Um enredo visual: Domenico Scarlatti e algumas concepções contemporâneas sobre o gesto musical

Conceitualmente, observamos que a expressão gesto musical pode se referir tanto a unidades mínimas de eventos musicais imbuídos de algum sentido formal ou expressivo55, (pertinentes ao gesto composicional), quanto a gestos físicos realizados pelos intérpretes objetivando a realização sonora da obra. Observa-se

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Como exemplo, podemos citar motivos ou progressões harmônicas que estabeleçam ao ouvinte a possibilidade de compreender e acompanhar o enunciado sonoro e discursivo.

que, em ambos os casos, os gestos musicais devem possuir alguma significação ou intenção estética para a percepção das obras pelo ouvinte, sendo agentes primordiais na comunicação do discurso musical. Para Steuernagel o significado de discurso musical:

está circunscrito à organização de eventos sonoros no tempo, e está ligado com a coesão destes elementos, a coerência de organização entre os elementos escolhidos e a natureza de sua manipulação, especialmente no que concerne à concatenação, relação e contraposição de enunciados. (STEUERNAGEL, 2008, p. 37)

Steuernagel propõe um paralelo entre o discurso musical e o discurso linguístico através das conceituações de Mikhail Bakhtin (1895-1975), em que o enunciado linguístico é uma unidade cognoscível e reconhecível do discurso, o qual é formado por uma corrente organizada de enunciados. Em música, os enunciados linguísticos podem ser relacionados aos gestos musicais, reconhecíveis como unidades musicais:

um enunciado musical seria um sistema reconhecível, a partir do qual se constrói, de maneira mais complexa, um discurso musical, formado por elementos musicais. Trazido para este âmbito, o conceito se torna importante para o reconhecimento e para o tratamento do gesto musical: uma unidade de relações musicais que são reconhecíveis como uma espécie de “unidade de intenção”. (STEURNAGEL, 2008, p. 44)

Para Iazetta, o gesto musical também prescinde de significação. Além disso, esse pesquisador insere em sua conceituação a noção de movimento físico:

Gesto é entendido aqui não apenas como movimento, mas como movimento capaz de expressar algo. É, portanto, um movimento dotado de significação especial. É mais do que uma mudança no espaço, uma ação corporal, ou um movimento mecânico: o gesto é um fenômeno de expressão que se atualiza na forma de movimento. (...) No que concerne à música, o gesto desempenha um papel primordial como gerador de significação. (IAZETTA, 2003, p. 33)

Similarmente, Barros (2010, p. 23) também considera como condição primaz do gesto musical a sua capacidade de gerar significação, aí incluindo aspectos físicos e corporais como musicalmente significantes. Os argumentos acima citados, ao considerar a ação física como fator de geração de sentido musical dentro de um discurso, mostram-se uteis à nossa compreensão das indicações físicas e

espaciais propostas por Scarlatti. Tais indicações atuam expressivamente, pontuando os enunciados musicais em termos fraseológicos, espaciais e texturais. Entretanto, Barros observa que:

O gesto guarda uma relação com o movimento, mesmo que metafórica. Porém nem todo movimento pode ser considerado um gesto: para um movimento ser considerado gesto ele deve se tornar significativo para um sujeito que imprima uma intencionalidade e interpretação a esse gesto. Claramente isso introduz um aspecto subjetivo bem como um aspecto de