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3. O princípio de probidade processual no Código de Processo Civil de 197

3.8. Diálogo entre os institutos

A variedade de sanções processuais no ordenamento brasileiro gera dificuldades na hora de sua aplicação606, mormente devido à necessidade de convivência entre os vários institutos. De modo geral, parte-se da proibição do bis in idem e do princípio da especialidade, lugares-comuns que não são suficientes para garantir a coerência do sistema.

Registre-se, inicialmente, que as penalidades processuais não se comunicam com as previstas pelo direito material. Uma multa contratual, v.g., não inibe a aplicação da processual e vice-versa, pois decorrem de causas diferentes e atendem a funções igualmente diversas, embora ambas se insiram na unidade ética que permeia todo o ordenamento jurídico. A obrigação processual prevista pelo art. 18 do Código de Processo Civil também não se esmaece em face de sanções processuais stricto sensu607. Há vozes isoladas a recomendar a dedução, do quantum a ser ressarcido, de “tudo quanto o credor tenha recebido em decorrência de multas ou outras sanções objetivas”608, mas, data venia, olvida-se que as parcelas detêm naturezas jurídicas diferentes.

A erronia, aparentemente, decorre da metodologia utilizada para fixação da indenização, mormente em casos de dano marginal do processo. Na visão de Dinamarco, por exemplo, como o cálculo não decorre de “juízo de equivalência a uma diminuição patrimonial”, a verba “mais se caracteriza como verdadeira multa”609.

606 MILMAN, Fábio. Improbidade processual: comportamento das partes e de seus procuradores no processo

civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 293; BONICIO, Marcelo José Magalhães. Análise do sistema das multas previstas no Código de Processo Civil. Revista de processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, a. 29, n. 118, nov./dez. 2004, p. 29.

607 TOMIYAMA, Solange. Op. cit., p. 440.

608 FORNACIARI JÚNIOR, Clito. Atos atentatórios à dignidade da Justiça. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo

(org.). Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 575.

609 DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma do Código de Processo Civil. 5. ed. São Paulo: Malheiros,

2001, p. 65. Em sentido semelhante: “impõe-se considerar o caráter de penalização na aplicação da multa e nas perdas e danos, já que se busca reprimir a má-fé processual, pois se fôssemos considerar a sanção como mera indenização de prejuízos, estaríamos diante de direito patrimonial disponível, que impediria o juiz de aplicar tal sanção de ofício” (MAIA, Valter. Op. cit., p. 146).

Entretanto, o ressarcimento do dano marginal do processo, embora possa assumir elementos punitivos – ad instar dos demais casos de dano moral –, não se subordina integralmente ao regime jurídico das sanções, o que lhe permite plena cumulabilidade com estas. Trata-se do momento predominantemente ressarcitório, que convive sem ruídos com o aspecto sancionatório no sentido estrito.

Aplica-se, portanto, a responsabilidade prevista no art. 18 do CPC em toda a esfera da improbidade processual, inclusive quanto aos atos atentatórios à dignidade da Justiça610. A previsão de multas específicas não interfere na obrigação processual de indenizar os danos decorrentes da improbidade.

Mais difícil é o diálogo entre os vários preceitos estritamente sancionatórios. Rui Stoco defende a cumulação do art. 557, §2º, com o art. 17, ambos do CPC: “evidente que recurso com intuito protelatório não é a mesma coisa que agravo inadmissível ou infundado, [...] hipótese em que se justifica dupla sanção, com base nos dois preceitos, ainda que decorrentes do mesmo comportamento”611.

Como dito anteriormente, a manifesta inadmissibilidade do recurso não é fenômeno necessariamente alheio ao intuito procrastinatório, antes pode ser indício deste. Neste caso, a dupla apenação perfaz bis in idem, repudiado pelo ordenamento jurídico612.

Em síntese, regulada a conduta por norma específica (art. 233 do CPC, p. ex.), esta deve prevalecer, ainda que não se vislumbre qualquer elemento racional capaz de justificar a fuga à sanção prevista no art. 18 do CPC.

A doutrina admite a cumulação do ato atentatório ao exercício da jurisdição com um dos outros dois institutos – litigância de má-fé (arts. 17 e 18 do CPC) e ato atentatório à dignidade da justiça (arts. 600 e 601 do CPC)613 –, mas nega a possibilidade de aplicação simultânea dos arts. 18 e 601 do mencionado Código.

610 cf. ARMELIN, Donaldo. O processo de execução e a reforma do Código de Processo Civil. In: TEIXEIRA,

Sálvio de Figueiredo (org.). Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 700.

611 STOCO, Rui. Op. cit., p. 85-6.

612 Neste sentido: EREsp 641.522/SP, Rel. Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, PRIMEIRA SEÇÃO,

julgado em 14.09.2005, DJ 24.10.2005, p. 162; EREsp 511.647/DF, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14.02.2005, DJ 01.02.2006, p. 418.

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Sem prejuízo, ainda, da possibilidade de cominação de astreintes (cf. TEIXEIRA, Sérgio Torres. Inovações estruturais na concretização da tutela jurisdicional: novos contornos da sentença mandamental em face das últimas etapas da reforma processual. Revista da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 6. Região - AMATRA VI. Recife, Bagaço, a. 8, n. 20, jul. 2004, p. 25; VAZ, Paulo Afonso Brum. O contempt of Court no novo processo civil brasileiro. Revista de processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, a. 29, n. 118, nov./dez. 2004, p. 154).

A cumulatividade é justificada ora pela estrutura do ato atentatório ao exercício da jurisdição, ora pela especificidade de sua função614.

No aspecto estrutural, assume destaque o destino das verbas punitivas: na litigância de má-fé e no ato atentatório à dignidade da justiça, revertem-se em favor da parte contrária; no ato atentatório ao exercício da jurisdição, são recolhidas em prol do Erário615.

Na perspectiva funcional, diz-se que o contempt atinge a atividade jurisdicional, enquanto os outros dois institutos se impõem pelo “descumprimento dos deveres de lealdade e probidade”, a prejudicar a parte adversa616. Logo, a conduta do litigante poderá – eventualmente – lesionar o adversário e embaraçar o cumprimento da decisão617, hipótese em que, atingidos “bens jurídicos distintos”, justifica-se a condenação cumulativa618.

A estrutura e a função da litigância de má-fé, por sua vez, reproduzem-se no ato atentatório à dignidade da justiça, de modo que a incidência conjunta perfaz bis in idem619. Em homenagem à especialidade, este prevalece sobre aquela, sempre que a conduta se submeter às hipóteses do art. 600 do CPC.

Embora se anua às conclusões expostas pela doutrina, há de se destacar que suas premissas são parcialmente incongruentes com a harmonia do sistema, ao estimular a sectarização dos institutos.

Data venia, não se pode dizer que o instituto da litigância de má-fé defende predominantemente os interesses do litigante prejudicado, enquanto o ato atentatório ao

614 Contra: “como a multa já constitui uma sanção processual, a ressalva a ‘sanções processuais’, no elenco das

sanções ressalvadas, só pode ser referida a atos outros que não àquele que determinou a multa” (CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Deveres processuais do advogado e o art. 14, parágrafo único, do CPC. In: ______. Direito na doutrina. Curitiba: Juruá, 2006, v. 4, p. 206).

615 Utilizam este critério, p. ex., VIANA, Juvêncio Vasconcelos. Ato atentatório ao exercício da jurisdição –

multa – comentários ao novo inciso V, art. 14 do CPC. Revista dialética de direito processual. São Paulo, Dialética, n. 1, abr. 2003, p. 91; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Op. cit., p. 121. Leis estaduais tentaram vincular outras multas processuais a “fundos de aparelhamento do Poder Judiciário”, mas o Superior Tribunal de Justiça as manteve como direito do prejudicado (REsp 647.674/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 11.04.2006, DJ 22.05.2006, p. 181).

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TOMIYAMA, Solange. Op. cit., p. 433; ANGHER, Anne Joyce. Litigância de má-fé no processo civil. São Paulo: Rideel, 2005, p. 70.

617 WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves comentários à 2. fase da reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 37. No mesmo sentido: “o descumprimento de ordem judicial, ao menos diretamente, não implica a aplicação da sanção processual pecuniária prevista no art. 18, por litigância de má-fé. Dessarte, não há falar em duplicidade de sanções por idêntica conduta” (VAZ, Paulo Afonso Brum. Op. cit., p. 161). Também: ARRUDA ALVIM, José Manuel de. Sobre as multas instituídas nos arts. 14 e 18 do Código de Processo Civil. In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, Maurício Zanoide (org.). Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ Editora, 2005, p. 658.

618 CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., p. 10. No mesmo sentido: BRAGA, Paula Sarno. O inciso V do art.

14 do CPC e a estipulação de um novo dever de lealdade, que visa assegurar, em última análise, a efetividade dos provimentos mandamentais e de outros provimentos judiciais, antecipatórios e finais. Revista dialética de direito processual. São Paulo, Dialética, n. 19, out. 2004, p. 88.

exercício da jurisdição aprecia a conduta ímproba da perspectiva da autoridade do Estado- juiz.

A tese dos “bens jurídicos distintos” soa incompatível com a atuação ex officio do magistrado no controle da litigância de má-fé e do ato atentatório à dignidade da justiça. Se o bem jurídico atingido se limita ao interesse particular do litigante, sem qualquer nota de interesse social, não se explica a exceção ao princípio dispositivo.

Em outros termos, se o juiz está autorizado a apreciar de ofício a improbidade processual, há de se concluir que predomina, nesses institutos, o interesse público na realização de Justiça, associado à autoridade do Estado-juiz.

Por outro lado, a resistência ao cumprimento de provimentos mandamentais ou à efetivação de outros provimentos judiciais normalmente se enquadra na hipótese do art. 17, IV, do Código de Processo Civil (“opor resistência injustificada ao andamento do processo”). A insatisfação levará o prejudicado a interpor petições, que ensejarão decisões judiciais, intimações e outros atos processuais necessários a dobrar a resistência da parte adversa. Tudo isso demanda tempo e atrasa o andamento do processo.

Logo, quando a conduta do art. 14, V, do CPC é praticada pelo litigante, normalmente se insere também nas hipóteses de litigância de má-fé. Um único comportamento encontra – como regra geral e não excepcionalmente – previsão em dois preceitos sancionatórios do CPC, ambos, reitere-se, fundados predominantemente no interesse público na realização da Justiça.

A possibilidade de cumulação entre as respectivas multas, portanto, decorre da diferença de destinatários, que afasta o possível bis in idem. É como se a lei fixasse uma única multa e dividisse o seu valor, equitativamente, em prol dos prejudicados – Estado e parte contrária. A mera distinção topográfica não conduz à inconstitucionalidade, nem à impossibilidade de aplicação simultânea dos preceitos, sob pena de se incidir em indisfarçável nominalismo.

Enfim, esta tentativa de reunir os “pedaços do quebra-cabeça” apenas destaca a sua diversidade: multas de até um por cento do valor da causa, de cinco por cento do valor da causa, de até vinte por cento do valor da causa, de metade do salário mínimo vigente, de cinco vezes o salário mínimo de vigente etc. Ontologicamente não se identificam justificativas para tamanha variação, impondo-se de lege ferenda a “harmonização dos dispositivos”620.

620 “Ou a multa de 1% é baixa demais, ou a de 20% é assaz rigorosa. Que se pense então o valor justo; o que se