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Fazia quinze minutos que os dois agentes observavam em silên- cio o jovem, cabisbaixo, que respirava pesadamente. Outro homem engravatado entra na sala e entrega uma papelada para o agente mais velho que lê por alguns minutos e a seguir quebra o silêncio.

– Jean. Jean, me escute. Recebemos a papelada da Interpol. Agora temos autorização para iniciarmos as gravações de suas de- clarações. Amanhã à noite chegarão alguns agentes vindos de Lyon. Eles querem dar continuidade aos depoimentos. Você me entendeu? Quero que você tenha consciência de que tudo será gravado – o agente mais velho fala para o microfone no centro da mesa – De- poimento de Jean Buarque, brasileiro, natural do Rio de Janeiro. O mesmo recusou a presença de um advogado. Data do arquivo: 24 de agosto de 1995. São exatamente 15 horas e 13 minutos. Jean, agora é com você. Conte o que aconteceu com Suzette. Qual o en- volvimento entre vocês dois e o atentado ao metrô de Paris em julho passado?

O agente mais velho empurrou o microfone para Jean, mais cabisbaixo, num fio de voz.

– Bem... meu... meu nome é Jean. Jean Bu...Buarque. Tenho 32 anos e viajei para Paris a passeio há quatro meses, permanecendo por lá durante três meses. Me hospedei em variados hotéis usando nomes diferentes, porque eu podia ser todo dia uma pessoa diferente. Tenho dupla cidadania, França/Brasil. Sou fluente em francês, italia- no, inglês e espanhol, então sempre foi fácil viajar na Europa, princi- palmente na França. Naquele momento estava com bastante dinheiro e desfrutei todos os luxos de Paris, durante semanas pulei de hotel em

* Mora em Niterói. Videomaker, roteirista e produtor de programas televisivos, escre- ve críticas cinematográficas, matérias jornalísticas e contos.

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hotel, na última semana estava no Beau Manior na Rue de L’Arcade, mas mudei para o George V e foi lá que conheci Suzette...

– Como isso aconteceu e quais foram as ocorrências seguin- tes? – interrompeu o agente mais novo, afrouxando a gravata e acen- dendo um cigarro.

Jean, sorriso amargo, levantou a cabeça e se ajeitou na cadeira. – Bem... eu... eu estava tomando o café no Les Prince, comple- tamente distraído com o seu belo jardim, quando aquela linda garota chegou perto da minha mesa, abaixou os óculos escuros e perguntou se eu me lembrava dela. Respondi que com certeza lembraria dela se tivéssemos nos conhecido. Ela riu e disse que havia me confundido com Jaques, um amigo que trabalhou com ela.

– Você sabia quem era ela? Reconheceu ela? – perguntou o agente mais novo.

– Não. Não. Eu nem imaginava quem era ela. Fui saber de tudo agora pela TV. Não leio jornais e assisto pouco à TV. Sou um desinformado assumido. No entanto, a beleza e a simpatia dela me cativaram e convidei-a para se sentar. Conversamos agradada- velmente por algum tempo. E, após o café e cerca de uma hora e meia além, eu já estava completamente apaixonado por aquela francesinha ruiva e comecei a acreditar que as minhas últimas 24 horas em Paris seriam marcantes. Não tinha nada a perder, então arrisquei e convidei-a para caminharmos à margem do Sena. Acho muito romântico. Pegamos um táxi e fomos para lá. Caminhamos e aproveitamos para visitar muitas bancas dali e tivemos animadas conversas com os bouquinistes, descemos a escada que leva à mar- gem do rio e entramos num peniche, aproveitamos para saborear um

assiette fromage acompanhado com um delicioso cabernet. Foi nesse peniche que nos beijamos pela primeira vez. Eu não acreditava no

que estava acontecendo. Estava simplesmente eufórico. Apaixonado à primeira vista na cidade mais bonita do mundo! Qualquer pessoa fantasiosa gostaria de viver uma história de amor em Paris.

“Passamos o dia visitando vários lugares pitorescos da cidade que eram marcantes para mim. Fomos até Montmartre e ficamos na escadaria de Sacré Coeur apreciando a vista e escutando os músicos

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Place du Tertre onde vários artista pintam e vendem suas obras. Suzet- te teve o rosto desenhado por uma artista de lá, chamada Flore Me- diano. Ela me deu o quadrinho, mas acabaria perdendo-o no incên- dio daquela noite. A seguir pegamos um táxi e seguimos na avenida Montaigne até a Rond Point e fomos até a praça Charles de Gaulle para ver o Arco do Triunfo. Ficamos abraçados bastante tempo diante do impressionante monumento erguido a mando de Napoleão Bona- parte. Deixei para o anoitecer a chegada à Pont-Neuf, a ponte dos namorados. Era, sem dúvida, a coroação simbólica daquele amor que florescia em mim e, sem eu saber, estava tão perto de acabar. Sobre a ponte nos beijamos e confidenciei que estenderia minha per- manência em Paris e a volta para o Brasil ficaria adiada. E, naquele momento, senti uma certa tensão no seu olhar, tentei não me preocu- par com isso, acreditando ser minha imaginação e em seguida nos hospedamos numa modesta pensão. Nesta pensão passamos parte da noite fazendo amor e jurando ficarmos juntos por um bom tempo.

“Deixamos a pensão e rumamos de táxi, novamente, para Mont- martre onde jantamos no Auberge de La Bonne Franquette. De repente, um estranho se sentou junto de nós e apontou uma arma para Suzette, mandando-nos segui-lo; na Rue Saint-Rustique entramos num carro e lá estava outro sujeito, impressionantemente parecido comigo, que acre- ditei ser Jaques, o amigo que trabalhou com Suzette e com quem ela havia me confundido de manhã. Eles esbravejavam. Jaques gritava que o acordo estava rompido e que ela havia comprometido a célula com sua irresponsabilidade e que teriam de executar o plano o quanto antes. Suzette disse que estava cheia de tudo aquilo, que havia cometi- do um erro, que não contassem com ela, que estava fora. Jaques atirou na cabeça de Suzette. Eu agarrei a arma e outro tiro acertou o motoris- ta que perdeu o controle e capotou num declive. Fui lançado para fora, e o carro rapidamente se incendiou. Fiquei desorientado por um tempo vendo o carro em chamas com Suzette, meu amor, seu quadro e seus segredos carbonizando-se na minha frente. Desesperado, voltei para o hotel, peguei minhas coisas, segui para o aeroporto e voltei para o Brasil. Tempos depois, vi meu retrato falado e a suspeita de estar envol- vido num atentado terrorista, então resolvi me entregar. É só.”

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Jean limpou os olhos e o rosto, úmidos de lágrimas. Enquanto isso o agente mais velho atendia a uma ligação do interfone, sussur- rando algumas coisas; momentos depois, ele desligou. Indicou para o agente mais novo abrir a porta, e dois outros homens entraram.

– Sr. Jean, após sua apresentação à polícia, entramos em con- tato com seus familiares que enviaram dois representantes para con- versar conosco. Creio que conhece o Dr. Jorge Bacelar, advogado de sua família há décadas, e o Dr. Dante Pimentel, neurologista e médico, amigo de sua família há anos. E foi através de seu médico que soubemos de uma peculiaridade. Dr. Dante, por favor, diga no microfone o que você me relatou ao interfone.

O médico cumprimentou os agentes e olhou profundamente para Jean que desviou sua cabeça, seu rosto lívido. O médico sen- tou-se à frente de Jean e falou no microfone.

– Jean Buarque é meu paciente há cerca de sete anos. Jean sofre de uma doença degenerativa incurável. Lutamos há anos para estabilizar a doença tentando vários tipos de tratamento. Estivemos na França no mesmo período que antecederam os atentados. Nesses três meses, Jean foi submetido a um extenuante tratamento intensi- vo para prolongar um pouco mais a sua vida. Eu fiquei todos es- ses meses junto dele, acompanhando-o na sua terapia diária. Além dessa doença degenerativa, Jean sofre de pseudologia fantástica, um distúrbio de personalidade atualmente mais conhecido como transtorno factício em que o paciente conta histórias complexas e intricadamente detalhadas sobre sua vida presente e pregressa. Tais histórias beiram a plausibilidade e quanto mais é confrontado mais inventará histórias convincentes. Acredito que ao ver o retrato falado apresentado na TV, coincidentemente parecido com ele, Jean criou uma história que para si era completamente real e havia acontecido, não aguentando a pressão por acreditar ter vivido tudo aquilo, ter perdido um grande amor e ser suspeito de terrorismo, ele resolveu se entregar.

– Doutor, isso quer dizer que nunca estiveram em Paris? – per- guntou o agente mais novo, perplexo.

– Sim. Isso quer dizer que essa história, esse dia, essa noite, Paris, nunca aconteceram.

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