• Nenhum resultado encontrado

3. O princípio de probidade processual no Código de Processo Civil de 197

3.6. Contempt of Court

3.6.2. Anglo-saxão

É comum se destacar, entre os autores brasileiros, que o art. 14, parágrafo único, do Código de Processo Civil provém da influência da Common Law, mais especificamente do contempt power atribuído aos magistrados daquele sistema520.

Não obstante a inovação mereça aplausos, a distância que separa o similar nacional do seu modelo original é maior que o Atlântico.

O Contempt of Court representa “um ato de desobediência ou de falta de respeito diante de um órgão judiciário, ou de obstrucionismo a determinado desenvolvimento

518

VAZ, Paulo Afonso Brum. O contempt of Court no novo processo civil brasileiro. Revista de processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, a. 29, n. 118, nov./dez. 2004, p. 162-3. No mesmo sentido, MACHADO, Hugo de Brito. Descumprimento de decisão judicial. Direito Federal – Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil. Niterói, Impetus, AJUFE, a. 21, n. 70, abr./jun. 2002, p. 218.

519 GRINOVER, Ada Pellegrini. Paixão e morte do contempt of Court brasileiro (art. 14 do Código de Processo

Civil). In: ______. O processo: estudos e pareceres. São Paulo: DPJ, 2005, p. 165. No mesmo sentido: “A exigência da multa em se tratando de contempt of court deve ser imediata, não se justificando a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado, principalmente se ela visa provocar o cumprimento do provimento mandamental” (CERQUEIRA, Luís Otávio Sequeira de. Litigância de má-fé em mandado de segurança. In: BUENO, Cássio Scarpinella et al. (org.). Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança: 51 anos depois. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 531).

520 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Processo de conhecimento – Lei n. 10.358, de 27 de dezembro de 2001. In:

JORGE, Flávio Cheim; DIDIER JÚNIOR, Fredie; RODRIGUES, Marcelo Abelha. A nova reforma processual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3, 12. Na jurisprudência, antes da reforma, já se postulava: “a protelação do cumprimento de decisões manifestamente razoáveis e bem lançadas está a justificar a introdução, em nosso ordenamento jurídico, de instrumentos mais eficazes, a exemplo do contempt of court da Common Law” (REsp 235.978/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 07.11.2000, DJ 11.12.2000, p. 209).

de um procedimento judicial”. Logo, é visto como ofensa “à autoridade do próprio povo e não apenas aos servidores da lei, que ele emprega na sua obra de governo” 521.

A concepção anglo-saxã se fundamenta no respeito às instituições e na reprobabilidade social das ofensas à autoridade das Cortes, razão pela qual o contempt power é considerado um “poder intrínseco do Judiciário”522.

Como informa Marcelo Lima Guerra, embora o contempt power atualmente se encontre previsto em statutes, seu fundamento jurídico não provém dos textos legais, mas da “própria instituição do Poder Judiciário” 523. Trata-se de “algo inerente ao exercício da administração da Justiça nos países da common law”524.

Nas palavras de Michelle Taruffo, o contempt power é

uma arma extremamente eficaz e versátil: eficaz pela sumariedade e pela imediatidade do procedimento, e também pela intensidade das sanções civis e penais que enseja; versátil porque não existem definições precisas dos comportamentos sancionáveis, de modo que o juiz é livre na individualização das espécies de contempt destinadas a serem reprimidas525.

Praticada a conduta desrespeitosa in facie curiae, a Corte deve reprimi-la sumariamente. Já o constructive contempt, praticado fora do âmbito da Corte, requer “maiores formalidades para ser punido”526. Conforme narra Flávia Zanferdini,

pertencem aos casos de constructive contempt a desobediência às ordens, resoluções e decretos emitidos por um tribunal na direção de um processo, bem como as interferências explícitas à autoridade do tribunal, mas que não são cometidas em sua presença, como os ataques às testemunhas, ou contra pessoas e coisas sob sua jurisdição e, ainda, os casos de censura efetuada fora da via judicial, por atuação, por exemplo, por meio de publicações527.

A doutrina costuma diferenciar, ainda, o Contempt of Court civil e o criminal. O primeiro consiste “na omissão de certo comportamento, prescrito pelo tribunal, a favor de uma das partes”; o segundo se perfaz pela “ofensa à dignidade e à autoridade do Tribunal ou de seus funcionários, gerando obstáculo ou obstrução ao processo”528. No primeiro caso se

521

MALLOR, Jane P. Rimborso degli onorari di difesa come sanzione per l’abuso del processo. In: DONDI, Angelo (org.). Avvocatura e giustizia negli Stati Uniti. Bologna: Il Mulino, 1993, p. 439.

522 Ibidem.

523 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 90. No mesmo

sentido, HAZARD JR., Geoffrey C.; TARUFFO, Michele. American civil procedure: an introduction. New Haven: Yale University Press, 1993, p. 204.

524 BUENO, Júlio César. Contribuição ao estudo do contempt of court e seus reflexos no processo civil brasileiro. 2001. Tese (Doutoramento em Direito Processual Civil) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p. 273.

525

TARUFFO, Michele. Il processo civile “adversary” nell’esperienza americana. Padova: CEDAM, 1979, p. 27. No mesmo sentido, VÉSCOVI, Enrique. Teoría general del proceso. 2. ed. Bogotá: Temis, 1999, p. 39.

526 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 94. 527

ZANFERDINI, Flávia de Almeida Montingelli. Op. cit., p. 82.

528 ASSIS, Araken de. O contempt of Court no direito brasileiro. Revista jurídica. São Paulo, Notadez, a. 52, n.

procura constranger o litigante a atuar conforme as determinações do Juízo; no segundo se busca punir a conduta desrespeitosa529.

Um aspecto interessante é que “a mens rea é um elemento essencial na caracterização do criminal contempt, mas não o é em relação ao civil contempt”. A resistência às ordens judiciais pode caracterizar o civil contempt “independentemente de qualquer consideração sobre a intenção do contemnor”530.

Como afirmam Geoffrey C. Hazard Jr. e Michele Taruffo,

quando o procedimento se destina ao criminal contempt, é necessário provar que a violação cometida pelo infrator foi intencional – e o standard de prova é o mesmo dos casos criminais: acima de uma dúvida razoável531.

E o rol de condutas assimiláveis ao Contempt of Court é bastante amplo. Seguindo-se o relato de Marcelo Lima Guerra,

entre os múltiplos exemplos de condutas que podem constituir Contempt of Court é comum apontarem-se as seguintes: tentar agredir fisicamente um juiz, um advogado ou outra parte no processo, interromper continuamente o curso da audiência, ameaçar testemunhas, juízes ou oficiais de justiça, alterar documentos, recusar-se a testemunhar, não cumprir ordens judiciais e até mesmo algumas condutas que causam certo espanto serem equiparadas a essas acima indicadas, como chegar atrasado ou faltar à audiência ou trajar-se com determinado tipo de roupa532.

O contempt power vai além da conduta processual das partes e advogados e abrange, por exemplo, as tentativas de influir no resultado dos julgamentos. Walter Habscheid noticia que no direito inglês o princípio da independência do juiz tem primazia sobre a liberdade de expressão, de modo a evitar o “poder de condicionamento exercido pela imprensa e por outros mass media” e, enfim, o “trial by press”533.

529 MILLER, C. J. Contempt of Court. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 43-44. GRINOVER,

Ada Pellegrini. Abuso do processo e resistência injustificada às ordens judiciárias: o contempt of Court. In: ______. A marcha do processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 65. No mesmo sentido, BUENO, Júlio César. Contribuição ao estudo do contempt of court e seus reflexos no processo civil brasileiro. 2001. Tese (Doutoramento em Direito Processual Civil) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p. 273; RODRIGUES NETTO, Nélson. Op. cit., p. 168; BRAGA, Paula Sarno. O parágrafo único do art. 14 do CPC e a multa punitiva imputada aos infratores do dever processual previsto no inciso V: um contempt of Court à brasileira. Revista dialética de direito processual. São Paulo, Dialética, n. 17, ago. 2004, p. 80; MACIEL, Adhemar Ferreira. Descumprimento de ordem judicial. In: ______. Dimensões do direito público. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 113.

530 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 99. No mesmo

sentido: GUIMARÃES, Milena de Oliveira. Op. cit., p. 357.

531 HAZARD JR., Geoffrey C.; TARUFFO, Michele. American civil procedure: an introduction. New Haven:

Yale University Press, 1993, p. 203.

532

GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 73. No mesmo sentido, ANDREWS, Neil. Abuse of process in english civil litigation. In: TARUFFO, Michele (ed.). Abuse of procedural rights: comparative standards of procedural fairness. The Hague: Kluwer Law International, 1999, p. 67.

533 HABSCHEID, Walter J. Introduzione al diritto processuale civile comparato. Santarcangelo di Romagna:

No direito indiano, S. P. Sathe também relata “três tipos de restrições” impostas pelo contempt power: “1) restrições a escritos ou pronunciamentos sobre matérias pendentes de julgamento (sub judice); 2) repressão à resistência ao cumprimento de ordens judiciais e 3) repressão a ataques constrangedores aos juízes da corte”534.

Proíbem-se comentários sobre matérias pendentes, quando, por qualquer motivo, sejam “prejudiciais ao julgamento”, salvo as “pressões populares” nos casos de judicialização de interesses públicos535.

Por outro lado, as sanções aplicáveis ao contemnor são múltiplas. Além da larga utilização de multas pecuniárias, tanto o civil quanto o criminal contempt autorizam a decretação de prisão, embora neste último a privação de liberdade se dê por certo período de tempo536, enquanto no anterior a restrição se estenda até o cumprimento da ordem judicial.

Há, ainda, a possibilidade de “limitação aos direitos processuais da parte que comete a ofensa”. Após narrar a preocupação da doutrina estrangeira, Marcelo Lima Guerra registra que “somente em casos de civil contempt se deve impor a referida sanção de negar alguns direitos da parte de atuar no processo”537.

A esta altura, pode-se indagar, como Araken de Assis, “quais as perspectivas de sucesso deste implante, no corpo de uma Nação periférica e subdesenvolvida, cujo processo civil se governa por diretrizes diferentes?”538

Preliminarmente se registre que foi necessária a alteração do Código de Processo Civil para “inserir o instituto” no sistema jurídico nacional. A doutrina brasileira, em regra, é pobre em formulações de “poderes intrínsecos” do juiz, consagrando, em homenagem à sua formação romano-canônica e lusitana, a lei como fonte por excelência das normas

534 SATHE, S. P. Judicial activism in India: transgressing borders and enforcing limits. 2. ed. New Delhi:

Oxford University Press, 2004, p. 286.

535 Idem, p. 286-90.

536 Segundo o Contempt of Court Act de 1981, o prazo máximo é de dois anos quando a medida é decretada por

Corte Superior e de um mês nos demais casos (cf. MILLER, C. J. Contempt of Court. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2000, p. 50). No mesmo sentido, ASSIS, Araken de. O contempt of Court no direito brasileiro. Revista jurídica. São Paulo, Notadez, a. 52, n. 318, abr. 2004, p. 11. Consoante DINAMARCO, “autor inglês antigo refere ter havido prisões perpétuas impostas com fundamento no atentado à dignidade da Justiça, sendo do seu próprio conhecimento pessoas que ficaram vinte, trinta ou quarenta anos presas em virtude do contempt que perpetraram. A limitação do encarceramento a três meses e da multa a determinada soma chegou a ser proposta, mas refutou-a o Parlamento no ano de 1883, tratando-se de um ‘poder arbitrário e ilimitado’” (Execução civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 177).

537 GUERRA, Marcelo Lima. Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 102. 538

ASSIS, Araken de. O contempt of Court no direito brasileiro. Revista jurídica. São Paulo, Notadez, a. 52, n. 318, abr. 2004, p. 7. BARBOSA MOREIRA já advertira: “No caso de nosso país, o máximo de cuidado há de ser posto justamente na abertura das portas jurídicas aos produtos vindos dos Estados Unidos, dada a notória diferença estrutural dos dois sistemas – o brasileiro, de linhagem européia continental, com o predomínio das fontes escritas, e o norte-americano, muito mais afeiçoado à formação jurisprudencial do direito” (O futuro da Justiça: alguns mitos. In: ______. Temas de direito processual, oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 10).

processuais civis. A jurisprudência, do mesmo modo, tende a autoconter os poderes concedidos pela legislação, evitando construções ampliativas.

Tem-se um arremedo de Contempt of Court no art. 14, V e parágrafo único, do Código de Processo Civil: lista-se de modo restritivo as condutas capazes de perfazer o desacato à autoridade da Corte; excluem-se importantes atores processuais da incidência do instituto; limita-se o acervo sancionatório apenas à previsão de multa; estabelece-se o teto peremptório para esta sanção; submete-se, enfim, a eficácia da multa ao trânsito em julgado da decisão da causa539.

Há setores doutrinários, ainda, que se aferram ao rígido subjetivismo herdado das Ordenações e exigem, para a aplicação do dispositivo, a intencionalidade do ato lesivo: “deve haver o animus de praticar a conduta omissiva ou comissiva que prejudique a efetivação da decisão”, diz-se540.

A utilidade do instituto, entretanto, depende da preservação de dois traços essenciais: a ampla incidência da multa processual, que paira sobre (quase) qualquer pessoa que obste o cumprimento da decisão judicial, e a objetivação desta responsabilidade, ou seja, a possibilidade de aplicação da sanção diante da mera ausência de justificativa apta, independentemente de qualquer análise subjetiva.