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Ana... Apenas Ana. Talvez até mais que isso, só que eu não conseguia enxergar. Devagar desci as escadas no ranger de joelhos e das lembranças, da perfeição nada restou, apenas Ana. A solidão dos últimos meses chegava a fazer bem, o ponto de vista de qualquer um dá direito a isso. Esse é o meu, a minha vida, ou ex... Ah! Esses cheiros de domingo ensolarado aliviam qualquer barra, ainda dez da matina e a maresia a beijar meu rosto, o mesmo que deixou de ser beijado por ela há tempos. Outras vieram, mesmo assim... Arris- co dizer que reclamo de barriga cheia e para tanto uso o exemplo do meu irmão mais novo, que casou antes, que tem belos filhos, que tinha a esposa dos sonhos até que, até que ela o traiu com um colega de trabalho e sumiu, notícias últimas afirmam que Madri é o pouso atual, nada confirmado, nenhum cartão de aniversário ou Natal para os filhos, aquela mulher...

Ana sorria e o mundo parava, ou melhor, girava só pra nós dois. A Torre Eiffel feita de lego, tiramos uma foto lá em cima que foi usada como papel de parede do micro do trabalho por exatos seis meses. As covinhas, detentoras de trocadilhos infames de minha parte, prenunciavam nosso destino, mas agora o que eu penso é que amores líquidos devem ser vividos como bem recomendou o gran- de poetinha. Lírico demasiado, sofri as consequências de um sonho onde o fim nunca é como imaginamos, simples, esses sonhos não têm fim. Ainda vago por essas estradas oníricas sem ter noção do para- deiro, e quer saber? Acho isso o maior barato. Pesadelos onde se cai indefinidamente não entram no repertório, até porque prefiro sonhar

* Mora no Rio. Bacharel em Letras pela UFRJ, graduando em Tecnologia em Sistemas de Computação pelo CEDERJ, trabalha na COPPE. Textos publicados em várias antologias.

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menina, chateava-se com isso, demos boas risadas juntos.

Ana surgiu numa tarde chuvosa procurando abrigo nas amen- doeiras da beira do Sena, parecia uma francesinha, por lá desde os oito anos, Oh! minha infância querida que os anos não trazem mais! Formou-se psicóloga na Cidade Luz, vez por outra saudosa do país tropical pilheriava meu péssimo francês, detesto fazer biquinho. Caminhamos e conversamos feito velhos amigos, nada de paixão à primeira vista, desacredito desse poder, mas a danada veio nel mezzo

del camin enquanto passeávamos pela charmosa Avenue Emile Zola,

já sem a chuva que nos apresentou, até que andamos e andamos e paramos no Café Lutetia, toda essa aura romântica e histórica ajudou, trocamos olhares molhados, telefone, planos e divagações, ficando a promessa de novo encontro. Achávamos tudo muito diver- tido e flertamos filosofando sobre a casualidade da vida.

Ana parecia menos do que eu precisava, eu não conseguia enxergar. Devagar caminho na praia e vejo todos esses corpos sa- rados desfilando, chego a ficar um pouco envergonhado dessa bar- riguinha de chope, bebedor inveterado das loirinhas serpentinadas, delicioso costume carioca, horário de verão então... Ela somente vinho (ou licores vez em quando), a ex-carioca nunca soube o que é o chope no Amarelinho ou no Bar Luís, Cabernet Sauvignon, Mer- lot, e outros nomes de que não me lembro mais, deixaram de fazer parte deste vocabulário condicionalmente feito de termos nacionais e gírias várias. Certo horror à cultura da praia, o corpo denunciava: brasileira, sim! Pelo menos de nascimento, neolatina, cresceu sem entender bem aquela morenice, que se disfarçava por trás de cremes e mais cremes e uma elegante ojeriza ao deus sol, ainda mais o do hemisfério sul que mostra uma boa vontade maior que o irmão do norte, apavorada! Ancas largas, seios pequenos, uma francesinha que se destacava no meio de todas as outras, Paris parava, e ela desfilava indiferente ao movimento de tantos pescoços, apenas Ana. Eu ali extasiado...

Ana dizia que a feijoada de dona Anita e o calor dos primos, que somavam mais de 15, era o que valia a pena. Adorava o Atlân-

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tico até mais que o Mediterrâneo, nada de torrar, horários preesta- belecidos, outro ponto de discórdia, a diversão parecia não ter fim. Ana foi a mais espirituosa mulher com quem travei discussões nessa vida, insuperável. Ninguém conhecido hoje, essa praia podia estar melhor, minha solidão precisa de pelo menos um oi e algum sorriso amigo, bem, hora de voltar pra casa. O Brasil teve sabor diferente pra ela durante o tempo em que brincamos de amar, foi o que escre- veu na derradeira carta, para mim Paris passou a ser bem mais que Paris, até porque não curto tanto viajar pra fora. Tanta história aqui dentro. Ana, numa de suas minipalestras quando saíamos de um ci- nema em Botafogo, afirmou que eu era uma espécie em extinção, a globalização ia dar conta dos últimos exemplares, tudo isso porque eu disse que Truffaut era um merda-chique. Falei só para provocá-la, adorava isso, o polêmico cineasta, crítico e sei lá mais o quê fazia parte do sagrado altar de Ana, aquela intelectualzinha de bunda grande me cegou por muito tempo. E só agora vejo.

Ana não pediu, talvez nem quisesse, acho que sequer passou por qualquer pensamento mais apaixonado dela... Quase fui atrope- lado por uma patinadora loura, mas deu tempo de anotar a placa, e que placa... Despediu-se da mesma maneira, sem pedir licença e nada demais nisso, errado fui eu, lírico até dizer chega: vislum- brei filhos, um lar doce lar e todas essas coisinhas que pra nossa sociedade constituem a vida dourada. Chamaram-me ingênuo, mas percebi dias atrás numa mesa de bar que eu nunca fui enganado, tudo foi tão claro, claramente maravilhoso, cheio de luz e verdade. Alguns preferem mentiras, uma união que se baseia na escuridão das frustrações múltiplas compartilhadas, nada disso... Fomos verda- de, onde passamos, dormimos, sorrimos, brigamos, transamos, jura- mos. Muita verdade. Aí está a outra parte do aprendizado, ninguém compreende. Mesmo eu demorei a chegar a todas essas conclusões, bendito chope numa ótima companhia, e tudo se fez nítido. Ana foi muito mais do que pude compreender, sou grato por mais isso. Dois a zero? É pouco, Zé Carlos, nosso time hoje vai arrebentar, não, não vou ao bar do Pepe, vou dar uma sossegada, mas se der o seu placar tem três chopes garantidos lá.

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assim, ouvindo, ouvindo, apaixonando... Anas intelectuais, fraqueza que adquiri numa viagem que começou blasé, jamais me livrarei da verdade. Hoje enxergo muito mais. O jantar está marcado, a vida está marcada. Os passos são diferentes, o mesmo nome alhures, um outro eu com o mesmo nome. Cultivamos pares e estes parecem mes- mo ser a formação ideal. Solidão? Só depois de amanhã, quando Ana voltar pra sua casa.

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