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O desenvolvimento da ciência dogmática jurídica impôs àqueles que se dedicam ao estudo do direito a consideração de dois aspectos distintos do problema:

1. as normas jurídicas consideradas em seu aspecto objetivo e

2. o conhecimento científico produzido com base nas normas jurídicas.

Tal dicotomia se estende, conforme observa Silva (1995, p. 31), ao direito urbanístico, de forma que todo estudo tem necessariamente de reconhecer esse duplo aspecto: o direito urbanístico objetivo, “conjunto de normas jurídicas reguladoras da atividade urbanística” e o direito urbanístico como ciência, “conhecimento sistematizado daquelas normas e princípios reguladores da atividade urbanística”. Esta distinção é importante na exata medida em que esclarece a natureza do direito urbanístico enquanto construção teórica da ciência jurídica, diferentemente das normas jurídicas consideradas em si mesmas.

Assim, torna-se compreensível o aparente paradoxo entre a secular existência de normas jurídicas pertinentes à regulação do uso dos espaços urbanos, como as Cartas Régias portuguesas, que impunham parâmetros à ereção de novos núcleos urbanos na Brasil-colônia, e o relativamente recente aparecimento do direito urbanístico como ramo autônomo dentro da ciência jurídica: sua função, como de resto toda a dogmática jurídica, é fundamentalmente pragmática; ou seja:

“Fornecer instrumentos normativos ao poder público, a fim de que possa, com respeito ao princípio da legalidade, atuar no meio social e no domínio privado, para ordenar a realidade no interesse da coletividade” (Silva, 1995, p. 30).

O direito urbanístico configura, portanto, parte do esforço da ciência dogmática jurídica no sentido de instrumentalizar o direito para o atendimento das novas necessidades advindas do desenvolvimento do capitalismo industrial no século XIX,

de maneira a se constituir em uma tecnologia dedicada à ordenação dos espaços urbanos segundo critérios racionais e científicos20.

O urbanismo, por seu turno, também se apresenta como disciplina científica a partir de uma praxis, a urbanização, procedendo de igual modo à instrumentalização científico-racional da prática de construção e organização de cidades para servir às novas necessidades funcionais dos aglomerados urbanos, no contexto da sociedade industrial.

Sendo assim, qual seria a distinção fundamental entre o urbanismo, entendido como disciplina científica, e o direito urbanístico, entendido como ramo da ciência dogmática jurídica, visto que ambos possuem mesmo método - científico - e mesma finalidade - a ordenação dos aglomerados urbanos segundo princípios racionais? Verificamos que a principal diferença refere-se ao objeto de que se ocupam ambas as disciplinas.

De fato, enquanto o urbanismo trata da “administração dos lugares e dos locais diversos que devem abrigar o desenvolvimento da vida material, sentimental e espiritual em todas as suas manifestações, individuais ou coletivas”, para nos valermos da definição dada na Declaração de La Sarraz (Le Corbusier, 1993), o direito urbanístico se ocupa da exposição, interpretação e sistematização das

20 Segundo José Afonso da Silva (1995, p. 31), “primeiro vão surgindo as normas

disciplinadoras de uma realidade em desenvolvimento e, se essa normatividade específica se amplia, logo começam os doutrinadores a preocupar-se com ela, especulando a seu respeito com base em princípios gerais da ciência jurídica, na busca da sistematização do material existente e, então sim, passam a oferecer as soluções possíveis para os diversos problemas que se apresentam. Essa sistematização, no que se refere ao Direito Urbanístico, importa na aplicação do processo dialético, que sobe da realidade em que suas normas devem atuar para transformá-la no sentido da realização da convivência humana mais adequada nos espaços habitáveis e, depois, desce das normas àquela realidade para ajustá-la (torná-la justa) àqueles fins de convivência”.

Tal definição, em nosso entender, é compatível com aquela de tecnologia dada por Vargas (1979, p. 333), qual seja: “o estudo ou tratado das aplicações de métodos, teorias, experiências e conclusões das Ciências ao conhecimento dos materiais e processos utilizados pelas técnicas”.

normas e princípios reguladores da atividade urbanística (Silva, 1995, p. 32). Ou seja, enquanto o urbanismo faz do aspecto espacial da cidade seu objeto de investigação, o direito urbanístico, tomado como ciência, extrai seu conteúdo dos enunciados normativos.

Ambas podem ser consideradas disciplinas complementares, na medida em que, por um lado, o urbanismo oferece o diagnóstico dos desequilíbrios e as mais adequadas propostas para sua correção, com base em uma tecnologia própria; por outro, o direito urbanístico, também munido de um instrumental técnico que lhe é peculiar, avalia a legislação de cunho urbanístico, determinando-lhe o alcance, a vigência e as possibilidades de aplicação, no contexto de um determinado ordenamento jurídico. Nesse sentido doutrinou Hely Lopes Meirelles (2003, pp. 492-3):

“O Urbanismo de hoje, como expressão do desejo coletivo na organização dos espaços habitáveis, atua em todos os sentidos e em todos os ambientes, através de normas de duas ordens: normas técnicas de planejamento e construção, recomendadas pelas ciências e artes que lhe são tributárias, e normas jurídicas de conduta social, exigidas e impostas pelo ordenamento legal vigente. As primeiras disciplinam a utilização do solo, o traçado urbano, as áreas livres e os espaços verdes, as edificações, o sistema viário, os serviços públicos e o que mais se relacione com a ordenação espacial e a organização comunitária: as últimas visam a assegurar coercitivamente a observância das regras técnicas. Aquelas são

normas-fins; estas normas-meios. Ambas imprescindíveis para o atingimento dos

objetivos urbanísticos.

“Aí está a íntima correlação entre Urbanismo e Direito, permitindo-nos afirmar, mesmo, que não há, nem pode haver, atuação urbanística sem imposição legal. Isso porque o urbanismo é feito de limitações de ordem pública ao uso da propriedade particular e ao exercício de atividades individuais, que afetam a coexistência social”.

Abordando a questão por outro prisma, verificamos que tanto o urbanismo, como o direito urbanístico enquanto ciências, convergem para um mesmo ponto: a norma jurídica de cunho urbanístico, ou direito urbanístico objetivo. Em outras palavras, é possível perceber que a norma jurídica de cunho urbanístico constitui-se em elemento essencial para as duas disciplinas científicas, na medida em que, revestindo com o poder de império do Estado as propostas de administração do

espaço feitas pelo urbanismo, confere-lhes potencial eficácia no plano da realidade; por outro lado, quanto ao direito urbanístico, constitui-se na própria matéria e conteúdo da disciplina. Se o urbanismo tem necessariamente de se reportar às normas urbanísticas vigentes a fim de nelas encontrar seus limites de atuação, ele sempre tende - ou aspira - tornar-se norma, pois se trata do único recurso capaz de submeter as vontades individuais a propostas que, por definição, devem ser cogentes para alcançar seus fins21.

Isto nos remete a um outro liame entre o urbanismo e o direito urbanístico: ambos têm por matéria o uso e ocupação do solo; portanto, ambos fazem referência à propriedade privada do solo e ao direito de construir. Nisto possivelmente reside o problema central do estudo da legislação urbanística, uma vez que, em geral, o direito urbanístico trata da restrição ao direito de propriedade22, pois o interesse público, determinado pelo urbanismo ou por outras instâncias de poder ou administração, é modernamente considerado fator limitador do direito de propriedade, que deixa de ser absoluto para se submeter à sua “função social”23.

21 “Sob o ponto de vista dogmático, as normas urbanísticas, por serem de direito público,

são compulsórias, cogentes”. (Silva, 1995, p.53).

22 “Essa atividade [urbanística] deve, pois, desenvolver-se nos estritos limites jurídicos, e

isso decorre do fato de que toda planificação urbanística comporta uma disciplina de bens e de atividades que não pode atuar senão no quadro de uma regulamentação jurídica, pela delimitação que necessariamente põe à propriedade pública ou privada, ou mesmo, tolhe o gozo desta”. (Silva, 1995, p.28).

23 O art.5o da Constituição Federal de 1988, em seu parágrafo XXIII estabelece que

“a propriedade atenderá a sua função social”; já o parágrafo 2o do artigo 182 do mesmo diploma legal esclarece: “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”.

Ainda sob a égide da Constituição anterior, é Dallari (1970, p. 125) quem nos esclarece acerca do alcance da limitação ao usufruto absoluto do direito de propriedade, no que concerne ao direito de construir, em ponderações que foram não apenas recepcionadas, como ampliadas no contexto da nova ordem constitucional: "as limitações impostas pelos Municípios ao direito de construir realizam o equilíbrio entre direitos individuais e interesse social. E, ainda mais, através da legislação municipal é possível maior adequação entre o preceito normativo geral e a realidade social" .

Esta restrição ao direito de propriedade, embora geralmente corroborada tanto pelos estudos urbanísticos como pela doutrina jurídica mais atualizada, a princípio parece contraditória com a própria natureza do sistema produtivo capitalista, que transforma em mercadoria tanto o solo como o espaço construído, submetendo ambos às leis do mercado, sendo que uma delas professa que a motivação de toda empresa capitalista é a produção de lucro, que deverá ser “tão grande quanto possível” (Pereira, 1985, p. 188).

Uma solução plausível para este problema talvez possa ser buscada na tese de Villaça (1978, p. 12), que vê na localização a “mercadoria mais importante no mercado imobiliário, na definição das normas urbanísticas, na análise do uso do solo e na formação da estrutura urbana”. Assim, a regulamentação do uso do solo pelo poder público, através da legislação de caráter urbanístico, visaria unicamente “conter os chamados exageros ou distorções do mecanismo de mercado, mas nunca violentá-lo e muito menos eliminá-lo” (Villaça, 1978, p. 13). A racionalidade do mercado, portanto, não seria oposta à racionalidade da limitação urbanística da propriedade privada; pelo contrário, ambas seriam interativas, na medida em que “o controle do uso do solo tem seu poder limitado pelo sistema de mercado e pela propriedade privada da terra” (Villaça, 1978, p. 13) e esta limitação, quando aplicada, serve à criação ou valorização da mercadoria “localização”.

O Estado, sob esta ótica, deixa de constituir mero “fiador” das relações assimétricas que fundamentam o sistema produtivo capitalista para se tornar elemento decisivo ao restabelecimento do equilíbrio do mercado. O “Estado- policial”, característico das fases iniciais do capitalismo, cede lugar ao “Estado-

intervencionista” 24.

Conforme vimos anteriormente, a conseqüência mais imediata deste processo é a chamada “publicização do privado”, ou seja, o aumento da intervenção estatal na regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos (Bobbio, 1992, p. 25). Podemos então inferir que a legislação urbanística, neste contexto, representa uma síntese25 de instrumentos de que o Estado lança mão como forma de conciliar a máxima extração de renda fundiária pelos proprietários de imóveis com os imperativos determinados pela reprodução das condições gerais de produção e circulação de mercadorias.

Assim, a legislação urbanística atua não apenas no sentido de garantir a máxima eficiência da cidade enquanto pólo concentrador dos diversos fatores de produção, mas também para criar e maximizar o valor da cidade enquanto mercadoria e sua eficiência enquanto mercado, ou local de troca de mercadorias.

Estas considerações partem do pressuposto de que hoje a cidade transcende em muito sua primitiva função de elemento agregador dos meios de consumo e produção coletivos, tendo se tornado ela própria, a par de sua função criadora de novas e crescentes necessidades, eficiente ambiente de controle social26 e lucrativa

24 De acordo com Deák (1989), “O que é verdadeiro para a organização da produção em

geral vale também para a organização espacial em particular. Assim, como o fluxo de capital entre empresas e ramos industriais é regulado em grau menor ou maior (de acordo com o estágio de acumulação), através de impostos, subsídios, intervenção direta, regulação afetando a concentração e a centralização do capital, controles nas fronteiras nacionais e assim por diante, da mesma maneira a localização espacial é enquadrada mediante zoneamento legal, impostos e taxas de localização, empreendimentos públicos etc., de modo que o preço da localização exerça sua função de organização apenas dentro daquilo que ainda resta de ‘liberdade’ ao mercado. O preço da terra - a forma dominante de pagamento pela localização - torna-se assim um dos meios de organização espacial da produção juntamente com outros meios, tais como as ações normativas, indutivas e coercitivas do Estado”.

25 Silva (1995, p. 37) considera o Direito Urbanístico uma “disciplina de síntese, ou ramo

multidisciplinar do Direito, que, aos poucos, vai configurando suas próprias instituições”.

mercadoria. Para tanto, a legislação urbanística concorre no sentido de otimizar estas funções urbanas, de modo que consideramos que sua interpretação, para além da que poderia fornecer a ciência dogmática jurídica, deve necessariamente mergulhar na análise das relações que o Estado estabelece com os interesses econômicos e políticos de classe.

O advento da industrialização e a progressiva transformação de práticas sociais tradicionais, como a construção de cidades e a aplicação da justiça, em ramos específicos do saber científico, ou tecnologias, implicou no estabelecimento de um divisor de águas entre passado e presente.

Tal divisão, marcada por forte visão idealista da história, supõe um processo de contínua evolução à medida em que “ciência” e “razão” passam a submeter aspectos da realidade objetiva aos seus métodos e disciplina. Assim, urbanismo e ciência jurídica seriam valorados positivamente quando comparados às práticas urbanísticas e jurídicas passadas.

Mumford (1961, p. 20), por exemplo, é bastante categórico: as soluções para os problemas urbanos devem partir de um desenvolvimento científico multidisciplinar; segundo suas próprias palavras “o meio urbano dominante do século passado [XIX] foi principalmente um acanhado produto da ideologia da máquina. E a sua maior porção já se tornou obsoleta ante o rápido avanço das artes e ciências biológicas e ante a penetração incontida do pensamento sociológico em todos os setores. Chegamos agora a um ponto em que as novas acumulações de percepção histórica e de conhecimento científico estão a ponto de transbordar para a vida social, para modelar de novo as formas das cidades, para cooperar na transformação assim dos instrumentos como das metas da nova civilização”. Silva (1995, p. 22), por seu turno, ao se referir às normas urbanísticas medievais,

renascentistas e do Brasil colonial, considera-as um “urbanismo primitivo e empírico”.

Deste modo, urbanismo e direito urbanístico evoluem na exata medida da subsunção da realidade “empírica” - que se torna mais complexa e problemática à medida em que progride o sistema produtivo capitalista - às respectivas esferas científicas. Este processo paralelo de subsunção torna-se evidente à luz da legislação de cunho urbanístico, que sofre nítida transformação em decorrência do novo modo de produção e da nova realidade urbana que este institui.

Como regra, é possível estabelecer que o direito urbanístico moderno evolui a partir da legislação sanitária surgida no século XIX, tendo em vista o acelerado processo migratório campo-cidade decorrente da industrialização, o desaparelhamento das cidades para receber os novos contingentes populacionais e, consequentemente, as precárias condições de higiene e salubridade das habitações populares, que chegavam até mesmo a ameaçar a reprodução da mão-de-obra.

Esta legislação sanitária, como o Public Health Act inglês de 1848, impôs, entre outras medidas, certos parâmetros às construções, tendo em vista imperativos sanitários e higiênicos (e.g., disponibilidade de água e ventilação, dimensões dos banheiros)27. Posteriormente, as normas referentes às construções adquiriram autonomia em relação às normas sanitárias, passando não apenas a regular as condições de salubridade de cada construção considerada em si mesma, mas principalmente as relações que as construções devem estabelecer entre si e com seu entorno. Surge a regulamentação do parcelamento, uso e ocupação do solo, do sistema viário e da paisagem urbana e o zoneamento - inicialmente de maneira fragmentada, através de uma miríade de diplomas legais; posteriormente,

de maneira mais organizada e coesa, através da codificação das normas urbanísticas vigentes28.

A última etapa neste processo de normatização da realidade se dá através do planejamento urbanístico - institucionalização jurídica do processo técnico de planejamento urbano29, pelo qual a realidade existente se transforma em função de objetivos preestabelecidos (Silva, 1995, p. 77).

Esta ação normatizadora do Estado amplia-se à medida em que o capitalismo torna-se hegemônico e os elementos contraditórios e antagônicos que estruturam a sociedade passam a requerer a atuação de uma força catalisadora. O Estado e seus aparelhos, legitimados por uma aparente eqüidistância dos interesses em jogo e pelos expedientes políticos democrático-burgueses, desempenham o papel de garantidores da unidade social, que de outra forma seria inalcançável (Alves, 1987, p. 276). Segundo Offe (1984, p. 149), “o primeiro critério para identificar o caráter classista do Estado consiste, pois, na exigência de que este Estado desenvolva uma seletividade que sirva à unificação e à destilação de um interesse ‘capitalista global’ - e isso mesmo contra a resistência empírica de blocos e de grupos de interesse isolados”; ou seja, o Estado serve não apenas à repressão dos interesses contrários

28 Ferraz Jr. (1996, p. 238), “os códigos (...) representam um esforço técnico de domínio

prático de um material, conforme as exigências de decidibilidade de conflitos em uma sociedade complexa, submetida à celeridade das transformações”.

29 Esta última etapa de evolução é bastante elucidativa dos liames entre urbanismo e ciência

jurídica, na medida em que se pode considerar que o planejamento urbanístico institucionalizado representa a síntese de ambas as disciplinas. Silva (1995) nos lembra de que as normas de planejamento urbanístico são normas técnico-jurídicas, na medida em que revestem de juridicidade as considerações de ordem técnica contidas nos planos elaborados pelos urbanistas (p.78); por outro lado, a consubstanciação do processo de planejamento urbanístico em planos urbanísticos tende a transformá-lo em verdadeiro processo de criação de normas jurídicas (p.82).

Já a Carta de Atenas (Le Corbusier, 1993), em sua proposição 74, afirma que “Os princípios do urbanismo foram produzidos pelo trabalho de inúmeros técnicos: técnicos da arte de construir, técnicos de saúde, técnicos da organização social. Eles foram objeto de artigos, livros, congressos, debates públicos ou privados. Mas é preciso fazer com que sejam admitidos pelos órgãos administrativos encarregados de velar pelo destino das cidades (...) É necessário portanto que a autoridade seja esclarecida e, depois, que ela aja”.

ao capital, mas à própria manutenção da hegemonia política e econômica da classe capitalista frente à fragmentação e ao imediatismo dos elementos individuais que a compõem. Desta forma, o Estado aparece como o indispensável elemento articulador, que permite a superação da contradição entre o individualismo capitalista e o domínio de classe.