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No eterno céu cinza, corpos moldados pelo clima frio ocultam muito calor. E eu sou toda calor humano, embora eu mesma tenha me deserdado dos trópicos.

A louca primavera oscilara entre os 14 e os 30 graus. Enfim, o primeiro dia de verão, que, só para enganar, parece anunciar um inverno, mas agora faz calor, um calor insuportável.

Insuportável para os outros. Eu suporto qualquer calor. Todos os calores.

Finalmente vestirei uma saia. Sim, uma saia curtíssima, que revela a palidez das pernas antes encobertas pela companhia inse- parável das calças compridas. Não amarro mais casacos na bolsa ou no ombro, nem cachecóis sufocam meu pescoço. Sem amarras, o corpo anseia por liberdade.

Uma nova Revolução ou o retorno à Bastilha?

Mas como se refrescar em uma cidade toda preparada para o inverno? Os vidros duplos nas janelas, o metrô e os trens urbanos sem ar-condicionado, o suor exalando dos poros, fortes cheiros mas- culinos e femininos se misturam, como bichos no cio a envolver o ar de desejo.

As piscinas públicas! Três euros para exibir os corpos, não com a mesma espontaneidade brasileira. Quantos centímetros conseguirei disputar com as crianças em férias que não puderam viajar devido à crise econômica, que rasga impiedosamente o bolso dos pais?

Nas ruas multidões de malas perambulam. Turistas chegando, parisienses deixando a cidade. Um em cada três franceses sairá de

* Mora no Rio. Formada em Jornalismo pela URFJ e em Letras pela UERJ, é mestre em Teoria da Literatura pela UFRJ. Venceu o I Festival Intergeracional de Contos e Poesias da UERJ, com o conto “Tempos cúmplices”.

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férias, e o número ainda é considerado baixo, sintoma da crise. A cidade repleta de turistas que aproveitam até o último momento de claridade. Só anoitece às 22 horas.

Suportar a si e aos outros por mais tempo.

Cidade Luz. Céu nublado não ilumina uma cidade. E, na maior parte do tempo, o céu cobre-se de cinza.

Nos museus, tesouros pilhados da África, da América... Eu só roubo sentimentos. Apenas de quem se permite roubar. Sentimentos alheios que se tornam meus também. Em compensação, não me nego. Doo prazer infinito. Então, por que necessito tanto que alguém me ame ao menos um pouquinho? Não precisa ser perfeito nem para sempre. Basta gostar de mim apesar da minha irritante mania de repetir a mesma reclamação centenas de vezes, apesar dos meus constantes esquecimentos de datas importantes, apesar do meu mau humor repentino, sem aparente motivo.

Sempre estrangeira. Para os outros e para mim.

E, para uma estrangeira, a cidade fica mais bonita quando não se precisa bater ponto na burocracia francesa. Nada de for- mulários a preencher, nenhum documento para assinar ou papéis a buscar. Foram meses e meses em que sempre faltava algo.

Continua faltando. Acho que sempre vai faltar.

Após anos em outro país, os hábitos se confundem. Quantas identidades em mim? Só a brasileira já abarca tantos Brasis, tantas raças. Por que não personalidade dupla? Uma personalidade é sem- pre mais que dupla. Sempre múltipla.

Na fuga da vida insossa, a esposa distante de um torna-se a amante cúmplice de todos. Pensamentos de prostituta nas mais belas damas da alta sociedade. Os mais altos chegam ao mais baixo.

Enquanto uma gota do Chanel no 5 percorre o meu pescoço,

vejo na mesa o cammembert. O perfume mais vendido do mundo e o mais barato e popular queijo da França, típico da Normandia, onde Joana D’Arc foi queimada viva. Tudo em mim.

Obrigada, Chanel, por libertar-me dos apertados corpetes e das amplas saias de múltiplos babados do século XIX. Com o “pre- tinho básico”, o colar de pérolas e a bolsa com alça de corrente

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de quase tudo. O mais simples é o mais elegante, nem sempre o suficiente. Preciso de mais.

Luto por mim. Lutarei sempre por mim. Do meu jeito. O jeito possível. Os benefícios sociais que os franceses adquiriram graças a protestos e contestações, à existência do antigo bloco comunista e à exploração da África não me pertencem. Os parisienses só passam por mim, e eu por eles.

No surrealismo inquietante da vida cotidiana, revivo a Belle

de Jour. Das duas às cinco da tarde, ela entoa o Hymne a l’Amour

e, quando anoitece, dividindo a abençoada cama do matrimônio, sussurra para si mesma que não se arrepende de nada, como Piaf.

Pela janela as nuvens se reúnem novamente no céu de Paris. Tempestade passageira ou retorno do eterno céu cinza?

Poesia

Lucia Romeu: Nascida e criada em Niterói, é professora adjunta

de Literatura Norte-Americana da UFF (aposentada), com mestrado em Língua Inglesa. Membro da Academia Fluminense de Letras. Par- ticipa da Orquestra Filarmônica de Niterói, como violinista. Poeta, é autora de: Sementes em alto mar (1984), Luz (1985), Folha de corte (1988), Cutting Leaf (1989, edição bilíngue), Quem é o enigma e a

solução (1990), Insight (1994), Uma carta para você, (1996), O dom

(1998) e O caminho das pedras (2003).

Lucília Dowslley: Jornalista, atriz e poeta, é artista multimídia que

se dedica à fotografia, poesia e teatro. Criadora e coordenadora do movimento Um brinde à poesia, que reúne mensalmente poetas e amantes da arte. Autora do projeto Flashes & Folhas, ensaio foto- gráfico que inspirou poemas, e foi exposto, entre outros eventos, no Encontro pela Paz e União dos Povos (Cidade de Leste, Paraguai, 2002). Fotógrafa free-lance, ministra oficinas de teatro e poesia.

Paula Glenadel: Professora de Língua e Literatura Francesa na

UFF. Doutora em Letras Neolatinas pela UFRJ. Realizou estágio de pós-doutorado na Université de Paris VIII. Poeta (A vida espiralada, 1999; Quase uma arte, 2005; A fábrica do feminino, 2008, pa- trocínio Petrobras – Lei Federal de Incentivo à Cultura) e tradutora (Os animais de todo mundo, de Jacques Roubaud. SP: Cosac Naify, 2006, com Marcos Siscar; Começo, autobiografia poética de Na-

thalie Quintane, 2004. SP/ RJ: Cosac Naify; 7 Letras; A Rosa das línguas, antologia poética de Michel Deguy, com Marcos Siscar. SP/

RJ: Cosac Naify; 7 Letras, 2004). Organizou as coletâneas de en- saios Valores do abjeto (com Ângela Dias. Niterói: EdUFF, 2008); O

francês e a diferença (com Eurídice Figueiredo. RJ: 7 Letras, 2006); Viver com Barthes (com Vera Casa Nova. RJ: 7 Letras, 2005); Estéti- cas da crueldade (com Ângela Dias. RJ: Atlântica, 2004); Em torno de Jacques Derrida (com Evando Nascimento. RJ: 7 Letras, 2000).