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André Varela Remígio 1 , Anísio Franco 2 , Maria João Vilhena de Carvalho

No documento O Retábulo no Espaço Ibero-Americano (páginas 167-181)

Em Setembro de 1408, por remissão do foro ao Mosteiro de São Dinis de Odivelas, D. João I fez doação do território da Carnota, onde se achava implantada a antiga ermida de Santa Catarina, aos franciscanos da Observância para que eles, vindos de Alenquer, estabelecessem um oratório, nas «entranhas de um monte», rodeado de um «bosque», «vestido de arvores

silvestres, com que o cobrio a natureza», favorecido «com a corrente de um ribeiro» (Amor de Deos, 1740: 159-164).

Ainda durante o reinado de D. João I, a casa de Santa Catarina da Carnota recebeu a doação de doze colunas de mármore que, segundo as crónicas e a tradição4, o rei terá tomado

no saque de Ceuta de 1415, e seriam depois colocadas no claustro.

Desde os meados do século XV registam-se, assim, notícias consistentes sobre a existência de um «Oratório» composto de igreja, coro, claustro, enfermaria e celas dentro da cerca - seguramente erguida em 1475 -, coincidindo com os privilégios de um servente e de um mamposteiro concedidos pelo rei, que documentam a continuidade de obras durante toda a segunda metade do século XV5.

No período da vigararia de Frei Henrique de Leiria, em torno de 1450, a igreja já se encontrava construída. Sob a direcção do vigário Frei Lourenço de Azambuja, estava preparada para receber retábulo no altar-mor, com pintura de Francisco Anes de Leiria, filho do pintor régio João Afonso, marcenaria de Mestre Simão, carpinteiro, e trabalho do ajudante Cornélio, mancebo e «mestre frexeiro» (Amor de Deos 1740; Viterbo 1906: 8; Afonso 2008: 105), segundo a letra daquela que ainda hoje constitui informação documental rara para a história da retabulística quatrocentista em Portugal. A esta mesma campanha do retábulo da capela-mor deverão ainda associar-se as pinturas murais do Calvário6, do Corpo de Deus, São Gregório e

1Conservador-restaurador de escultura e talha dourada.

2Historiador da Arte e Conservador das Coleções de Escultura e Vidro do Museu Nacional de Arte Antiga. 3Historiadora da Arte e Conservadora da Coleção de Escultura do Museu Nacional de Arte Antiga. 4Analisadas por Maria de Lurdes Rosa 2012: 149.

5ANTT, Chancelaria de D. João II, Livro 6, fol. 102 e fol. 105: Privilégios para um servente e para um mamposteiro ao Convento de Santa Catarina da Carnota, de 16 de Julho 1482.

6A referência ao Calvário pintado na parede da capela-mor poderá aproximar este conjunto pictórico da Carnota ao fresco com o mesmo tema descoberto na capela-mor de São Francisco de Leiria (Afonso 2008: 105).

cenas da Paixão mencionadas nas crónicas, tematicamente relacionadas com a espiritualidade franciscana quatrocentista em que o culto sensorial das imagens e a contemplação eucarística conheceram especial relevância. Este convento sobrevive até ao século XVI, quando se edifica o denominado “Convento Novo”, tendo obras documentadas desde 1511, seguramente empreendidas com retemperado fôlego após a ruína provocada pelo terramoto de 1531. A obra nova, incluindo a (re)construção da cabeceira, coro, capítulo, enfermaria, dormitório, livraria, hospedaria, portaria, foi patrocinada por António Correia Baharem (1490-1566), padroeiro do convento que ali recebe sepultura, em 1566. O padroado e a protecção teriam continuidade, confirmados pelos descendentes, em 1603, com a colocação do brasão de armas da família sobre o arco da capela-mor.

Após a morte de Correia Baharem, o favor de outras personagens de elevada condição social fará acrescentar novos elementos para a edificação moral da comunidade com base nas imagens. Irão ser na sua maioria modeladas, perfazendo um programa devocional paulatinamente constituído no sentido da experimentação da ascese mística vivida através da contemplação da figuração no barro, escolhido enquanto matéria primeva da criação e que, pela sua pobre natureza, será doravante, e por sistema, a matéria-prima usada nos conventos franciscanos.

Do programa construído em Santa Catarina da Carnota até ao século XVIII podem extrair-se alguns momentos marcantes, de que ainda se conservam excertos que permitem determinar campanhas diferenciadas.

Um flamengo «perito na arte da escultura» (Amor de Deos 1740), estante no convento durante a permanência do cortesão, poeta e místico D. Manuel de Portugal (1516-1606), à roda de 1557, terá delineado pelo menos as cenas de Cristo no Túmulo e de São Francisco recebendo

os estigmas. A última ainda existe, tendo passado a figurar no segundo pórtico da entrada do convento. Uma “isolada” cabeça de Cristo coroado de espinhos, técnica e artisticamente do mesmo período, pressupõe que foram executados outros Passos narrativos da Paixão.

Em 1569, a rainha D. Catarina e a infanta D. Maria (1521-1577), última filha do rei D. Manuel, refugiaram-se da grande peste que assolou Lisboa na vila de Alenquer, de onde terão partido em romaria à Carnota. Da piedade da infanta resultou a doação de um presépio com figuras de vulto modeladas individualmente, que constituem o mais antigo documento material de um conjunto da cena da Natividade esculpido em barro conservado no território português do qual, embora desmantelado, se conhecem alguns fragmentos figurativos.

Com o cenóbio integrado na Província de Santo António dos Capuchos desde 1568, todo o último quartel do século XVI assistirá a novas obras e benfeitorias. Entra em cena Frei Francisco dos Santos, franciscano, «natural de Vizeu» (Amor de Deos 1740: 175), a quem coube a responsabilidade da concepção de imagens que irão completar o programa antes iniciado, com um Santo António (depois colocado a par do São Francisco recebendo os

estigmas, no pórtico), e as imagens destinadas às ermidas do Monte Sinai, da Ressurreição, do Monte Calvário, de São Jerónimo, de Santa Maria Madalena ou à de São Pedro na Cova, a que ainda se juntará o episódio em que a figura monumental de Santa Catarina domina os seus carrascos no momento do martírio e que, desempenhando a sua função de orago, ocupará o grande nicho que antecede a entrada do edifício conventual.

De todo o historial exposto retêm-se várias orientações com sequência no futuro da casa dos frades menores. Em primeiro lugar, a fixação do barro cozido como a matéria preferencial

O RETÁBULO DE SANTA CATARINA DA CARNOTA: PRELÚDIOS PARA A IDENTIFICAÇÃO […]

para a concretização das campanhas em que a escultura de vulto assume lugar preponderante, tão cedo quanto o século XVI, o que pressupôs inevitavelmente o domínio das tecnologias de modelação, cozedura e construção das imagens para além do acesso e da disponibilidade da matéria-prima. Depois, a estadia in loco de mestres escultores, relativamente a alguns dos quais se referencia uma ligação efectiva aos franciscanos. Mais ainda, a fixação paulatina de directrizes dominadas pela necessidade da imagem enquanto suporte material para realizar o caminho ascético, na imitação de Cristo, na fuga eremítica do mundo terreno ou na comunhão do homem com Deus através do modelo dos mártires como Santa Catarina, exemplo máximo da virtude anunciado em metáfora e, quase simbolicamente, na invocação escolhida no momento fundacional.

A obra do século XVII pauta-se pelos pressupostos enunciados. O retábulo que então irá ocupar a parede testeira da capela-mor concentra a atenção do contemplador no essencial da mensagem (Fig. 1).

Fig. 1 - Retábulo-mor do Convento de Santa

Catarina da Carnota, Frei Francisco de Santa Águeda e Frei Jorge dos Reis.

(Fotografia de Anísio Franco)

Ali se faz uso do barro para narrar a comunhão de Santa Catarina no seu casamento místico com Jesus Cristo, testemunhado pela Virgem Maria, celebrado pela música dos anjos, inserida cenograficamente em arco triunfal (Fig. 2).

Juntam-se-lhe os testemunhos das sagradas relíquias dos santos mártires, na presença das efígies dos santos ligados à Ordem dos Menores Franciscanos, presidida pela glória da Virgem, eterna Rainha dos Céus. Pela primeira vez, verifica-se a utilização compósita de matérias múltiplas na mesma estrutura, adequando a aplicação à função requerida.

Fig. 2 - Casamento Místico de Santa

Catarina, barro cozido, dourado, estofado e policromado, Frei Jorge dos Reis.

(Fotografia de Anísio Franco)

A campanha retabular ficou bem documentada pelos cronistas da ordem. Uma minuciosa descrição, oferecendo-nos todos os dados, anota o significativo acrescentamento da via ascética construída na cerca, com o empreendimento de avultados trabalhos de remoção de terras e a construção de socalcos para a instalação de novas ermidas com suas imagens e narrativas figuradas, para além da obra no interior do edifício do convento. Segundo Frei Martinho do Amor de Deus, Frei Francisco de Santa Águeda foi eleito guardião, após 1653. Santa Águeda é identificado como «Religioso de grande engenho, e habilidade», apresentado como tendo feito os santos com as suas mãos e pintando-os, humildemente auxiliado na obra por um contingente de oficiais e trabalhadores externos. Ele próprio deixará memória da envergadura da campanha, reproduzida um século depois nas palavras do cronista: «Nas mais

das semanas andavam trabalhando quinze, e vinte homens; a todos se dava de comer e meyo jornal. Aos officiaes a tostaõ, e quatro vintens; e aos trabalhadores a dous vinténs» (Amor de Deos 1740: 206-207). Uma segunda personagem, «frade leigo», acompanhava Frei Francisco de Santa Águeda. É ainda a memória do mesmo guardião Santa Águeda quem lhe atribui a obra do retábulo do altar-mor da igreja, junto com os dois colaterais, «os Santos delles» e as imagens do Calvário colocadas sobre o arco cruzeiro. Guilherme João Carlos Henriques, proprietário da Carnota no início do século XX, registou uma inscrição na imagem de Cristo Crucificado do conjunto do Calvário onde7podia ainda ler-se «LEIGO / FES. — F. JORGE—D— BRA/GA

ESTAS IMAGES / E RETABOLOS» (Henriques 1946).

O RETÁBULO DE SANTA CATARINA DA CARNOTA: PRELÚDIOS PARA A IDENTIFICAÇÃO […]

Da descrição quase romanesca da particular conjuntura da obra seiscentista, tal como apresentada pelos textos encomiásticos da crónica franciscana e pelas reconstruções narrativas da história local, é importante reter a passagem de Frei Francisco de Santa Águeda pela guardiania do convento, sucedendo a Frei Diogo de Penalva, a sua identificação como artista, junto com a menção a Frei Jorge de Braga. Na realidade, a dupla de parceiros Santa Águeda e Jorge de Braga, ou dos Reis como também surge referido, foi notada a trabalhar em conventos franciscanos diversos, nomeadamente em casas da Província de Santo António mais tarde incorporadas na Real Província de Nossa Senhora da Conceição, nas regiões do Minho, Trás- os-Montes e Beira Alta, como revelado por Ana Paula Figueiredo ao analisar o «modo capucho» da arquitectura8. Deslocando-se de Norte para Sul numa verdadeira azáfama

operativa, encontrá-los-emos de algum modo relacionados com a traça e execução de retábulos e de imagens em Santo António de Viana da Foz do Lima (retábulo hoje em Melgaço, entre 1627-1629), Arcos de Valdevez, Ponte de Lima (Imaculada Conceição, c. 1629), São Francisco de Torre de Moncorvo9, Santo António de Serém, São Francisco de Orgens10, ou no retábulo

de origem não determinada reaproveitado em Santo António de Pinhel no século seguinte. Deste conjunto resulta uma tipologia de retábulo-mor bem característica na sua estrutura arquitectónica de base, variando apenas em pormenores para se coadunar ao local exacto de destino, e nos detalhes de ornato e iconografia adaptados a cada uma das invocações dos conventos franciscanos, podendo desde já questionar-se se esta tipologia não responderá a uma norma superiormente determinada para a aplicação de elementos de identidade em todas as obras dos frades menores.

Os retábulos são de planta rectangular, assentes em sotobanco, compostos por três andares com banco, corpo de um só registo e coroamento semicircular que acompanha a linha da abóbada. Dividem-se, acima do embasamento, em três tramos separados por sistema de pilastra e coluna sob arquitrave, assentes sobre mísulas, quase sempre com colunas compósitas de fustes estriados, ou estrigilados, a 2/3. O tramo do centro é monumentalizado com arco triunfal onde encaixa o trono eucarístico e/ou a peanha para imagem, ou apenas a estrutura de planta poliédrica do sacrário. Nos tramos laterais desenham-se nichos de fundo plano com mísulas adossadas para colocação de imagens exentas. O embasamento é constituído, em regra, por predelas rectangulares com pintura ou simples relevos ornamentais. O ático ou coroamento prolonga a tripartição dos tramos, apresentando os respectivos panos também divididos por sistema de pilastra e coluna, sendo o central de maiores dimensões. Rematam, os dois laterais em aletas, e o central em frontão semicircular. Sobre a cimalha, aos ângulos, pirâmides de planta quadrangular, por vezes urnas, fecham a máquina. Nestes exemplos retabulares, as arcarias são 8Figueiredo 2008, vol. I, 220: «[Frei Francisco de Santa Águeda] responsável pelos imóveis de Viseu e de Serém, onde

fez as adaptações necessárias à planta de Mateus do Couto, tendo sido o responsável pela criação do Modo Capucho austero e que marcaria as construções da Província de Santo António e a das primeiras casas da Conceição, sendo possível que tenha intervindo em outros edifícios, não documentados; revelou-se particularmente versátil, acumulando outras funções, surgindo como pintor-dourador, no mesmo Convento(…)».

9José 1760, Liv. III, Cap. IV, 313 – 315: «(…) porém no anno de 1670 se transladou para a Capella Mór, (…) e desde

o dito anno se lhe mudou a invocação, e por se colocar nelle huma formosíssima Imagem de Maria Santíssima(…), se ficou

chamando da Conceição. Foi fabricada pelo Fr. Jorge dos Reis, natural de Braga, como outras muitas semelhantes, que se achão em vários Conventos da Provincia».

10Imagem referida por Frei Agostinho de Santa Maria como sendo de «(…) de excellente escultura de madeyra, & de

rara fermosura, obrada por hum Religioso da mesma Provincia, insigne Escultor, & natural de Braga, & o mesmo que obrou a milagrosa Imagem de Nossa Senhora do Amparo da Casa nova, junto a Via Longa, termo de Lisboa (…) Não consta

certamente o anno em que foy feyta, mas haverá pouco mais de sessenta annos neste que corre de 1715»(cf. Santa Maria 1716, Tomo V, liv. II, tit. XX, 220).

por regra construídas em volta perfeita. No ornato, sistematicamente executado em talha baixa, à excepção de salientes querubins infantis multiplicados na decoração de todos os elementos arquitectónicos, repetem-se motivos vegetalistas, heráldicos da ordem dos frades menores ou de cariz geométrico (as meias circunferências dispostas em escamas, por exemplo).

À mesma parceria de Frei Francisco de Santa Águeda – Frei Jorge de Braga ou dos Reis imputa-se a difusão de um tipo de imagem da Imaculada Conceição, rastreado tanto nos conventos mencionados acima, como num fragmento de imagem ainda existente na Carnota. São composições piramidais, com a Virgem Maria erguendo-se hierática e de mãos postas sobre o orbe emoldurado pelo crescente lunar invertido (marcado a meio pela inserção volumosa da serpente) e uma teoria de querubins. O entalhe escultórico é fluído, largo, movimentado em planos angulosos nos panos frontais do vestido e de volumes mais densos no manto, apesar do efeito de quebradura, soltando-se em ritmos certos pela farta cabeleira ondeada que envolve a figura desde a cabeça até meio do tronco. Os rostos virginais são repetidamente pouco expressivos, com formato largo e compleição roliça, as feições pontuadas pelos olhos ligeiramente semicerrados, queixos pequenos e salientes em redondo, lábios bem delineados mas pouco rasgados, olhos bolbosos, linhas finas das sobrancelhas que prolongam os eixos dos narizes, pescoços cilíndricos e deixados à vista acima dos decotes concebidos com todo o requinte e natural representação das vestes. Nos querubins regista-se, ao invés, uma definitiva opção por representações ao natural: os rostos com tipos idênticos aos das figuras femininas ganham em expressão infantil e mostram o invariável tique da reunião dos cabelos num generoso caracol levantado ao centro da cabeleira. Se na sua essência compositiva e no valor icónico estas imagens da Imaculada retomam um protótipo esculpido pela primeira vez pelo espanhol Gregório Fernandez (1576-1636) para o convento dos frades menores de Valladolid, c. 161611, replicado ad infinitum na imaginária devocional ao longo de todo o século XVII no

mundo ibérico e nas suas extensões geográficas imperiais, a morfologia do esculpido e as particulares definições dos panejamentos das vestes, junto com tipos de rostos da Virgem Maria e dos querubins anunciam a particular execução de uma oficina que pode agora afirmar-se resultar da parceria de Francisco de Santa Águeda com Jorge dos Reis.

Seguindo a tipologia arquitectónica pré-definida, de modenaturas estruturalmente bem traçadas, o retábulo de Santa Catarina da Carnota apresenta algumas variantes evidentes que resultam da alteração funcional imposta pela transformação em retábulo-relicário para albergar o património simbólico das relíquias e da inusitada conjugação de materiais. Estaria seguramente concluído após 1653, data em que o breve papal de Inocêncio X privilegia o culto de relíquias de São Sebastião, São Félix, São Maximiano, São Gregório, Santo Aurélio, São Faustino, Santa Margarida «e outros muitos Santos Martyres, que se collocaraõ na Capella

mor, onde se conservaõ com a mayor veneração»(Amor de Deos 1740: 215). Antes, em 1628, Urbano VIII expedira o breve de privilégio e indulgência plenária para a visita ao altar de Santa Catarina. Assim, entre 1628 e 1653, terá necessariamente ocorrido a encomenda e execução do retábulo. Em 1679, verifica-se a passagem do padroado conventual para a Casa do Infantado, devida à directa intervenção de D. Pedro II, que implicou a consequente aplicação das armas reais sobre o arco triunfal da capela-mor.

11Martín González 1983. Agnés le Gac já analisou a replicação dos modelos de Gregório Fernandéz na escultura associada a Frei Cipriano da Cruz, produzida em período imediatamente posterior (cf. Le Gac 2010-2011).

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Nas quatro pilastras compósitas que dividem os tramos do registo central foram abertos doze alvéolos oblongos, emoldurados por cartelas à flamenga, destinados aos braços e ostensórios-relicários enquanto, sob os nichos laterais das imagens, mais dois nichos vazados albergam dois bustos-relicário de escultura exenta. Nas pilastras do registo superior foram introduzidas cariátides. A variante mais notória inscreveu-se no corpo central do retábulo, abatendo-se o arco triunfal – à maneira dos pórticos da arquitectura capucha do mesmo período – para receber a cena do Casamento Místico de Santa Catarina em escultura modelada em barro cozido, dourado e policromado.

As evidentes marcas de identidade na modelação das figuras da Virgem Maria, Santa Catarina, Menino Jesus e Anjos Músicos obrigam a procurar autoria. O nome de Frei Jorge dos Reis responde, em primeira análise, à concretização desta campanha. O «Frade Leigo» surge, como vimos, associado a diferentes empreitadas de outros conventos franciscanos e o seu nome é directamente relacionado com a obra de escultura quer das Imaculadas já referidas, quer com a de outras figurações. Na literatura, o seu nome é individualmente apontado em obras como o frontal de altar de Viana do Castelo (em Melgaço), onde o Ecce Homo, em baixo-relevo, é apresentado por Anjos, ou a Virgem do Amparo do Convento da Casa Nova (hoje na igreja de Nossa Senhora da Assunção, Via Longa, referida por Santa Maria 1716: 22012), obras cujo

paralelismo formal com as figuras do Casamento Místico de Santa Catarina da Carnota, é indubitável. A consonância das feições dos rostos, braços e mãos do Menino Jesus e da Virgem do Casamento Místico da Carnota com a imagem do Convento da Casa Nova é ainda acentuada pelo desenvolvimento hierático da figura da Mãe de Deus, tal como pelo lançamento dos panejamentos. Constata-se que Frei Jorge dos Reis trabalhava quer o barro, quer a madeira, mas mantinha nas suas esculturas a mesma identidade autoral. Nos dois casos foi executado um acabamento policrómico semelhante, verificando-se a aplicação de vidros coloridos em algumas partes do manto da Virgem que enriquecem a representação da Rainha dos Céus. As mesmas feições roliças e de carnações rosadas são repetidas sistematicamente nos anjos músicos e nos querubins do retábulo, e são idênticas às dos querubins presentes nas várias Virgens Imaculadas atribuídas a Frei Jorge dos Reis.

A distribuição e a volumetria dos Anjos Músicos da Carnota parecem ter-se repetido no desaparecido núcleo original do Presépio do Convento de Santo António dos Capuchos de

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