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Diante da pintura imaculista que coroa o espaço sagrado da capela de Santa Ana, no edifício da Casa-Museu Luciano de Castro2, torna-se mais evidente o sentido das palavras que

definem o retábulo barroco como um discurso3. Atentando nos detalhes simbólicos do

conjunto retabular, o observador não pode deixar de interpretar o composto artístico como um reflexo demonstrativo das tensões que se debatiam no corpo social da época da sua construção.

Importa, porém, notar que a história do altar começou a desenhar-se muito antes de nascer o pequeno templo que o acolhe (Fig. 1). A capela integra o núcleo museológico tutelado pela Santa Casa da Misericórdia de Anadia, atualmente sediada no Palacete onde viveu José Luciano de Castro (1834-1914), líder do Partido Progressista que exerceu por diversas vezes o cargo de Presidente do Conselho de Ministros no período da monarquia liberal4. Na verdade, o palácio foi construído em 1860 por Alexandre Ferreira de Seabra

(1818-1891), advogado e autor do primeiro Código do Processo Civil Português. Nele viveu Luciano de Castro, casado com a filha do proprietário, colocando o edifício no palco central da sua vida política e familiar, ao longo dos conturbados anos da mudança de regime.

1Doutora em Literatura Comparada e Investigadora do CIEC/Universidade de Coimbra.

2 Cumpre agradecer à Santa Casa da Misericórdia de Anadia, em particular ao Senhor João Marques, a colaboração prestada durante a realização deste trabalho, permitindo a reprodução de imagens e o acesso privilegiado às informações disponíveis sobre a capela.

3Veja-se a definição de Pimentel (2002: 239): “conjunto de signos e imagens, destinados a transmitir uma mensagem, que encontra veículo adequado na arquitectura dos altares justamente num período em que a sociedade se habitua a sublimar nas coisas da religião a própria expressão da vida colectiva”.

4A casa-museu foi doada à instituição por determinação testamentária de D. Júlia Seabra de Castro, filha do notável estadista, perpetuando a memória do benemérito que interveio na fundação da irmandade. Sobre a história da Santa Casa da Misericórdia de Anadia, veja-se o estudo de Alegre (2008).

Fig. 1 - Vista geral da Capela de Santa Ana (Santa Casa da Misericórdia de Anadia),

retábulo do séc. XVII?, autor desconhecido. (Fotografia da autora)

Nessa época não existia ainda a capela, cuja primeira pedra só viria a ser lançada a 17 de março de 1945, a mando da benemérita D. Júlia Seabra de Castro. No interior do palacete, havia um pequeno oratório para uso da família, mas a intenção da herdeira era doar o espaço para nele poder ser acolhido um asilo assistencial, pelo que lhe pareceu conveniente construir um local em que os futuros utentes pudessem, com maior facilidade, aceder aos confortos religiosos da alma. Cumprindo a vontade da doadora, a Santa Casa da Misericórdia assumiu o encargo das obras e adquiriu parte da talha do altar-mor, que foi colocada por um artífice local, conhecido como António Diabo5.

Contrariando o plano inicial6, a capela do palacete exibe no seu altar um raro exemplar

de iconografia mariana, encaixado numa moldura de talha dourada tipicamente barroca. Na ausência de informações sobre a proveniência do conjunto, cumpre, pois, atentar nas suas características estilísticas para propor uma interpretação do seu significado artístico. Trata-se, claramente, de uma composição reveladora da evolução semântica do retábulo português, que, na sequência das diretivas pós-tridentinas, desempenhou o papel de suporte e enquadramento da imagem, com o intuito de atrair a atenção dos crentes (Alves, 1986: 45).

5Falecida a 11 de março de 1947, a filha de Luciano de Castro já não presenciou a benção do pequeno templo, erigido à esquerda do alçado principal. No dia do primeiro aniversário da morte de D. Júlia, o pároco da freguesia de Arcos sagrou a capela mas esta só mais tarde veio a cumprir a finalidade prevista, servindo os idosos do lar de terceira idade instalado nos terrenos do palacete. Veja-se a notícia publicada no Jornal de Notícias, a 13 de março de 1948 (página da Bairrada). De acordo com alguns apontamentos guardados no arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Anadia, a empreitada foi entregue a Luiz de Matos, sendo o madeiramento encomendado a Pinto de Aguim e a Amaro da Moita. Não foi possível colher elementos concretos sobre a eventualidade de o retábulo de Anadia não ser contemporâneo da pintura imaculista nele inserida; contudo, a sobreposição da moldura em determinadas zonas limítrofes da imagem pintada sugere uma adaptação imperfeita.

6A invocação de Santa Ana parece ter sido determinada pela mentora do singelo templo e talvez esteja relacionada com esse desiderato a imagem setecentista da avó de Cristo, esculpida em madeira estofada e policromada, que hoje pertence ao espólio do Museu.

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Fig. 2 - Retábulo da Capela de Santa Ana

(Santa Casa da Misericórdia de Anadia), séc. XVII?, autor desconhecido

(Fotografia da autora).

De facto, a difusão da talha dourada no nosso país ganhou particular relevância no último terço do século XVII7, sendo possível identificar alguns traços distintivos em relação

aos modelos do país vizinho, numa atitude de emancipação que espelha o momento político contemporâneo (González, 1987: 335-338). Nesta perspetiva, importa destacar alguns elementos do conjunto selecionado para ornamentar o espaço mais nobre da capela de Anadia, porque ostenta algumas características arquitetónicas que permitem sugerir uma datação aproximada para a sua construção (Fig. 2). Focando a atenção nas colunas salomónicas, cumpre lembrar que esta tipologia ganhou popularidade em Portugal a partir de 1670, talvez por intermédio da cultura espanhola, mas sem ser totalmente improvável a retoma de contactos diretos com a Itália na sequência da normalização das relações com a Santa Sé (Smith, 1963: 88). Adaptando o modelo do famoso baldaquino de Bernini, os artistas nacionais criaram uma marca de identidade autóctone, ao aplicar colunas torsas com seis ou sete espiras, cujo fuste é totalmente revestido por cachos de uvas, parras e aves, como se pode observar no altar sob escopo. Tendo em conta que o Barroco aposta na criatividade dos cenários simbólicos com criatividade, estas estruturas não podem ser encaradas como meros artifícios decorativos, uma vez que representam a ascensão da alma, ilustrando o percurso ascendente desde a base, 7Promoveu-se, então, a valorização da iconografia nos altares e, por isso, “o retábulo não se reduz à funcionalidade de resguardar as imagens, é portador de uma morfologia estrutural e decorativa com grande valor expressivo e narrativo, envergando o estatuto de ‘livro’ de mensagens bíblicas aberto à interpretação da assistência” (Eusébio, 2002: 38). Segundo o autor da primeira tentativa de sistematizacão cronológica das tipologias retabulares em Portugal, o uso dos magnificentes retábulos de talha dourada divulgou-se no território nacional por influência alemã e flamenga, através da Espanha (Bazin, 1953: 4). Para conhecer melhor as especificidades do uso da talha dourada no âmbito da arte barroca, veja-se a síntese de Serrão (2007).

radicada na esfera mundana, ao capitel, no plano superior8. Simultaneamente, as colunas

corporizam a firmeza dos valores católicos e as espiras ornadas com uvas, flores e seres alados aludem aos ciclos da vida, constituindo ícones da fertilidade, do sacrifício e da fugacidade da existência terrena (Eusébio, 2002: 47)9.

No retábulo do palacete em que viveu Luciano de Castro, tornam-se também visíveis outras características específicas da arte retabular no nosso país, como o remate de arquivolta, que muitas vezes surge repetido em arcos concêntricos, dispostos em torno do camarim central10. Os detalhes do ático, por sua vez, reproduzem copiosamente motivos fitomórficos11

e romãs, um ícone de profícua tradição bíblica que se distingue pela particularidade de conservar como coroa a própria flor, simbolicamente associada à perfeição divina (Barreira, 1622: 152-157). Este fruto representa a conformidade e a união, podendo ser interpretado como uma metáfora da necessária concórdia no seio da Igreja (Barreira, 1622: 144-151). Na parte central do ático, ressalta a presença de um escudo com um lírio gravado, suportado por dois anjos. Considerando o facto de esta secção do retábulo ser frequentemente reservada para colocar o brasão do responsável pela encomenda da obra, levanta-se a hipótese de se tratar de uma construção patrocinada pela Ordem da Imaculada Conceição12. Por outro lado, a inclusão

deste pormenor iconográfico pode justificar-se pela intenção de repetir enfaticamente um dos ícones imaculistas representados na pintura central, como adiante se explicará13.

Além disso, convém sublinhar que o composto retabular da capela de Santa Ana incorpora o sacrário no embasamento, ao nível do banco, fazendo eco das orientações pós- tridentinas que apelavam à integração desse elemento no núcleo central do altar-mor14. O

exemplar de Anadia, tal como se apresenta hoje, opta por uma planta plana, de corpo único e de um só tramo, seguindo uma tipologia que obteve um enorme sucesso no século XVII, porque facilitava a concentração dos fiéis num composto devocional monotemático (Lameira, 2005: 31). No lugar da tribuna, surge uma pintura a óleo sobre madeira, invocando a Imaculada Conceição de Nossa Senhora, que aparece como pólo aglutinador dos elementos simbólicos já aludidos. Refletidos na imagem maternal da Virgem, o paradigma virtuoso do lírio, o apelo à concórdia transmitido pela romã e a mensagem ascética veiculada pelas colunas berninianas

8“No interior de uma floresta delirante de acantos, pâmpanos, fénixes e anjinhos fazendo a colheita eucarística, encena- se o triunfo do dogma fundamental, num ambiente sui generis, emotivo e dramático, que constitui uma das criações mais originais da arte portuguesa” (Pimentel, 2002: 245).

9De acordo com o Tratado de significaçãoo das Plantas, as flores representam a esperança e a videira corresponde ao hieróglifo da alegria (Barreira, 1622: 17-26 e 183-189).

10Veja-se, entre outros, Lameira, 2005: 94-98.

11De acordo com a interpretação que o tratado de símbolos publicado pelo frade português propõe para as passagens das Sagradas Escrituras alusivas às folhas, estas devem ser entendidas como metáfora das palavras de Deus, podendo também significar as vicissitudes humanas (Barreira, 1622: 38-46).

12Fundada em Toledo por Santa Beatriz da Silva, a congregação religiosa imaculista foi aprovada pelo Papa Inocêncio VIII, no dia 30 de Abril de 1489, tendo adotado a regra de S. Bento e, mais tarde, a de Santa Clara. Em 1511, foi aprovada uma regra própria e passou a ser oficial a designação de Ordem da Imaculada Conceição. Sobre este assunto, veja- se a obra coordenada por D. José Alves (2013).

13Segundo Barreira (1622: 386-396), o lírio representa a pureza e a açucena (lírio cessem) simboliza as saudades e, em particular, a virgindade de Maria.

14 Na senda dessa diretiva, começaram a surgir criações cada vez mais monumentais, fomentando a valorização decorativa desse elemento a que se assistiu na passagem para o século XVIII. Dada a sua importância estética e litúrgica na vivência religiosa da sociedade do Antigo Regime, os retábulos desempenharam o papel de protagonistas no teatro da evangelização, porque constituíam um dos principais elementos de persuasão e de envolvimento sensorial dos fiéis que entravam nos templos (Lameira, 2005: 7). Assim se percebe a crescente complexificação dos recursos utilizados, sobretudo a partir da centúria de Seiscentos, quando passou a ser comum a conjugação das mais diversificadas técnicas artísticas, complementando a talha dourada com azulejos, mármores, embutidos, estuques, pinturas e esculturas.

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ganham um efeito ampliado. De acordo com esta perspetiva holística, torna-se evidente que, na complexa morfologia dos retábulos barrocos, “a estrutura e o figurino decorativo constituem um versátil suporte propagandístico dos preceitos dogmáticos que a Igreja pretendia universalizar” (Eusébio, 2002: 52).

Aceitando como data aproximada para a construção deste conjunto retabular as últimas décadas de Seiscentos, em conformidade com as características arquitetónicas já elencadas, a eleição da iconografia imaculista reveste-se de particular significado histórico e litúrgico. A forte expressão que o culto mariano conheceu desde os tempos mais remotos da Cristandade foi muito visível em Portugal, tendo-se desenvolvido uma riquíssima iconografia intrinsecamente ligada a este movimento devocional, no contexto da qual deve ser enquadrado o retábulo em estudo15.

A inscrição latina, a figura feminina com os pés sobre um monstro de sete cabeças e os símbolos que a circundam não deixam dúvidas de que o espetador tem sob os olhos uma imagem imaculista, ainda que seja um tema iconográfico sujeito a complexas oscilações artísticas (Osswald, 2011: 414). Não surpreende que os responsáveis pela capela de Anadia tenham levado para o espaço consagrado à mãe de Maria uma representação da crença na conceção impoluta da Virgem16; no entanto, convém lembrar que, na época proposta para a

composição da pintura, o dogma ainda não tinha sido reconhecido, sugerindo uma atitude reivindicativa perante a Santa Sé. É certo que a origem do enraizamento do culto mariano na cultura popular portuguesa remonta aos primórdios da fundação do reino, como atesta desde logo a designação antiga de Terras de Santa Maria17.

A 25 de março de 1646, quando ainda lutava pelo reconhecimento papal da independência de Portugal, D. João IV entregou a sua coroa a Nossa Senhora da Conceição e jurou defender a sua imaculada conceção, alegando que se sentia obrigado a cumprir a promessa assumida pelo Fundador. Ainda que a defesa do culto imaculista tenha sido uma causa também abraçada por Filipe III, o Restaurador empenhou-se em associá-la à Casa de Bragança18,

procurando congregar a nação em torno da Virgem e juntar-se a um movimento europeu.

15O culto mariano constitui um dos traços distintivos do Cristianismo, sendo conhecidas representações da maternidade de Maria pelo menos desde o século III, nas catacumbas romanas de Priscila (Lorente, 2002: 211). Sobre a iconografia de Nossa Senhora em Portugal, veja-se a recolha de Frei Agostinho de Santa Maria (1707-1723). Relativamente à evolução do culto mariano ao longo da história do pensamento teológico no seio da Igreja e seu reflexo nas artes, consulte-se, entre outros, os estudos de Pinto (2014: 16-73) e Duarte (2014).

16As origens desta crença remontam aos primitivos Padres da Igreja, mas conheceu um forte incremento na Idade Média. Um dos principais marcos foi estabelecido pelo Papa Sisto IV, em 1476, quando fixou a festa universal da Imaculada Conceição no dia 8 de Dezembro, criando um decisivo precedente para que essa doutrina começasse a ser aceite. São Nuno Álvares Pereira foi um forte instigador do culto imaculista em Portugal, tendo patrocinado a imagem do santuário mariano de Vila Viçosa. Os frades franciscanos, cartuxos e jesuítas manifestaram desde cedo o seu apoio a esta causa, mas os dominicanos contestavam, alimentando a controvérsia teológica mais importante da época barroca (Sobral, 1996: 146). No século XV, Sisto IV considerou a tese imaculista não herética; no entanto, Paulo V e Gregorio XV proibiram o culto imaculista em 1617 e 1622. Alexandre VII, por instância de Filipe IV de Espanha, declarou apoio à tese debatida com a bula Solicitudo omnium Eclesiarum (1661). Em 1708, a Imaculada Conceição foi declarada festividade obrigatória, embora tenha sido preciso esperar até 1854 para que a bula Ineffabilis Deus oficializasse essa verdade de fé.

17A devoção a Nossa Senhora está associada a episódios decisivos para a afirmação da autonomia nacional, tais como o pedido de proteção dirigido por D. Afonso Henriques à mãe de Jesus ou a construção do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, para agradecer o sucesso em Aljubarrota. Revela-se, portanto, perfeitamente natural que a figura protetora da Mãe celeste fosse invocada na sequência da Restauração da Independência e não será talvez irrelevante o significado político da defesa da tese imaculista nessa época.

18 Em 1617, Frei Egídio da Apresentação, lente de Coimbra, publicou a obra De Immaculata Beatae Virginis

Conceptionee nesse mesmo ano a Universidade reuniu em claustro pleno para manifestar a sua crença na Conceição Imaculada. Em julho de 1646, foi descerrada uma lápide comemorativa na Capela de S. Miguel para assinalar a vinculação a essa causa.

A discussão secular em torno do mistério da Imaculada Conceição e a inexistência de um relato evangélico especificamente sobre esse assunto tiveram como consequência uma extraordinária mutação iconográfica, que conta com diferentes símbolos codificados a partir de alegorias inspiradas em textos sagrados. O protótipo hoje mais divulgado tem por base uma formulação barroca, de acordo com um modelo gizado por Francisco Pacheco, na Arte de la

Pintura(1649)19, e depois cristalizado pelos artistas sevilhanos como Murillo, reconhecido como

uma referência na iconografia imaculista (Osswald, 2013: 401). A imagem de Anadia, com um ar infantilizado e as mãos em posição orante, corresponde globalmente aos preceitos enunciados no tratado barroco, pese embora se afaste da descrição apocalíptica mais convencional no século XVII, recuperando uma herança simbólica perpetuada pela tradição litânica.

As mais antigas representações pictóricas da Imaculada hoje conhecidas foram registadas em miniaturas quatrocentistas e em xilogravuras de incunábulos, reproduzindo a árvore de Jessé, o casto beijo de Santa Ana e São Joaquim na Porta Dourada de Jerusalém ou a chamada figuração tríplice de Santa Ana. Paralelamente, começou a circular a composição logo-icónica da virgem

Tota Pulchra, rodeada de símbolos litânicos e inscrições latinas, espelhando uma elaboração concetual de raiz medieval, amplamente veiculada nos livros de horas. Na verdade, de acordo com os dados hoje conhecidos, a primeira representação plástica do tipo Tota Pulchra, com inclusão da cercadura de emblemas litânicos, remonta a 1488, ano da construção da capela de Nossa Senhora na catedral francesa de Cahors (Réau, 1957: 81). Um dos mais antigos exemplos da associação destes motivos à Imaculada data de 1497, na igreja do Cerco em Artajona (Navarra), onde a Virgem surge rodeada de símbolos e inscrições, debaixo da legenda Tota

pulchra es amica mea et macula non est in te(Cant. IV, 7).

Esta composição segue o mesmo modelo reproduzido na ilustração de Horae

Intemeratae Virginis Mariae secundum usum Romanum (1503), impressas em Paris por Antoine Verard, e tornou-se, depois, muito comum em missais e ofícios da Virgem. Os fundamentos bíblicos da Imaculada Conceição passaram, então, a ser representados através de símbolos pintados à volta da figura mariana, complementados por cartelas alusivas às respetivas passagens das Sagradas Escrituras. Esta alternativa teve grande sucesso junto do público e recebeu o suporte teórico do jesuíta Jan van Meulen (Iohannes Molanus), um conhecido artista flamengo, que muito contribuiu para a definição da iconografia hagiográfica pós-tridentina com o tratado De picturis et imaginibus sacris (Lovaina, 1570).

Sobre o aproveitamento ideológico da iconografia imaculista na propaganda restauracionista, veja-se Sobral (1996: 145-158) e Osswald (2013: 400-401).

19O teórico sevilhano descreve a Purissima concepcion de nuestra Señora nestes termos: “en la flor de su edad de doze a

treze años, hermosissima niña, lindos i graves ojos, nariz i boca perfetissima, i rosadas mexillas, los bellissimos cabellos tendidos de color de oro, enfim cuanto fuere possible al umano pinzel”. Defende, pois, que a Imaculada deve ser pintada sem o menino nos braços, como se fosse ainda criança, envergando túnica branca e manto azul (como apareceu a Santa Beatriz da Silva), circundada por um sol ovalado e coroada com doze estrelas. Debaixo dos pés, o quarto crescente com as pontas para baixo, sobre um globo adornado de anjos, como descreve São João no Apocalipse, 12, 1-4 (Pacheco, 1649: 481-483). No barroco europeu, as imagens imaculistas tiveram uma populariadade excecional entre os pintores de renome como Tiepolo, Velázquez, Francisco Herrera, Roelas, Sánchez Cotán, El Greco, Cajés, Zurbarán, Ribera, Valdés Leal, Murillo e seus discípulos. Todos procuraram seguir as indicações teológicas, contribuindo para persuadir Roma a reconhecer o dogma já aceite pela devoção popular.

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As invocações litânicas sofreram várias oscilações formais, mas o texto de Loreto, fixado pela Bula Reditturi do Papa Sisto V em 158720, foi adotado nos rituais de culto das festas

da Virgem, reproduzindo parte dos símbolos tradicionalmente ligados à representação da Tota

Pulchra. Por conseguinte, as cinquenta invocações dedicadas à Mãe de Cristo passaram a estar gravadas na memória dos fiéis, sendo facilmente identificadas como possível modelo dos programas iconográficos. Importa também lembrar que este tipo de simbologia tornou-se frequente nas gravuras explicativas usadas pela pedagogia jesuíta, como exemplifica a proposta do gravador holandês Cornelis Cort (1567), apontada como fonte de inspiração dos artistas plásticos portugueses (Sobral, 2004: 396). Foi também muito divulgada, entre os artistas

No documento O Retábulo no Espaço Ibero-Americano (páginas 91-105)