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Angelologia no Gênero Literário Apocalíptico

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2.2 DECIFRANDO O FUTURO MEDIANTE FACTUAL PRESENTE

2.2.3 Angelologia no Gênero Literário Apocalíptico

Adentrar a angelologia veterotestamentária, através do livro de Daniel, nos permite compreender a estrutura organizacional elaborada em torno da concepção dos seres celestiais, pela observação de Hannah (1999, p. 29) “the authors of the apocalypses often assert that the angels are organized into a hierarchy” e cada um assume uma função específica mediante sua posição hierárquica.

É desafiador dialogar a temática dentro do próprio Antigo Testamento, pois o mesmo, ao longo do tempo apresenta variações da percepção acerca dos anjos, assim “na remota literatura do Antigo Testamento, os anjos figuram como mensageiros de Deus” (ROWLEY, 1980, p. 56).

Porém transformações culturais modificaram a forma de perceber os anjos, ganhando traços diferentes nas suas funções e nos nomes atribuídos a eles, dessa forma Cohn (1996, p. 218) afirmou que:

Agora, quando se comunicava com um apocalíptico, sempre recorria a um intermediário, um anjo. Embora os anjos não fossem desconhecidos na Bíblia hebraica, é apenas nos apocalipses que eles se tomam atores principais. Ali eles acompanham e guiam os apocalípticos em suas excursões visionárias, esclarecem o sentido das visões e são a garantia da própria veracidade das visões.

Como exemplifica Hannah (1999, p. 47), tendo em vista que “in the Book of Daniel, Gabriel interprets a vision for Daniel (8,15ff)” e assim, evidencia-se a personificação através da atribuição do nome, este status ganhará repercussão na literatura neotestamentária, pois em Lc 1,19-26 há um resgate da tradição daniélica.

Outro livro contemporâneo ao de Daniel, I Enoch apresenta figuras angelicais dotadas de personalidade e que interagem com o visionário, uma delas é Miguel, o interprete que juntamente com “He, Uriel, Raphael, or Raguel, guide Enoch on each of his various journeys described in 1En 21-37” (HANNAH, 1999, p. 47), Miguel também vai ser citado em Dn 10,13.21; 12,1 e resgatado pelo redator apocalíptico em Ap 12,7.

Dessa forma, o mensageiro ou anjo é elemento comum nas viagens celestiais, como vimos Enoque foi conduzido por Uriel aos espaços celestes, e assim, na medida em que explorava o lugar dos anjos caídos foi acompanhado por outros anjos (1En 17,1; 12,4; 15,10), fato recorrentes nos textos de Ascensão de Isaías (6,13), Testamento de Levi (2,2; 5,1), 3 Baruch (1,8) e no Testamento de Abraão (8,1-3). (SCHIAVO, 2005, p. 122)

O modo como são vislumbradas as estruturas celestiais por João de Patmos (Ap 4,2-5), contendo toda indumentária de anjos, do trono, medo, tremor, adoração, audição e revelação. No livro dos segredos de Enoque (2En 24,1-3) já fora vivenciada essa experiência, assim como quando Isaias foi levado ao firmamento do sétimo céu pela voz que ouviu (As Is 9,1-2) protagonizou a experiência relida em apocalipse.

Portanto percebe-se de forma latente a influência de visionários apocalípticos, como Enoch, Baruch e Daniel para o desenvolver do apocalipcismo judaico ao passo que figuras importantes, como os citados acima, ganharam o respeito dos judeus por suas previsões do futuro:

Em Daniel, há indicações de que esse povo é formado pelos judeus que seguiram os ensinamentos dos “sábios”, ou seja, de visionários tais como o autor do Livro de Daniel. Com esses ‘sábios’, eles terão aprendido a técnica da resistência não-violenta; mantendo-se firmes sob a perseguição, terão passado por uma purificação e um refinamento interiores, de modo a se tornarem “alvos”. (COHN, 1996, p. 228)

Esse universo simbólico da literatura apocalíptica ocorre também com Ezequiel, quando ‘os céus se abriram’ e ele teve visões de Deus (1,1; 3,14), diante dessa experiência a mão do Senhor ‘pousa sobre ele’ indicando a possessão divina. Novamente enfatizada em Ez 3,24 quando “o espírito entrou em mim e me pôs de pé”8evidenciando assim o princípio da visão apocalíptica e permitindo afirmarmos que

o texto de Ezequiel é proto-apocalíptico, contendo noções do êxtase e de como ser levado para fora de si. (SCHIAVO, 2005, p. 118)

Consideramos assim que o João do apocalipse não foi o primeiro a relacionar a guerra escatológica com a situação presente de sua audiência, seus antecessores vão provocar a certeza de que “Deus era capaz de livrar os homens que confiam nele e obedecem à sua vontade” (ROWLEY, 1980, p. 56) fomentando assim a esperança apocalíptica.

Em diálogo com Cohn (1996, p. 277) reconhecemos que “muitos trechos são traduções diretas da Bíblia hebraica, além de haver mais de trezentas referências aos livros de Daniel, Isaías, Segundo Isaías, Jeremias, Ezequiel e Zacarias”, mais isso não qualifica o livro do Apocalipse como uma mera cópia.

Por mais que algumas passagens do livro de Apocalipse manifestam tal relação, como as descritas por Hannah (1999, p. 123-24):

Revelation 4-5, clearly dependent upon OT (Isa. 6; Dan. 7.9-10) and Jewish apocalyptic (1En. 14; 39.12-40.10; 2En. 20-22) conceptions, describes a heavenly throne room full of angels whose primary purpose is to render unceasing worship to God.

É preciso reconhecer o caráter profundamente cristão da obra literária, dado que “tudo o que aproveita da Bíblia hebraica é reinterpretado em sentido cristão, integrando-se a uma visão de mundo cristã.” (COHN, 1996, p. 277) e ressignificado para as perspectivas do da cosmovisão das comunidades cristãs originárias.

Devido a Igreja primitiva enxergar na sua própria essência uma congregação escolhida para vivenciar os últimos dias e assim estavam sendo preparados, mediante um caminho doloroso, para em breve receber o reino de justiça que seria instaurado por Deus.

Por fim e no interesse de relacionar os títulos autodesignados pela comunidade cristã primitiva aos quilombolas, podemos, com certa cautela, propor a comparação com os termos utilizados para categorizar as comunidades quilombolas, pela observação de Cohn (1996, p. 272) ao organizá-los, descreve:

O título "congregação de Deus", adotado pela Igreja, possuía conotações similares, pois era um termo tradicional para os "remanescentes redentores" que seriam revelados com a vinda do reino. Do mesmo modo, o termo ekklesia designava, na época, o companheirismo dos eleitos no momento em que "esta época" estava prestes a dar lugar à "era vindoura”.

E assim revelar que ‘ekklesia’ não é somente uma assembleia que reúne pessoas com o mesmo interesse, mas também uma comunidade de remanescentes, como no caso dos quilombolas, todos aqueles que sobreviveram aos diversos mecanismos de perseguição e demonstraram resistência.

O poder que imperava, quer seja Romano para os cristãos ou escravocrata para os negros, produziu meios para dizimar estes grupos minoritários. Mesmo assim, diante de todas as adversidades, fincados em suas crenças, buscaram em subterfúgios simbólicos forças para permanecer vivos.

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