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3. O princípio de probidade processual no Código de Processo Civil de 197

3.5. Ato atentatório à dignidade da Justiça

3.5.1. Configuração

O Código de Processo Civil fixa no art. 600 os contornos do “ato atentatório à dignidade da justiça”, retificados, com poucas mudanças, pelas Leis ns. 5.925, de 1º de outubro de 1973, e 11.232, de 22 de dezembro de 2005:

Art. 600. Considera-se atentatório à dignidade da justiça o ato do devedor que: I - frauda a execução;

II - se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos; III - resiste injustificadamente às ordens judiciais;

IV - intimado, não indica ao juiz, em 5 (cinco) dias, quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores.

A estrutura e a finalidade do instituto são semelhantes às da litigância de má- fé: descrevem-se espécies do gênero da improbidade processual, particularizando-se alguns casos de violação ao dever de lealdade.

Pela concepção originária do instituto,

sempre que faltem as partes aos seus deveres de “sujeitos” processuais, não importando ser credor ou ser devedor ou outro qualquer sujeito que eventualmente integre a relação processual de execução, poderá o juiz ordenar o seu comparecimento em juízo para realizar os atos de sua responsabilidade e necessários ao desenvolvimento executório468.

Ad instar do art. 17 do CPC, pronuncia-se Dinamarco: “trata-se de hipóteses típicas, descritas em numerus clausus pela lei e sem possibilidade de ampliação em via interpretativa justamente por causa de sua natureza sancionatória”469. O redator do anteprojeto, contudo, afirma que “a especificação do art. 600 é meramente casuística”470.

468 MOURA ROCHA, José de. Sistemática do novo processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1978, p. 194.

469 DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 178. No mesmo

sentido: CASTRO, Amílcar de. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, v. 8, p. 108.

470 BUZAID, Alfredo. Linhas fundamentais do sistema do Código de Processo civil brasileiro. In: ______. Estudos e pareceres de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 39. No mesmo

De fato, o caráter principiológico do dever de probidade processual não admite a pretendida restrição, inclusive diante da possibilidade de aplicação subsidiária dos arts. 17 e 18 também na fase de execução471, de modo a suprir as eventuais lacunas e preservar a amplitude do sistema de controle.

Assim, por exemplo, registre-se que o dispositivo silencia sobre o atentado à dignidade da justiça cometido pelo credor. Embora não seja habitual, podem-se imaginar atos desleais destinados, por exemplo, a burlar o princípio da menor onerosidade para o devedor ou a desconsiderar a sua personalidade jurídica, pretendendo a satisfação do crédito mediante o patrimônio dos sócios da empresa devedora. Diante da lacuna, aplicam-se os arts. 17 e 18 do CPC, a fim de se evitar a criação de área de imunidade.

A doutrina, infelizmente, tende a resumir as quatro hipóteses arroladas pelo art. 600 sob a rubrica genérica de “fraude à execução” 472. Nas palavras de Humberto Theodoro Júnior, insere-se neste conceito “qualquer ato que importe frustrar, baldar, inutilizar, malograr, tornar sem efeito a atividade executiva”473, o que dispensaria os demais incisos do mencionado artigo.

A assimilação do “ato atentatório” à “fraude à execução”, porém, embora atinja a generalidade dos comportamentos capazes de perturbar a função jurisdicional na fase executiva, impõe a necessidade de aferir, em cada caso concreto, o animus que patrocinou a

sentido, ASSIS, Araken de. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 6, p. 284.

471 “Esses preceitos, editados para o processo de conhecimento, são extensivos ao processo de execução, por

força do disposto no art. 598, do C. Pr. Civ., que manda aplicar, subsidiariamente, à execução, as disposições relativas ao processo de conhecimento. Por conseguinte, naquilo em que for omisso o Livro II, incidem os preceitos do Livro I, se compatíveis; e incompatibilidade não existe em que impeça estender-se, ao processo de execução, os preceitos pertinentes ao abuso de direito no processo de conhecimento; pelo que se afigura conclusão correta afirmar-se a incidência dos arts. 14 a 18, também no processo de execução” (CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Responsabilidade do exequente no novo Código de Processo Civil. Revista forense. Rio de Janeiro, Forense, edição comemorativa – 100 anos, t. 5, 2006, p. 282). “Mais não é do que a incidência do ‘princípio da probidade’ na execução, que, assim, reforça os preceitos do art. 14, c/c o art. 16, ambos deste Código, que consagram o mesmo postulado moral. O presente artigo não exclui a aplicabilidade dos respectivos dispositivos gerais do ‘processo de conhecimento’, que são subsidiários do ‘processo de execução’ (art. 598). Apenas se conceberam regras peculiares à execução, para evitar excessos de parte do credor ou medidas protelatórias de parte do devedor [...]” (MENDONÇA LIMA, Alcides de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, v. 6, t. 2, p. 608). O próprio DINAMARCO também reconhece a possibilidade de aplicação dos arts. 17 e 18 do CPC à “conduta desleal atípica perante o art. 600” (Execução civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 181). No mesmo sentido, CERQUEIRA, Luís Otávio Sequeira de. Atos atentatórios à dignidade da Justiça. In: SANTOS, Ernane Fidélis et al. Execução civil: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 50.

472

Mais ampla, registre-se, que a de “fraude de execução”, cf. CASTRO, Amílcar de. Op. cit., p. 108.

473 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense,

conduta ímproba. “A má-fé é elemento contenutístico ineliminável ao conceito”474. Exige um esforço argumentativo que não guarda previsão, por exemplo, no literal teor do art. 600, III e IV, do CPC.

A utilização da “fraude à execução” como parâmetro interpretativo das demais hipóteses de atentado à dignidade da justiça converte o instituto em letra morta475: exige-se da ferramenta de controle, no mais das vezes, rigor probatório inadequado à fase executiva, que não comporta dilações com tal finalidade.

A partir dessa concepção, data venia equivocada, a doutrina e a jurisprudência impuseram grandes freios à eficácia do instituto476.

O art. 600, IV, do CPC, v.g., foi alvo das críticas de Ada Pellegrini Grinover, por “obstar” a legítima resistência do devedor em juízo. Em suas palavras,

obrigar o devedor a indicar ao juiz onde se encontram os bens sujeitos à execução, significa confundir uma posição dialética, própria do titular da resistência, com ato atentatório à dignidade da jurisdição477.

O tiro de misericórdia foi desferido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 152.737, a seguir ementado:

EXECUÇÃO. PENHORA. INDICAÇÃO DE BENS PELO DEVEDOR. OMISSÃO. ATENTADO À JUSTIÇA.

O executado não está obrigado a relacionar seus bens passíveis de penhora, sob pena de sofrer a multa do art. 601 do CPC.

Recurso conhecido e improvido478.

O voto condutor parte da interpretação restritiva do dispositivo e, mais adiante, formula considerações sobre a participação do devedor na fase de execução.

De fato, o primeiro argumento se prende à redação original do inciso IV do artigo 600, concluindo o ministro relator que a obrigação se limita aos bens previamente constritos ou dados em garantia. Os bens a serem penhorados ainda não estão “sujeitos à execução”, legitimando-se a recusa do devedor em indicá-los. “Fora disso, a omissão pode ser

474 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Atualização de

Sérgio Bermudes. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, t. 9, p. 360. O mestre alagoano, porém, reputa ato atentatório à dignidade da Justiça não apenas “o procedimento de má-fé, ou com simulação, dissimulação, ou fraude”, mas também o “ato omissivo de respeito e dignidade” (ibidem).

475 Restou infundado o otimismo de Amílcar de CASTRO: “a advertência permitida pelo art. 599, II, vai mostrar-

se eficiente ao ponto de raramente ser preciso chegar-se à proibição do art. 601, pois a desobediência ao juiz pode redundar em benefício do credor” (op. cit., p. 108).

476 Por exemplo: “não se aplica multa por ato atentatório à justiça, com fundamento nos incisos II ou III do art.

600 do CPC, se inexiste atitude maliciosa da parte” (REsp 117.611/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 04.11.1997, DJ 15.12.1997, p. 66483).

477 GRINOVER, Ada Pellegrini. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José

Bushatsky, 1975, p. 124.

478 Resp 152.737/MG, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em

um expediente de defesa como qualquer outro, ou o não exercício de um direito, como deixar de nomear bens à penhora”. “Do devedor, diante do processo de execução, exige-se passividade, para sofrer os atos forçados, e se proíbe conduta maliciosa ou fraudulenta”, afirma479.

Esvaziou-se a eficácia do art. 600, IV, do CPC, como registra a doutrina480. “E o que é pior”, admitiu-se “a falta de indicação dos bens passíveis à execução como mecanismo legítimo de defesa do executado”481. A fortiori, como se verifica nas razões do voto condutor, o Superior Tribunal de Justiça legitimou as demais omissões do devedor, comprometendo tout court a utilidade do instituto.

Percebe-se no precedente a prevalência da concepção liberal do processo, a exigir do devedor apenas a tolerância aos atos do Judiciário. Nitidamente seria possível retirar das palavras do Código de Processo Civil um sentido mais abrangente, pois o patrimônio do devedor é a garantia natural dos seus débitos e por eles responde genericamente, antes mesmo de qualquer ato constritivo (art. 591).

Na perspectiva do dever processual de colaboração, nada impede que se dessuma da redação original do art. 600 o dever de indicar os bens – a serem especificamente – sujeitos à execução, perfazendo-se o ilícito pela mera inércia da parte482.

A alteração legislativa advinda em 2005 pretendeu contornar estes óbices, utilizando a expressão “quais são e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus

479 Inteiro teor disponível em www.stj.gov.br. No mesmo sentido: REsp 511.445/SP, Rel. Ministro

FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 10.08.2004, DJ 08.11.2004, p. 201. Neste sentido, parcialmente: “não atenta contra a dignidade da Justiça apenas a conduta do devedor que deixa de indicar o local em que se encontram os bens sujeitos à execução. Aquele que tendo bens passíveis de responderem pelo débito na execução e omite-se na sua indicação, também o faz. Mas o dispositivo de tal item, pela sua dicção, não alcança essa conduta, desvendando-se mais como direcionado à execução para entrega de coisa” (ARMELIN, Donaldo. O processo de execução e a reforma do Código de Processo Civil. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (org.). Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 701).

480

ASSIS, Araken de. Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 6, p. 284.

481 ALMEIDA, Diogo Assumpção Rezende de. Atos atentatórios à dignidade da Justiça. Revista dialética de direito processual. São Paulo, Dialética, n. 24, mar. 2005, p. 39. No mesmo sentido crítico: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Ato atentatório à dignidade da justiça (arts. 600 e 601 do CPC). In: COSTA, Helio Rubens Batista Ribeiro et al. (org.). Linhas mestras do processo civil: comemoração dos 30 anos de vigência do CPC. São Paulo: Atlas, 2004, p. 119-23; MOREIRA, Alberto Camiña. Ato atentatório à dignidade da Justiça. Não nomeação de bens à penhora. In: SHIMURA, Sérgio; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Processo de execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, v. 2, p. 19-21. A perspectiva adotada pelo STJ impede, inclusive, a utilização das astreintes como mecanismo de coerção, como sugeria Marcelo Lima GUERRA (Execução indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 187).

482 CARPENA, Márcio Louzada. Op. cit., p. 158. Em quase todos os sistemas contemporâneos há o “dever do

executado de informar a localização de seus bens para que sobre eles recaiam os atos executórios, sob pena de sanções graves, como multas e até mesmo a prisão” (GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, v. 1, p. 154 et seq).

respectivos valores”. Logo, não mais se legitima o recurso à anterior jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pois afastada a base redacional na qual se fundamentava.

A norma em vigor deixa claro o dever de colaboração na realização da penhora, exigindo-se do devedor a efetiva cooperação, ainda que em sacrifício de seus interesses pessoais483.