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Maria Apparecida Coquemala

*

– Paris! Paris! Linda!

Eu não me continha, deslumbrada, praças e monumentos se sucedendo, a primavera em toda parte, sob o dourado brilho do entardecer. Paris dos meus prosadores, dos Miseráveis, dos Mosque- teiros, da Dama das Camélias; dos meu poetas, Musset, Lamartine, Rimbaud... Paris das minhas telas pirateadas por chineses competen- tes, Renoir, Monet, Magritte; dos filósofos, dos cientistas, da música, Sartre, Pasteur, Ravel... Paris... Formas, cores, sons, personagens entrando pelos poros do meu corpo, da minha alma...

Tanta emoção tinha que ser dividida. A mulher ao lado dormia. – Acorde, estamos em Paris.

Esfregou os olhos, perdida entre o sono e a pouca curiosidade. Virei-me para trás, Paris, Paris...

O homem sorriu, mas difícil saber se compartilhava das bele- zas da cidade, da minha emoção desinibida, se... Sorriria sempre, denotando compreensão, bem-estar do corpo, da alma, reflexão, carinho, tristeza, como eu haveria de descobrir nas horas que se seguiram. Quando então lhe perguntava brincando se existia de verdade, se não era miragem da minha mente excitada pela via- gem. Enquanto seu sorriso resposta se gravava nas fibras do meu coração...

* Mora em Itararé (SP). Professora de Língua e Literatura Portuguesa, colunista de

O Guarani. Autora premiada de contos, crônicas e poemas, foi finalista do Prêmio

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uma curta temporada na França. E na manhã seguinte, encontrei-o no saguão. Ponto de início dos nossos absorventes e inesquecíveis diálogos.

– O ônibus deve estar chegando, Dan. Ansioso pelo Louvre? – Não vou, Bia.

– Não vai? Vai perder a oportunidade? Sonhei ver lá ao vivo algumas preciosidades, Monalisa, Moulin Rouge, jardins de Monet...

– Cansei dessas formas de expressão, Bia, busco algo mais. Vou caminhar ao acaso, quem sabe uma pequena praça, um som diferente, novas cores, novas formas, pequenas coisas, detalhes mal percebidos ou nunca percebidos. Detalhes, sim, mas que para mim po- dem conter todo o sentido. Gosto de gestos, paladar, cores, sensações, sons, gosto de pequenas experiências sensoriais, têm um momento, um espaço, um intervalo onde às vezes se vê o que realmente se vê...

– A realidade está sempre embaçada pela subjetividade, Dan. – Sim, concordo, e minha impressão estética é diferente da sua, como se apreendêssemos o mundo apenas pelos cantos dos olhos. E é ilusão pensar que se apreende toda a realidade, Bia, seu olho não está apto a captar todas as cores, as nuanças, nem seus ouvidos todos os sons, daí que o modo como a vemos é uma maneira falsa de percebê-la e toda teoria é uma falsificação do real. Pense nas cores vibrantes ou matizadas que nossos olhos não captam, nos sons que nossos ouvidos não alcançam, nas formas imprevisíveis, nos odores jamais sentidos, nos sabores nunca experimentados... Pense no terrível silêncio entre as estrelas, nos estrondos intergalácti- cos. Bem, quer me acompanhar? Ou prefere ir ao Louvre?

– Vou com você.

Dante e Beatriz em contrárias funções, saímos a caminhar ao acaso, chegando a uma pequena praça emoldurada pela primave- ra, pelas nossas presenças em festa, como se os efeitos de tantas e aleatórias causas tivessem convergido ali na pracinha parisiense para que nela estivéssemos. Pássaros cantavam, e o canto era novo para mim; a primavera se vestia de cores surpreendentes, insetos se buscavam num zumbir desconhecido, anônimos repintavam o mundo

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em suas telas... Através de portas que Dan abria para mim com sua clarividência, sua sensibilidade, seu sorriso...

O tempo fluía, nossos diálogos tomavam todo o dia, atrope- lando a agenda da viagem, conhecendo outra Paris, ignorada pelos roteiros turísticos.

– Você não parece dar grande valor à Cultura, Dan.

– O que é Cultura, Bia, além de um aglomerado de ideias e estéticas? Acredito que saber sentar-se na cadeira pode ser mais importante. Esta palavra está sempre num pedestal, que acho preju- dicial. A palavra normalmente não é bem utilizada, tem um caráter muito útil e muito inútil ao mesmo tempo. Pensamos muitas coisas alheias e vazias, apenas porque possuem invólucro social bonito e aceitável, mas quando examinado é algo estéril. E sobre certas coi- sas, é melhor não saber que saber.

– Mas, há de convir que útil ou inútil dependem de cada um de nós. Como eu me situaria num universo sem livros, sem música, sem telas, sem poesia?

– E quando isso não deixasse perceber o que é novo? Por já ter-se habituado?

– Talvez, ao contrário do que você diz, estimularia a sensibili- dade, aguçaria a percepção para novas belezas universais.

– A questão principal é como usá-la, como saboreá-la, que guar- dar, que descartar... A cultura também aprisiona. Claro, não se pode parar no tempo. E porque não se pode, a única questão que existe é saber se realmente vale a pena viver, como questionou Camus.

– Mais importante não seria perguntar como viver?

– Sim, este é o segundo passo: se a vida vale, como viver? Eu diria que gosto de apreciar a consciência de estar aqui.

– E quanto ao transcendental, Dan?

– Sei que existo nesta frequência em que estamos, Bia. Nada sei quanto a outras, não me interessam, não posso experienciá-las. Não sei de tanta coisa quanto você imagina, e até sobre as coisas que eu sei tenho dúvidas se sei mesmo. Gosto de ouvir música, pas- sarinhos, aprecio roupa, gosto de estar sentado de meias, lendo, gosto de suco puro de uva, gosto da minha profissão de arquiteto,

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não, se todo o universo não passa de criação do nosso cérebro mani- pulando os sentidos, como supõem alguns teóricos. Somos. Importa- me a percepção das cores, feitas que são para nossos olhos, os cheiros feitos para nós, penso apenas no que percebo, a estética e os valores disto. O mistério das coisas, como disse Fernando Pessoa, é não haver mistério algum.

– Aqui estamos, Dan?

– Não. Apenas somos. Deus nos deu esta consciência de que somos. Mas, não queremos os pequenos sons. Queremos com todo nosso entendimento ouvir bombas, explosões, e fatalmente nós mes- mos as produzimos. Já vi Deus várias vezes. O resto é o resto.

– Dan, partimos amanhã cedo. Um dia apenas em Paris. Havia tristeza no seu sorriso ou imaginação minha querendo que assim fosse?

Tantas as lembranças... Dan é um sorriso, um novo matiz, o zumbir de insetos que se buscam, é o cheiro da pizza assando, é o sabor do suco puro de uva, é Monet disperso nos jardins, é revela- ção... Dan é luz na Cidade Luz...

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Uma manhã e uma noite