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3. O princípio de probidade processual no Código de Processo Civil de 197

3.2. Fixação de deveres processuais

3.2.1. Dever de lealdade e boa-fé

Determina o Código de Processo Civil:

Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:

I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II - proceder com lealdade e boa-fé;

III - não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento;

IV - não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito;

V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.

O inciso II do artigo em comento é nitidamente inspirado na fórmula do art. 88 do Código de Processo Civil italiano, que estatui o dever de “se comportar em juízo com lealdade e probidade”.

Lealdade, probidade e boa-fé são expressões de tessitura aberta, standards de comportamento correto. Etimologicamente partem de raízes diferentes, mas convergem para o mesmo significado.

Assim, diz-se na doutrina que a lealdade é “um aspecto da probidade”237, que o “dever de probidade é o mesmo que dever de boa-fé”238, que a “lealdade é o nome da boa- fé”239, sem a preocupação de se fixarem discrímenes entre as expressões.

O mesmo pode ser dito do conteúdo dos demais incisos, os quais apenas repetem emanações do dever geral de probidade processual. A mentira, a defesa manifestamente incabível, a procrastinação, a resistência às decisões judiciais, reduzem-se todas ao denominador comum do ato processual ímprobo, da deslealdade.

Do mesmo modo que os doze mandamentos foram reduzidos a apenas um pelo Novo Testamento, os deveres mencionados no art. 14 do Código de Processo Civil podem ser consolidados em uma única exortação: procedam as partes e os demais atores processuais com probidade. “Bastaria, assim apenas a regra ampla do inciso II do art. 14”240.

237 LA ROCCA, Manlio. Op. cit., p. 88.

238 REIS, José Alberto dos. Comentários ao Código de Processo Civil. Coimbra: Coimbra, 1946, v. 3, p. 5. 239 STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 53. No

mesmo sentido, IOCOHAMA, Celso Hiroshi. Litigância de má-fé e lealdade processual. Curitiba: Juruá, 2006, p. 45; RIBEIRO, Darci Guimarães. O subprincípio da boa-fé processual como decorrência do comportamento da parte em juízo. Revista forense. Rio de Janeiro, Forense, a. 101, v. 381, set./out. 2005, p. 59.

240 VIANA, Juvêncio Vasconcelos. Op. cit., p. 84. Semelhante: ANDRADE, Valentino Aparecido de. Litigância de má-fé. São Paulo: Dialética, 2004, p. 28. Em sentido contrário, Alfredo BUZAID tentou, por exemplo, distinguir o conteúdo do inciso III tanto do dever de veracidade (inciso I) quanto do dever de lealdade (inciso II) (Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de processo. São Paulo, Revista dos Tribunais, a. 12, n. 47,

Mais importante que precisar espaços de atuação para cada inciso do artigo 14, convém fixar os contornos gerais do dever de probidade, a partir do núcleo irradiante inserido em seu segundo inciso (“lealdade e boa-fé”)241.

Calamandrei, reportando-se ao art. 88 do Código peninsular, afirma que o processo civil exige a “lealdade no jogo”, ou seja, a habilidade é lícita, mas não se permite enganar242. Prima facie, a fórmula permitiria traçar aproximadamente a linha distintiva entre o lícito e o ilícito processual: admite-se a habilidade, rejeitam-se as armadilhas.

Entretanto, a dicotomia é superficial: as armadilhas também são frutos da habilidade, sobretudo as mais sutis. Quanto mais “hábil” o jogador, mais sofisticadas as armadilhas - e nem por isso se poderiam considerar lícitas. A vexata quaestio, portanto, desloca-se para o próprio conceito de “armadilha”, que não recebeu adequado tratamento pelo autor italiano.

A menção ao “jogo”, por outro lado, intuitivamente remete à idéia das “regras”, sem as quais factualmente não se joga. O lícito poderia, nessa ótica, ser assimilado ao fair play, à observância às “regras do jogo”243. Todavia, se o conceito for limitado ao aspecto procedimental, extrínseco, subtrai-se do controle o exercício exorbitante das faculdades processuais; se não o for, exige que se agreguem novos elementos, sob pena de se estar trocando um lugar-comum (lealdade) por outro (regras do jogo).

Para cortar esse nó górdio, parte da doutrina tende a aferir o elemento subjetivo da conduta: a intenção do agente seria o divisor de águas entre o lícito e o ilícito processuais244; a violação ao dever de lealdade estaria em “todo e qualquer ato inspirado na malícia ou má-fé”245.

Entretanto, essa técnica enfraquece o alcance do dever de lealdade, mediante indevida redução de seu espectro impositivo. Não atinge, por exemplo, casos de

jul./set. 1987, p. 97). Data venia, a sectarização esmaece o conteúdo do dever de probidade, em vez de trazer vantagens ao sistema.

241 Fernando Luso SOARES recomenda, em caminho inverso, que se evite a “vacuidade”, dispersando-se o dever

de lealdade em “repetidas normas” de conduta processual (op. cit., p. 172). Impossível, porém, abarcarem-se todas as condutas ímprobas sem a utilização de núcleos abertos.

242 CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuoco. In: ______. Opere giuridiche (a cura di Mauro

Cappelletti). Napoli: Morano, 1965, v. 1, p. 544.

243 Neste sentido, por exemplo, reportando-se ao lugar-comum das “regras do jogo”: SOUZA, Luiz Sérgio

Fernandes de. Op. cit., p. 114.

244

GERAB, Sérgio. O abuso do direito, a parcimônia na sua coibição e outras considerações peculiares à lealdade processual e ao avanço e retrocesso do processo. In: COSTA, Helio Rubens Batista Ribeiro et al. (orgs.). Linhas mestras do processo civil: comemoração dos 30 anos de vigência do CPC. São Paulo: Atlas, 2004, p. 599.

245 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Deveres das partes e dos procuradores. In: ASSIS, Jacy de (org.). Digesto de processo. Rio de Janeiro: Forense, 1980, v. 2, p. 361.

“desconhecimento ou má compreensão da técnica processual”246, escusa que se fundamenta no baixo nível dos cursos jurídicos e que, generalizando-se, cria uma esfera de imunidade incompatível com as necessidades éticas do sistema.

Como afirmado em outra sede, se a advocacia é atividade essencial à administração da Justiça, “não se pode incentivar a participação de advogados desqualificados, reconhecendo em seu favor a inaplicabilidade de normas éticas processuais”247.

Além disso, consoante as precisas palavras de Manlio La Rocca,

o respeito pelos outros implica, como é óbvio, não apenas honestidade de propósitos e de ações, mas também um contínuo exame da própria conduta, a fim de que seja conforme tais princípios: o homem probo, portanto, deve sempre se comportar de modo a não ofender também involuntariamente o semelhante248.

Diante da insuficiência das formulações tecidas sobre a “lealdade”, resta mais produtivo se deslocar o enfoque para a “boa-fé”, não por considerá-las conceitos distintos e estanques, mas diante da rica doutrina que se formou sobre este núcleo ético em outros ramos jurídicos.

Como destaca Yussef Sahid Cahali, trata-se de “expressão rica de significados, mas, ao mesmo tempo, ambígua”:

haveria necessidade de determinar-lhe o conceito, preciso quanto possível, extremando-lhe os limites, e indagando se presente um conceito puramente psicológico ou simplesmente ético; necessidade de se saber se há uma boa-fé jurídica, diversa daquela que se revela no plano social; se é representada pela convicção absoluta e positiva do agente, ou pela negativa de mera ausência de má-fé; se haveria um conceito unitário de boa ou má-fé, válido para as relações tanto pessoais como patrimoniais, e agora processuais; se o conceito privatístico de boa ou má-fé torna-se aproveitável no contexto processualístico; como também haveria necessidade de uma indagação sobre os termos em que o requisito se envolve com a teoria do erro e da culpa, perguntando se o erro deve ser escusável, se o erro de direito é compatível com o estado de boa-fé, e qual seria a posição do dubitans; enfim, em que momento deve ocorrer a boa ou a má-fé, quem tem o dever de prová-la no processo249.

São, enfim, várias indagações há muito discutidas pela doutrina civilista e que repercutem no campo processual.

O ponto-chave, porém, apresenta-se na concepção subjetiva ou objetiva da boa-fé. Buzaid, por exemplo, afirma textualmente que o direito processual civil brasileiro se

246 LOPES, João Batista. Tutela antecipada no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 64. 247

SILVA NETO, Francisco Antônio de Barros e. A antecipação de tutela nos processos declaratórios. Porto Alegre: Fabris, 2005, p. 133.

248 LA ROCCA, Manlio. Op. cit., p. 89. 249

CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade do litigante temerário pelo dano processual. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo, Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça, Procuradoria Geral do Estado, n. 11, dez. 1977, p. 356.

reporta à boa-fé como “consciência de que a parte está usando o processo sem intenção de descumprir a lei”250. Logo, adota uma feição nitidamente subjetivista, fundada na consciência de retidão, no desconhecimento dos possíveis vícios da atividade.

Observe-se, porém, que o direito processual, antes de adquirir autonomia, filiava-se ao tema dos contratos ou quase-contratos. Pelas teorias privatistas, a relação existente entre as partes do processo judicial era mero reflexo de seu aspecto substantivo, de índole contratual ou quase-contratual.

Embora sem obviamente pretender o retorno a essa concepção, atribuir-se à boa-fé processual conteúdo subjetivista implica dotá-la de menor rigor, nos confrontos com a sua manifestação na seara contratual.

Não se olvide que a “boa-fé objetiva” e a “boa-fé subjetiva” não se distanciam ontologicamente, mas apenas remetem a “graus de intensidade” diferentes251.

A presença do Estado-juiz, longe de impor às partes maior respeito pela instituição, em verdade flexibilizaria deveres comportamentais impostos no plano material. Por exemplo, na execução do contrato, as partes devem, objetivamente, agir de boa-fé, dentro de rígidos padrões éticos. No processo relativo a este litígio contratual, bastaria a “consciência da retidão”, sem a diligência imposta pela boa-fé objetiva.

Se a improbidade processual atinge diretamente o Estado, sua esfera jurídica seria protegida em parâmetros inferiores aos particulares em relação privada.

Em síntese, como destaca Friedrich Lent,

se as partes se encontram em suas relações privadas frente ao dever de se comportar de boa-fé [...], com maior razão devem fazê-lo em um processo, ante o juiz, que representa a autoridade que deverá resolver o conflito entre ambos252.

Ademais, “a explicação de todos os atos jurídicos tendo por critério a vontade – mesmo quando inexistente – é sobrevivência da ciência do Direito do século XIX, e pertence à categoria das concepções já relegadas ao museu do pensamento”253.

250 BUZAID, Alfredo. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de processo. São Paulo, Revista dos

Tribunais, a. 12, n. 47, jul./set. 1987, p. 96. Literalmente contra: BAPTISTA DA SILVA, Ovídio. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, v. 1, p. 103.

251 COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 31.

Como registra TORNAGHI, são “dois conceitos que só diferem pelo maior ou menor rigor no julgar o comportamento de alguém: a lei pode adotar um ou outro; e pode deixar ao juiz o critério para a apreciação da boa-fé” (Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, v. 1, p. 145).

252

apud PICÓ I JUNOY, Joan. Op. cit., p. 133. No mesmo sentido, CASTRO, Artur Anselmo de. Direito processual civil declaratório. Coimbra: Almedina, 1982, v. 3, p. 16; DEVIS ECHANDÍA, Hernando. Facultades y deberes del juez en el moderno proceso civil. In: ______. Estudios de derecho procesal. Buenos Aires: Zavalia, 1985, p. 298-9; CRESCI SOBRINHO, Elicio de. Dever de veracidade das partes no processo civil. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 82.

Compete à boa-fé, no sentido objetivo, exercer a “função harmonizadora, conciliando o rigorismo lógico-dedutivo da ciência do Direito do século passado com a vida e as exigências éticas atuais”254. Enfim, mediante tal conceito se garante a “consideração para com os interesses do alter, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado”255.

Partindo-se dessa premissa, aplica-se ao processo civil, por exemplo, a proibição ao venire contra acto proprio.

É inadmissível que um litigante pretenda fundamentar seu acionar com o aporte de fatos e razões de direito que contradizem seus próprios atos, que assuma uma atitude que venha a se colocar em contraposição com seu anterior proceder256.

Como resume Foucault, você diz e fica amarrado por ter dito257.

Do mesmo modo, o litigante não deve “surpreender o adversário com lances que este não espera, como se aqui se tratasse de um jogo de xadrez onde há pedras temporariamente escamoteadas”258.

Como sugere Aldo Attardi, a boa-fé processual envolve a proteção de dois elementos postos em alteridade: as prerrogativas dos demais partícipes da relação processual e a celeridade do feito. A parte não deve agir de modo a “comprimir ou limitar o direito de defesa” (e, acrescentem-se, os poderes-deveres do Judiciário) nem “desenvolver atividades dilatórias ou supérfluas”259.

254 Idem, ibidem.

255 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 412. 256 MAURINO, Alberto Luis. Op. cit., p. 109. Nas palavras de CASTELARI, não se pode “rever na lide o que se

havia previamente manifestado” (Volontà ed attività nel rapporto processuale civile. In: STUDI di diritto processuale in onore di Giuseppe Chiovenda. Padova: CEDAM, 1927, p. 350). No mesmo sentido, GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. La conducta en el proceso. La Plata: Platense, 1988, p. 181 et seq.; MENEZES CORDEIRO, António. Litigância de má fé, abuso do direito de acção e culpa “in agendo”. Coimbra: Almedina, 2006, p. 49 et seq.; TANIGUCHI, Jasuhei. Abuse of procedural rights: a japanese perspective. In: TARUFFO, Michele (ed.). Abuse of procedural rights: comparative standards of procedural fairness. The Hague: Kluwer Law International, 1999, p. 220-221.

257 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 140. 258 SOARES, Fernando Luso. Op. cit., p. 173.

259 ATTARDI, Aldo. Diritto processuale civile. Padova: CEDAM, 1994, v. 1, p. 370. Em sentido semelhante:

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A responsabilidade das partes por dano processual no direito brasileiro. In: ______. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 17. Como afirma Souto Maior BORGES, “demandas e respostas não devem espraiar-se descomedidamente, truncando o diálogo. Breve é aquilo que estanca num ponto terminal compatível com a atenta escuta do pensar alheio” (O contraditório no processo judicial: uma visão dialética. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 54). Assim, “um critério objetivo para a imposição da litigância de má-fé está no grau de dificuldade criada pela parte ao andamento do processo” (RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Op. cit., p. 15). De fato, grande parte das condenações por litigância de má-fé, aplicadas pelo Superior Tribunal de Justiça, decorrem da reiteração de argumentos já afastados pela Corte no mesmo caso concreto: AgRg na Rcl 2.349/AL, Rel. Ministra ELIANA CALMON, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28.02.2007, DJ 19.03.2007, p. 269; AgRg nos EREsp 741.271/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 13.12.2006, DJ 12.02.2007, p. 234; entre outros.

Mantém-se, no mais, a impossibilidade de colocações apriorísticas: trata-se de “norma proteifórmica, que convive com um sistema necessariamente aberto, isto é, o que enseja a sua própria e permanente construção e controle”260.

Se ainda se ouvem ecos da doutrina chiovendiana, disseminando o medo do “excessivo arbítrio do magistrado”261, as garantias da ampla defesa e da motivação dos atos judiciais contribuem para a contenção desse poder, compatibilizando-o com as imposições do regime democrático. Enfim, como responde Jorge Americano, “se o julgador, aqui, como em toda a matéria do ato ilícito, apreciar o assunto com o descortino presumível em quem exerce a alta função de julgar, não há que temer nenhum arbítrio”262.