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Proveniente do mesmo meio acadêmico que Victor da Silva Freire, Luiz Ignácio de Anhaia Mello compartilhava com este muitos pontos de vista, que se incumbiu de divulgar, atualizar e aprofundar a partir do final da década de 1920.

Dentre estes pontos de vista, um que certamente merece destaque é a concepção de “cidade corporação de negócios”, significando a necessidade de dotar a administração municipal da organização e dos métodos próprios dos empreendimentos privados; de maior qualificação técnica dos responsáveis pelas funções executivas e de substituição, no trato das questões urbanas, da cultura bacharelesca responsável pela hipertrofia do Poder Legislativo durante a Primeira República, pela racionalidade própria da engenharia, à frente de um Poder Executivo forte, atuante e livre de ingerências políticas.

Tão fascinado quanto Victor Freire pelos modelos norte-americanos de administração das cidades instituídos após o advento da National Municipal League e da Nacional Civil Service Reform League, Anhaia Mello, antes de adquirir experiência na administração pública e imaginando, talvez, que as instituições brasileiras encontravam-se suficientemente amadurecidas, foi um apaixonado defensor da introdução, entre nós, do exercício do governo municipal por

“comissões”. Na palestra que proferiu no Instituto de Engenharia de São Paulo em 27/11/1928, Anhaia Mello (1928b, p. 281) expôs seu pensamento de forma clara:

“Dirigir as grandes cidades modernas não é fazer leis às centenas.

“Porque chamar ‘governo’ as atividades de construção, calçamento, direção de serviços coletivos, água, gás, esgotos, tramways, força e luz elétrica?

“São negócios, ‘business operations’ em toda a latitude do termo.(...)”.

Dentre as diversas modalidades de governo municipal norte-americanas, Anhaia Mello (1928b, p. 282) considerava ser a comission-manager a “forma mais adiantada e científica de organização municipal jamais sugerida”; nesta,

“Os acionistas da ‘business corporation’ que é a cidade ou eleitores desta escolhem uma Diretoria geralmente de cinco membros, eleitos por 4 anos, que é o Conselho ou Comissão. (...)

“Essa Diretoria convida um perito, um técnico de sua confiança, o ‘City-manager’, a quem entrega a direção geral dos negócios da cidade, enquanto bem servir.

“É nisto que consiste a forma ‘Comission-manager’”.

Em tal sistema, o controle das atividades da Comissão ou Conselho e dos membros da administração seria feito pela “influência da opinião pública”, manifesta nos meios de comunicação; pelas eleições; pela iniciativa popular direta de proposição de medidas; pelo referendo popular de medidas propostas pela administração e, finalmente, pelo recall, ou remoção compulsória de administradores públicos em virtude da manifestação da vontade de certa parcela do eleitorado.

Na administração do funcionalismo público municipal, Anhaia Mello (1928b, pp. 283-4) defende também a atuação dos Departamentos de Serviço Civil existentes nas grandes cidades dos Estados Unidos, dirigidos por três membros escolhidos, respectivamente, por designação do prefeito, por eleição entre os funcionários públicos e por concurso. De perfil politicamente neutro, tais departamentos incumbir-se-iam da organização de concursos públicos, da aplicação de penas disciplinares, da fixação de vencimentos e do controle da eficiência da máquina burocrática.

Finalmente, o coroamento do sistema de administração municipal defendido por Anhaia Mello se daria pela instituição de uma Comissão do Plano da Cidade, integrada majoritariamente por cidadãos nomeados em função de sua “capacidade de orientar os outros em matéria de urbanismo” e responsável por elaborar o plano diretor de desenvolvimento urbano do município e dar parecer, de caráter consultivo ou mandatório, em toda e qualquer iniciativa geradora de impacto urbano, como arruamentos, loteamentos, construções ou instalação de serviços ou comodidades públicas.

Todavia, como de praxe ao longo de toda a Primeira República, a realização das aspirações de Anhaia Mello (1928b, p. 286) no âmbito municipal dependia da sanção do governo do estado; daí, o seu apelo:

“Vamos bater às portas dos nossos legisladores estaduais, de cujo patriotismo não podemos nem devemos duvidar, e solicitar-lhes pelo muito que todos queremos a cidade que nos dêem esse meio de redimir os erros passados, de resgatar as culpas de que cada um de nós tem o seu quinhão e de integrar São Paulo no rol das mais progressistas cidades da América”

Na palestra Urbanismo: o problema financeiro, proferida no Instituto de Engenharia de São Paulo em 08/01/1929, Anhaia Mello (1929b) apresentou, na forma de organograma, sua proposta de inserção da Comissão do Plano da Cidade na estrutura de poder paulistana (figura 5).

Admitindo a submissão do município ao Legislativo estadual no que concerne à aprovação da legislação pertinente à desapropriação, à instituição da contribuição de melhoria e à regulamentação de normas gerais relativas à edificação, ao sistema viário, ao parcelamento do solo, ao zoneamento, à circulação e ao transporte, Anhaia Mello coloca o “Estado de São Paulo” no topo da estrutura piramidal que converge para o ideal de “São Paulo Maior e Melhor”.

No nível intermediário, prefeito e Câmara Municipal são dispostos lado a lado, a fim de figurarem como eleitores minoritários na escolha dos onze componentes da

Comissão do Plano da Cidade: ao primeiro, representante do Poder Executivo, caberiam três indicações, sendo duas delas indiretas, através da Diretoria de Obras e das Seções Técnicas; à última, a indicação de apenas dois nomes. Os demais seis integrantes seriam escolhidos dentre “cidadãos” – evidentemente aqueles versados em matéria de urbanismo.

As tarefas a cargo de tal Comissão não seriam de pequena monta: caber-lhe-ia formular estudos pertinentes a praticamente todas as funções urbanas (circulação, transporte, sistema viário, zoneamento, recreação e “arte cívica”) com vistas à elaboração de um plano final de conjunto.

De se notar que tal Comissão do Plano da Cidade, dotada de status jurídico intermediário entre a sociedade e a administração pública municipal, não encontrava previsão legal ou amparo em qualquer precedente na história política e institucional brasileira, afigurando-se elemento novo e estranho inserido por Anhaia Mello no debate acerca da necessidade de impressão de caráter mais técnico na condução dos negócios municipais, iniciado por Victor Freire na década anterior. Para este, muito embora também inspirado pelos modelos administrativos norte-americanos, o contexto jurídico e institucional brasileiro então vigente era um ponto de partida, um pressuposto a ser necessariamente considerado, razão pela qual a experiência estrangeira era exposta como ideal a ser contemplado e a servir de exemplo, mas jamais como solução a ser literalmente reproduzida. Daí a seriedade com que Victor Freire lançou-se à defesa do fortalecimento do Poder Executivo e, por conseguinte, da Diretoria da qual era o chefe.

Anhaia Mello, pelo contrário, se afigura mesmerizado pelas potencialidades inerentes à adesão da “opinião pública esclarecida”, por meio da “propaganda”, aos princípios do urbanismo, essa “ciência compreensiva” que exige “conhecimentos

fundamentais de engenharia, arquitetura, paisagismo, leis, governo e administração, economia, sociologia” e apta a empreender a reforma, o controle e o planejamento de todo o ambiente urbano, a fim de alcançar o ideal do “human welfare: health, safety, convenience”108.

Trata-se o urbanismo, para Anhaia Mello, de disciplina que pretende superar os limites não apenas do espaço – pois “evoluiu do simples ‘site-planning’, traçado local interessando um distrito urbano, ao ‘world development plan’109 (Mello, 1933c, p. 211) -, como também do tempo, sendo esta a função reservada à Comissão do Plano da Cidade: constituir “organismo livre das pressões diárias, sejam estas quais forem, colocado de tal forma que possa pensar calmamente no futuro, em nome de toda a coletividade”110, capaz de manter a continuidade da execução do master plan, ou plano geral da cidade.

108 De se observar que o caráter multifacetado e a amplitude do campo de estudo do

urbanismo, salientada por Anhaia Mello, continua a ser reconhecida. Para Correia (1989, pp. 46-7): “A doutrina é unânime na afirmação de que esta nova ciência [o urbanismo] assume uma natureza eminentemente interdisciplinar. De fato, a profundidade e a multiplicidade dos problemas urbanos não podem ser abarcados por uma única disciplina ou por um só ramo científico. O urbanismo apresenta-se, assim, como uma ciência compósita, que vai buscar conhecimentos a várias ciências, tais como a geografia, a arquitetura e a técnica de construção, a estatística, a ciência econômica, a ciência política, a ciência administrativa, a sociologia, a história, a ecologia urbana e, inclusive, à própria medicina, com o objetivo de possibilitar um desenvolvimento harmonioso e racional dos aglomerados humanos. Uma das ciências onde o urbanismo vai beber muitos dos seus princípios é a ciência do direito”.

109 O entusiasmo do autor com as possibilidades da idéia de planejamento beira o paroxismo

quando este, ao diagnosticar certa oposição entre economias nacionais e as “relações de economia mundial”, afirma que “só mesmo um plano mundial poderia harmonizar os diferentes nacionalismos econômicos e políticos, racionalizando o progresso humano, entendendo-se aqui como racionalização, não só o emprego de métodos técnicos e de organização, que permitam o gasto mínimo de esforço e material, mas também o uso da razão, coisa que nem sempre se encontra no domínio das relações internacionais” (Mello, 1933c, p. 211).

110 Trata-se, aqui, de transcrição feita por Anhaia Mello de trecho do relatório Relações do Plano da Cidade com os departamentos legislativo, executivo e administrativo da cidade,

apresentado por Alfred Bettman em reunião da Conferência Nacional de Urbanismo, em Dallas.

Portanto, tal Comissão se revela incompatível com o próprio modelo de Estado democrático representativo, mormente aquele existente no Brasil durante a Primeira República, haja vista que, neste, “as administrações e os governos municipais passam; os administradores e governantes que se sucedem, é humano, não têm muitas vezes as mesmas idéias e as mesmas opiniões. O desenvolvimento da cidade não pode estar sujeito a estas contingências” (Mello, 1928b, p. 284) - muito embora conceba, invertendo posições, o concurso do próprio Estado para a consecução do plano geral concebido pela Comissão – tronco que sustenta e do qual brota a copa legislativa na alegoria da “árvore do urbanismo” (figura 6):

“Qualquer ‘chauffeur’ (ou mesmo ‘chauffeuse’ elegante) entende de automóveis; um arquiteto presume-se perito na nobre arte de bem construir; um engenheiro civil entende ou deve entender de construção de ruas, pontes, pavimentações, transportes, um eletricista é mestre em tramways elétricos, elevateds, subways e o mais da sua especialidade; destes todos, porém, só merece o honroso apelido de urbanista aquele que conseguir harmonizar essas coisas todas da melhor forma e for capaz de fazê-las funcionar simultaneamente com a menor fricção, maior rendimento, melhor proveito e bem estar da coletividade.

“Mas para transformar em realidade os benefícios que a técnica da engenharia pode trazer para a vida em comum é necessária e imprescindível a colaboração e cooperação do jurista, do legislador, do economista, do sociólogo, dos governos que dão força às iniciativas e adotam dispositivos convenientes à sua eficácia, do cidadão que se submete de bom grado ao sacrifício de algumas das próprias comodidades e proveitos pelo bem geral” (Mello, 1928a, p. 238).

Para Anhaia Mello, a situação que se verificava, no instante político em que proferia seu discurso, era de divórcio entre a ação do poder público e as necessidades e aspirações dos munícipes, razão pela qual a substituição do papel do Estado pela Comissão do Plano da Cidade em praticamente tudo que se referisse à administração municipal implicaria, eventualmente, o apelo a mecanismos próprios da democracia direta – como a iniciativa legislativa, o referendo e o recall - , assim como a consulta popular “esclarecida” acerca das diretrizes a serem seguidas pelo urbanismo, na forma de audiências públicas e submissão prévia à discussão de planos e iniciativas:

“Quem estuda a administração das cidades americanas verifica que, à medida que a força dessas administrações cresce, que os dispositivos legais se tornam mais exigentes e obrigam os cidadãos a contribuições cada vez maiores para o bem coletivo, também e proporcionalmente cresce o controle direto do cidadão sobre os atos dessas administrações” (Mello, 1929a, p. 64).

Ao mesmo tempo, coerente com a visão de mundo moldada pela ideologia de Estado, particularmente em seus aspectos elitistas e voluntaristas e de percepção orgânico-corporativa da sociedade, Anhaia Mello considera a população do meio urbano uma entidade amorfa, golem desprovido de espírito, por culpa da ausência de rito e poesia na fundação das cidades (Mello, 1929c, p.106) – ausência a ser suprida pela ciência do urbanismo, que “substitui, agora, o rito religioso” (Mello, 1933c, p.214).

A opinião pública a que o urbanista se refere como raiz da Comissão do Plano da Cidade, na verdade, não existe: trata-se de algo a ser formado pela disseminação dos princípios do urbanismo, esse “novo evangelho de regeneração física e social”. O instrumento para isso é a propaganda, “governo soberano e invisível da sociedade” (Mello, 1929c, p. 106).

Fecha-se, assim, um círculo: à Comissão do Plano da Cidade, composta preponderantemente por técnicos, especialistas “capazes de guiar os outros em matéria de urbanismo” compete, igualmente, formar a “opinião pública esclarecida” de conformidade com os princípios do urbanismo, a fim de que se habilite, por sua vez, a integrar legitimamente a base de sustentação da própria Comissão do Plano. Ironicamente – haja vista o momento de ocaso da Primeira República em que a palestra A verdadeira finalidade do urbanismo foi proferida por Anhaia Mello no Instituto de Engenharia (21/08/1929) – qualquer dissidência de opinião que não tivesse passado pela devida formação através da propaganda deveria sofrer, de acordo com o urbanista, sumária degola, pois “se, teoricamente, cada cidadão é senhor de suas opiniões em matéria de interesse público ou privado, praticamente

não o é, porque é impossível examinar todos os dados econômicos, políticos, éticos ou sociais, de todos os problemas que nos cercam” (Mello, 1929c, p. 107). Ou seja, o parâmetro do “senso comum do cidadão médio”, tão caro às democracias liberais, não se presta, num primeiro momento, a mensurar a capacidade dos atores da cena urbana na era da ciência do urbanismo: o papel da humanidade é ser dirigida pela “mão invisível da propaganda”, que “manobra os cordéis do Guignol111 humano” (Mello, 1929c, p. 107).

Desta forma, se é fato que Anhaia Mello não deixa de reconhecer, nos munícipes, os atributos próprios da cidadania, na medida em que não apenas os admite, como os convoca a participar da administração da cidade, de igual modo é verdade que, imbuído da crença na idéia de progresso como fio condutor da história, o autor diagnostica, em seu tempo, um estágio de menoridade da sociedade, que habilita os urbanistas a atuarem não apenas como “cientistas” ou “técnicos”, mas também como agentes formadores da opinião pública.

Não causa estranheza, portanto, que surgida a oportunidade para implementação, na prática, da concepção da Comissão do Plano da Cidade, como ocorreu em 1937, por meio da lei municipal nº 3611, de 23/06/1937112, fossem omitidas quaisquer referências aos instrumentos de escolha e controle de sua atuação pela população e mesmo seu caráter independente da estrutura administrativa estatal, restando única e tão somente sua feição “técnica” e “racionalizadora”, somada à reafirmação da idéia-força da centralização política, então em desenvolvimento.

111 Referência ao teatro de marionetes Guignol, popular em França no final século XIX. 112 Em face da influência que exerceu não apenas junto à administração Fábio Prado –

da qual era “consultor oficioso para questões urbanísticas” (Campos, 2002, p. 502) – mas também à contemporânea gestão do governador Armando de Sales Oliveira, a nova lei orgânica dos municípios paulistas (lei estadual nº 2484, de 16/12/1935) contemplou, em seu art. 117, a possibilidade de os municípios criarem comissão para o estudo sistemático da orientação e do plano de desenvolvimento e melhoramentos urbanos a realizar.

Conforme determinava o parágrafo único do art. 117 da lei de organização municipal de 1935, a Comissão do Plano da Cidade, muito embora instituída no contexto político de vigência da Constituição de 1934 e anterior ao Estado Novo, não contava com qualquer membro eleito diretamente pela população: compor-se-ia pelo prefeito, dois vereadores escolhidos pela Câmara Municipal, dois “funcionários municipais” – não necessariamente vinculados à Diretoria de Obras - e seis “cidadãos de notória competência e idoneidade”, tanto aqueles quanto estes de livre nomeação pelo prefeito.

Por outro lado, seu caráter não seria mandatório, mas meramente consultivo, e seu escopo bastante limitado, se comparado ao das city-commission plan norte- americanas, competindo-lhe “organizar o plano dos melhoramentos e do desenvolvimento” da cidade em aspectos como estética, higiene, recreação, acessibilidade e tráfego, e também quanto à “recentralização de suas edificações”, conforme consta do art. 1º da lei municipal nº 3611/1937, sem contudo ser-lhe atribuída qualquer competência normativa.

Em outras palavras, a Comissão do Plano da Cidade imaginada por Anhaia Mello, para escapar da condição de mera abstração e adquirir relevância e conseqüência, precisou abandonar qualquer veleidade “suprapartidária” e se submeter à disciplina jurídico-institucional do aparelho burocrático estatal; todavia, ao fazê-lo, perdeu quase que por completo sua substância e mesmo sua razão de ser, convertendo-se em mais uma das numerosas “comissões de estudos” instituídas pelo poder público ao longo da história para dar parecer acerca de questões específicas – o que possivelmente explica a mera virtualidade de sua existência (Campos, 2002, p. 510). Com o advento do Estado Novo, a centralização política e administrativa torna-se mais nítida e institucionalizada, de forma que deixa de ter sentido o apelo a

“comissões técnicas”, vaga e nominalmente descoladas da máquina burocrática, como meio de ligação e diálogo entre a sociedade e o Estado: este passa a incorporar a racionalidade – em contraste com a política - não apenas em sua organização, mas também em seu discurso.

Coerente com os princípios informadores da ecologia urbana da Escola de Chicago, Anhaia Mello enxerga no urbanismo uma função socialmente regeneradora e civilizadora – “o verdadeiro urbanismo é no mundo moderno o verdadeiro cruzado da cultura, pela civilização” (Mello, 1929c, p. 111) -, capaz ao mesmo tempo, de curar os males decorrentes da “degenerescência” dos centros urbanos, inerente ao seu próprio processo de crescimento, mantendo intocados seus fundamentos sociais e econômicos:

“Os urbanistas são, pois, na grande oficina humana, os mesteirais que preparam moldes para a fusão das cidades futuras, em que as novas gerações viverão vida real e não mera existência exaustiva, enervante, atribulada” (Mello, 1929c, p. 112).

Configura-se o urbanismo, portanto, como tecnologia – ou, no dizer de Anhaia Mello, uma “filosofia das ciências aplicadas” (1928a, p. 237), de natureza “compreensiva”, à qual compete observar “as tendências e inclinações do crescimento urbano”, de maneira a “desenvolver as boas, corrigir as deficientes, eliminar as más” (Mello, 1933c, p. 211).

Assumindo o pressuposto de que, no Brasil, a opinião pública não era ainda devidamente informada e esclarecida a respeito dos princípios, técnicas e fins do urbanismo e que, devido a isso, não se encontrava capacitada a servir de sustentáculo da árvore do urbanismo, verifica-se que o discurso de Anhaia Mello tendeu, mormente após a revolução de 1930, a enfatizar a encampação da disciplina pelo Estado, enfatizando a atuação “de cima para baixo” deste em detrimento de mecanismos espontâneos centrados no mercado e na sociedade civil. Com isto, suas posições convergem com os ideais socialistas harmônicos já então

disseminados pelos meios jurídicos e se expressam na relativização do direito de propriedade, no questionamento dos efeitos benéficos da concorrência econômica e na afirmação do papel do Estado como elemento economicamente atuante.

Já em sua palestra Natureza, classificação, características econômicas dos serviços de utilidade pública, proferida no Instituto de Engenharia em 12 e 19/03/1930, Anhaia Mello afirmava que “temos de viver num regime de cada vez menos individualismo e maior controle social e de governo”, o que não significava, em absoluto, qualquer contestação do direito de propriedade: trata-se, aqui, pelo contrário, da defesa da intervenção do Estado para a garantia e proteção do próprio instituto contra os efeitos deletérios - no âmbito do sistema produtivo como um todo -, que a falta de controle, racionalização e planejamento poderiam ocasionar. Por outro lado, a intervenção estatal protetora dos interesses sociais ofereceria uma alternativa válida à ameaça representada pelas ideologias radicais de esquerda, preservando a essência do sistema.

Como corolário desta proposta converge-se, então, para a submissão do direito de propriedade ao atendimento de sua função social – menos com o objetivo de limitar sua fruição e proteção do que com o iter de aumentar sua produtividade e rendimento: “a intervenção dos governos, dissemos, faz-se sentir cada vez mais, no campo da utilização da terra urbana, porque a livre concorrência não é capaz de promover utilização econômica” (Mello, 1933b, p. 538).

Para Anhaia Mello era clara a noção de que a terra urbana constituía, mais que mera