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A igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova: Uma síntese de permanências nacionais

No documento O Retábulo no Espaço Ibero-Americano (páginas 30-32)

Ana Rita Carvalho

2. A igreja do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova: Uma síntese de permanências nacionais

Construída entre 1649-169618, a igreja de Santa Clara-a-Nova foi projectada pela mão

de frei João Turriano19e, posteriormente, orientada por Mateus do Couto20. A planta apresenta

uma igreja de nave única composta a sul pela cabeceira, sacristia e corredores circundantes21e,

a norte, pela extensão referente aos coros, ocupando uma área idêntica à da nave e desenvolvendo-se em dois pisos, sendo o piso inferior organizado como uma igreja de três naves.22 As paredes que circundam a nave e os coros da igreja têm mais de três metros de

espessura, assemelhando-se a uma estrutura militar.23 Este tipo de arquitectura robusta e de

cariz bélico transmite um sentido de protecção e clausura personificando-se num gigante cofre relicário para protecção e guarda do túmulo da Rainha Santa Isabel.

A arquitectura da igreja consagra, tanto formal como esteticamente, uma síntese de permanências que se vêm a experimentar no contexto nacional. O esquema da nave apresenta uma organização próxima de um duplo quadrado, com recinto central abatido, remetendo para o conjunto de cinco igrejas do século XVI que Paulo Varela Gomes identifica como partilhando a mesma planta de estratégia quadrangular e diferença entre as cotas da nave e capela-mor24. A

nave ocupa uma extensão de 14 metros de largura, 27,5 metros de comprimento e 25 metros de altura, rematada por abóbada de berço. George Kubler constrói um paralelo entre a altura e o comprimento da igreja, com a nave de Santo Antão em Lisboa (1613-53), formando um particular módulo colossal.25 O autor faz também a ligação com os confessionários embutidos na parede

poente com a mesma estratégia registada na igreja dos Jerónimos em Belém (século XVI)26.

De frente para a cidade de Coimbra, prolonga-se por 90 metros de comprimento a única fachada da igreja, dando a ilusão de ser composta por uma nave gigantesca. Contudo, o que 17“(…) Santa Clara-a-Nova reúne muitas das mais características tendências nacionais da arquitectura portuguesa

posterior a 1500. (…)” George Kubler, A arquitectura portuguesa chã: entre as especiarias e os diamantes, 1521-1706 (Lisboa: Vega, D.L., 1988), 158.

18António Nogueira Gonçalves e Vergílio Correia, Inventário artístico de Portugal. Cidade de Coimbra (Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1947), 75.

19D. João IV encarrega o engenheiro-mor do Reino (subsequentemente é lente de matemática da Universidade de Coimbra) de executar o projecto para o novo mosteiro. Segundo Leonor Ferrão, o frade beneditino viu a sua planta ser executada nos iniciais dezanove anos sendo posteriormente transferida para as mãos de Mateus do Couto. Ferrão, “[Não] São rosas, Senhor…, 41.

20Mateus do Couto veio substituir frei João Turriano no seu cargo de “arquitecto e engenheiro do rei”, executando várias medições aos trabalhos que já se iam desenrolando no novo mosteiro, sendo que já se teriam iniciado as obras da igreja e sacristia em 1677, segundo medição feita, dando conta da conclusão do dormitório, cozinha e refeitório. Silva, "A construção

do novo mosteiro",36.

Podemos dizer que os trabalhos da igreja só se iniciaram após a conclusão das dependências mais urgentes e que correspondem ao período temporal em que o arquitecto Mateus do Couto esteve à frente do projecto. Apesar de seguir a planta de Frei João Turriano, foi-lhe expressamente incumbida a traça das abóbadas e do portal da igreja. Ferrão, “[Não] São rosas, Senhor…, 41-42.

21“(…) Estes corredores a rodear a capela-mor tornaram-se solução característica da arquitectura portuguesa da

Restauração(…)” Kubler, A arquitectura portuguesa chã, 157.

As medidas saídas do Concílio de Trento, que vieram intensificar as que já vinham a ser experimentadas desde as reformas implementadas por D. Manuel em Portugal nos conventos femininos, accionadas pelo Concílio de Latrão (1513-14), reflectiram-se nessa estratégia da sacristia com acesso directo ao exterior e corredores a rodear a capela-mor no sentido de interditar o acesso dos sacerdotes ao interior do espaço monacal. Paulo Varela Gomes, As igrejas conventuais de freiras

carmelitas descalças em Portugal e algumas notas sobre arquitectura de igrejas de freiras(Porto, 2000), 95, e Paulo Varela Gomes, “A Fachada Pseudo-Frontal nas Igrejas Monásticas Femininas Portuguesas.” In Conversas à volta dos conventos, 229- 242 (Évora: Casa do Sul Editora, D.L., 2002), 231-232.

22Kubler, A arquitectura portuguesa chã, 157. 23Kubler, A arquitectura portuguesa chã, 157.

24As cinco igrejas apontadas são: S. Vicente de Évora, Santa Maria de Estremoz, Misericórdia de Santarém, Santa Catarina dos Livreiros de Lisboa e a Sala dos Reis de Alcobaça. Gomes, Arquitectura, Religião e Política…, 46.

25Kubler, A arquitectura portuguesa chã, 157. 26Kubler, A arquitectura portuguesa chã, 157.

O RETÁBULO DA ESTIGMATIZAÇÃO DE S. FRANCISCO NA IGREJA DE SANTA CLARA-A-NOVA […]

vemos no exterior corresponde à nave, coros, cabeceira e sacristia da igreja e não a um espaço unitário. Essa extensão apresenta ritmos distintos conferidos através do uso e ausência de pilastras e janelas27. O exterior da secção correspondente aos coros é de linguagem simples,

apresentando dois registos de cinco vãos rectangulares, designadamente as janelas do coro alto e do coro baixo. A da nave da igreja é destacada pela aplicação rítmica de pilastras, desenvolvendo-se em duas alturas, sendo a inferior rasgada a meio pelo imponente portal e a superior aberta por cinco janelas correspondentes aos tramos da igreja, com intervalos iguais entre si. As seis pilastras intervalam-se com os vãos num espaçamento simétrico a igual distância com a excepção das duas pilastras centrais que limitam a perturbação arquitectural do portal28, dando a percepção de se encontrarem desalinhadas com os vãos superiores. Este

desalinho “maneirista”, como refere José Eduardo Horta Correia, entre vãos e pilastras já havia sido experimentado no Convento de Santa Helena do Monte Calvário em Évora (século XVI), por Afonso Álvares29, e em tantos outros exemplos da arquitectura portuguesa. Do mesmo

modo, o distanciamento entre as pilastras adquire paralelo com o ritmo do claustro de Diogo de Torralva no Convento de Cristo em Tomar (século XVI), como alerta George Kubler, na alternância entre os espaçamentos das pilastras30.

O interior da nave, de grande monumentalidade estrutural, faz a transição das paredes laterais para a abóboda, através de uma arquitrave que vai unificar todo o corpo, rasgando-se vãos no registo superior que iluminam o interior da igreja. Apresenta uma tipologia de “nave salão”, como a da igreja de S. Roque de Lisboa e que mais tarde vai influenciar igrejas como a do seminário jesuíta de Santarém (iniciada em 1675), a de Nossa Senhora do Cabo de Espichel (1701-1707) e a do Mosteiro de Arouca (1704-1718) prolongando-se, afinal, este sentido espacial em cronologias muito posteriores. A sua cobertura em abóbada de berço de caixotões vai ao encontro de modelos que lhe são próximos como a abóbada da igreja de Nossa Senhora da Graça (1555), do Colégio de Jesus (iniciado em 1598) ou na generalidade das igrejas colegiais de Coimbra, entre outros mais afastados temporal e geograficamente. O recinto dos fiéis é posicionado num patamar um a dois degraus abaixo do corredor que circunda toda a nave e que percorre as capelas circundantes, tal como já vinha a acontecer na igreja de S. Roque em Lisboa (1567-1586)31.

Em suma, a ânsia do rei na legitimação definitivamente portuguesa da posse do sepulcro régio e na afirmação da nova dinastia alastrou-se não só ao portal e dormitório mas também à estrutura arquitectural de toda a igreja, que absorveu uma síntese de influências nacionais. Muito embora estes modelos de tendências italianizantes já se tenham entranhado no contexto português, a arquitectura da Restauração não nasce isolada e funde em Santa Clara uma comunhão de continuidades condensadas no panteão que glorifica a Rainha D. Isabel. Contudo, como pode George Kubler afirmar que a igreja de Santa Clara-a-Nova está isenta de contaminações espanholas32se ela se ergue para veneração de uma Santa de sangue aragonês?

27O jogo entre pilastras e janelas divulgar-se-á pela arquitectura portuguesa como acontece na fachada do Mosteiro de Arouca (1704-1718). Kubler, A arquitectura portuguesa chã, 159-160.

28O eixo central na fachada conferido pelo portal e alinhamento das pilastras remete-nos para a ilusão de uma fachada frontal, levando Paulo Varela Gomes a designá-la como fachada pseudo-frontal. Gomes, “A Fachada Pseudo-Frontal …, 229-242.

29José Eduardo Horta Correia, Arquitectura portuguesa: renascimento maneirismo estilo chão (Lisboa: Presença, 2002), 66. 30Kubler, A arquitectura portuguesa chã, 157.

31Kubler, A arquitectura portuguesa chã, 157.

32O autor defende que “(…) em Santa Clara-a-Nova de Coimbra desaparecem todas as características espanholas. O

respeito espanhol pelas fórmulas académicas italianas nunca orientou o risco da igreja coimbrã.(…)” Kubler, A arquitectura

Fig. 3 - Interior da igreja do mosteiro de Santa Clara-a-Nova em Coimbra. 2014.

(Fotografia cedida por Anabela Carvalho)

No documento O Retábulo no Espaço Ibero-Americano (páginas 30-32)