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Gabriella Mendes

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Era uma tarde de verão. Na entrada do metrô de Jules Joffrin, parada em frente ao Carrossel, ela hesitava. Não tinha certeza se deveria voltar àquele lugar e se o seu medo não era apenas uma cisma. Todos os rostos em volta se apresentavam como hostis e seu corpo lentamente pedia descanso e refúgio. Talvez fosse melhor ir para casa e dormir. Talvez ela devesse negar suas obrigações. Tal- vez ela só quisesse estar sozinha com seus livros.

Jeanne sentia-se atormentada havia dias, e ninguém via por quê. Sua introversão não permitia um desenho do seu estado de espí- rito. Durante quase todo junho passado ficou reclusa em seu escritó- rio da “Ordener” sem contatos com a vida fora do seu apartamento. Só visitava com certa regularidade a rotisserie do outro lado da rua, o supermercado e a tabacaria. Não apareceu na editora e só ligava para seu chefe para informar que o projeto estava em desenvolvi- mento. Havia quase dois meses que não saía de Montmartre, exceto por uma esporádica visita à livraria Shakespeare e suas raridades. Sua dedicação a este último trabalho já beirava a inconsequência.

Havia algum tempo que não conseguia escrever nada que agradasse. Seus romances começaram a se repetir, e suas novas histórias já eram velhas conhecidas. Sentava-se em frente ao seu computador e sempre esperava pelo pior: a tela branca é o primeiro obstáculo para que as ideias fiquem eternizadas como ideias e nada mais. Sentia que sua tela branca era sempre preenchida pelas mes- mas cores ou pela mesma combinação de diversas cores. Ela sabia que a escrita não pode ter prazos e não pode ser feita por obrigação

* Mora no Rio. Cursa Letras na UERJ e Jornalismo na FACHA (Faculdades Integradas Hélio Alonso). Como contista, obteve menção honrosa no 19o Concurso de Contos

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e sempre que tinha prazos, tinha as mesmas ideias. Mas este último livro era diferente, não é possível saber se escolheu apenas a compa- nhia dos seus papéis neste junho por necessidade ou por dedicação, mas sem dúvida, por alguma fixação.

O prazo de entrega de seu novo livro havia sido estendido por mais duas semanas, afinal todo livro precisa se libertar das gavetas um dia, mas o prazo já não fazia muito sentido. O livro já estava pronto, o final já estava escrito, o texto já estava revisado, e alte- rações já tinham sido feitas, mas por algum ciúme incomum ou por algum instinto inevitável como o de preservação, Jeanne não queria libertá-lo. Era como se aquele texto revelasse, de alguma forma, tudo que a sua introversão sempre fez o favor de esconder. Não que ela não tivesse dedicado empenho a seus outros livros, mas esse era especial. Ele poderia transformar-se na obra mais importante da sua carreira, na obra com a crítica mais depreciativa ou poderia sim- plesmente sofrer a crueldade da indiferença e ser mais uma edição encostada nas prateleiras das lojas. Isso já não importava. O seu livro era apenas seu.

Da última vez que lhe pediram um romance longo, Jeanne revisitou todos os seus rascunhos e todas as ideias que explodiam subitamente e só precisavam de um pouco de tempo para se transfor- marem em histórias. Antes de começar a escrever, tinha o hábito de ir até ao Jardim das Tulleries e esperar que seus personagens apare- cessem. A beleza única das flores negras e o Carroussel du Louvre ao fundo sempre foram solo fértil para despertar os vários mundos que guardava em si. A lembrança inevitável da infância ressuscitava os passeios com sua mãe pelo Pavilhão Denon, as fotografias inespe- radas que seu pai tirava dela e a sua irmã desenhando as estátuas do Jardim. Quando esses quadros se sublimavam da memória, qua- se que instantaneamente encontrava o fio de Ariadne que iria guiá-la por aquele labirinto até o seu novo romance.

Seu primeiro escrito foi sobre uma jovem, como ela era na época, que encontrava o amor dentro de um livro. A personagem apaixonava-se pelo protagonista de um romance que lera e não conseguia se interessar por mais ninguém depois de ter conhecido

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de muitas rejeições para publicação, teve seu rascunho aprovado e começou então sua carreira de escritora e comprovou o vínculo essencial entre o ócio e as boas ideias. Nas suas tardes desperdiça- das nas Tulleries ou nos jardins da Sacré Couer, anotou dezenas de frases brilhantes que nunca ganharam espaços entre os textos que escrevia, mas que seriam reservadas para o dia em que escreveria uma grande obra.

Jeanne descobriu com o tempo que a escrita é um narcótico que vicia sem anestesiar. O vazio inexplicável de um livro pronto, de um romance contado, de um poema terminado só pode ser substituí- do pelo labor em escrever algo novo. O longo jejum de trabalho em que se encontrava desde sua publicação passada deu espaço para que germinasse uma ficção absolutamente nova, emergida do nada e já com todo seu desenvolvimento pregado às costas. Algumas his- tórias já nascem prontas e só precisam do trabalho do autor para que se tornem literatura.

Tinha consciência da qualidade da sua obra, mesmo que al- guns não a encontrassem. Sabia que o dossiê que guardava papéis de todas as cores, formas, tamanhos e proveniências era seu baú do tesouro e que suas pérolas, resultado de seus estudos, de suas reflexões, mas, principalmente, da sua falta de preocupações, eram o bem mais precioso que ela possuía.

Começou a escrever o “Espelho branco” depois de uma noite com seus amigos em um piquenique prolongado no Champ de Mars. No último sábado de abril, muito contrafeita, aceitou o convite de uma de suas amigas para um pequeno encontro àquela tarde com vinho, saladas, queijo e pain au chocolat, o que é absolutamente irrecusável, apesar de rejeitar a irremediável multidão que devasta o Champ de Mars todos os finais de semana. Convencida a ignorar todo o resto e tentar desfrutar alguma companhia de desconhecidos, ela foi e levou alguns queijos e geleias.

Nada de realmente relevante ocorreu nesta tarde fora a boa conversa e algumas risadas, mas de fato algumas situações parecem propícias para que percamos o rumo de casa e achemos o nosso

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próprio. Entretida com a conversa, Jeanne não se havia dado conta de a hora ter passado e, quando percebeu que já não havia muitas pessoas na rua, era 01h10min da madrugada. Ela correu o quanto pôde para alcançar o metrô e, apesar de ter conseguido entrar, a linha 6 em direção a “Nation” já estava fechada, e ela não conse- guiria mudar para a linha 12 em “Pasteur”. Resolveu então ir sentido Charles de Gaulle para então tentar mudar para a linha 2 e depois finalmente para a linha 12, mas, ao chegar a Charles de Gaulle, já nenhum trem faria transporte de passageiros, sendo então obrigada a sair da estação. Por alguma dessas decisões que só tomamos moti- vados pelo vinho, Jeanne resolveu ir andando do Arco do Triunfo até seu apartamento da “Ordener”.

Depois de uma hora de caminhada, sustos com alguns estra- nhos na rua e certo cansaço aparente, sentou-se em uma praça mais ou menos perto de Clichy. A solidão, a noite e o álcool sempre foram uma perfeita combinação para que repensássemos a nossa vida e o nosso lugar nela. Quem era Jeanne? Seria ela uma escritora me- diana com poucas obras publicadas e nenhum reconhecimento? Ou talvez a criança tímida que nunca conseguiu abandonar a timidez e a infância? Ou seria uma jovem independente que não conseguia se libertar dos seus medos e vícios?

Talvez algumas coisas não pudessem ser mudadas, talvez ela nunca conseguisse se desapegar do passado, talvez não fosse pos- sível ser mais expansiva, mas ela tinha a certeza de que poderia se tornar uma grande escritora e de que um dia teria de escrever um livro que contasse todos aqueles pensamentos que ela fez questão de guardar. Um dia eles teriam de ser escritos em papéis dignos, legitimados pela sua disseminação: as palavras só podem modificar outrem quando são ditas.

Naquela tarde, em frente ao Carrossel da Julles Joffrin, ela tinha a primeira versão de seu livro já completa em mãos. Suas duas semanas de extensão já estavam esgotadas e marcou com seu editor às 19 horas para finalmente entregar-lhe o que devia. Saiu de casa com antecedência pensando em passar novamente naquela praça onde decidiu que escreveria sua melhor obra, com o seu melhor.

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para si era apenas uma loucura passageira e que ela não deveria ter a vergonha de mostrar a quem quisesse ler todos os mundos que ela possuía e como caminhava perdidamente entre eles.

Esse seu texto eram as suas ideias trabalhadas pelo seu pró- prio esforço intelectual. Suas ideias eram suas apreensões de tudo que ocorria fora dela em um colapso indissociável com o que se passava em sua mente em um caos insolúvel. Seu caos era tudo que ela poderia chamar de Jeanne. O segredo absoluto que garante sua existência e ela não poderia se perder. Resolveu não passar na praça. Resolveu desmarcar com seu chefe. Resolveu rasgar o seu livro. Não resolveu nada sobre sua vida dali em diante. “Eu sou uma ficção só minha”, pensou. Entrou no café, pediu um expresso, pagou e voltou para casa.

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Intimidade