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Ao profundo e marcante processo de racionalização e profissionalização do aparelho estatal, promovido pelo governo Vargas, foi dado forte impulso, sob a égide da Constituição Federal de 1934, com a promulgação da lei federal nº 284/1936 (conhecida como “Lei do Reajustamento”), que promoveu a organização de todo o funcionalismo público federal em carreiras e instituiu o Conselho Federal do Serviço Público Civil (C.F.S.P.C.). Paralelamente, o mesmo diploma criou, no âmbito dos Ministérios, Comissões de Eficiência, destinadas a executar, em cada um dos órgãos, o estudo e a racionalização de seus serviços, bem como propor promoções e transferências de funcionários.

Após o advento do Estado Novo e a outorga da Constituição de 1937, elaborada por Francisco Campos, o trabalho do C.F.S.P.C. foi significativamente ampliado e aprofundado, com a criação do D.A.S.P. – que a exemplo do C.F.S.P.C.130, também se caracterizava pela absoluta centralização, na medida em que os cargos comissionados de seu primeiro escalão eram de livre e exclusiva disposição pelo presidente da República, e pelo compromisso técnico, expresso no critério para nomeação de diretores.

Além de promover a hipertrofia do Poder Executivo no âmbito federal, a Constituição Federal de 1937 a estendeu aos estados e municípios. Naqueles, manteve-se - à exceção de Minas Gerais, cujo governador teve o mandato confirmado nos termos do art. 176 da Constituição -, o regime de interventorias federais vigente desde

130 Por disposição expressa do decreto-lei 579/38, o D.A.S.P. incorporou todas as

atribuições do C.F.S.P.C., extinto por aquele diploma, assim como das Comissões de Eficiência ministeriais.

1930, dissolvendo-se as Assembléias Legislativas estaduais. Nestes, determinou-se que o cargo de prefeito seria de livre nomeação dos governadores dos estados. Na sua falta, tal atribuição coube, durante todo o Estado Novo, aos interventores, fato que consolidou a estrutura vertical de comando de todo o território pelo Poder Executivo federal, desde a União até o âmbito local.

A autonomia municipal, apesar de formalmente declarada no art. 26 da Constituição de 1937, não encontrou qualquer forma de expressão efetiva durante toda a vigência do Estado Novo. Assim como as Assembléias Legislativas estaduais, as Câmaras Municipais foram dissolvidas por força do art. 178 da Constituição, até que se realizasse o plebiscito que legitimaria a vigência desta, o qual jamais ocorreu.

Neste contexto, o D.A.S.P. serviu efetivamente como o elo de ligação entre o poder central e as administrações locais. De acordo com Penha (1993, p. 54):

“O D.A.S.P., enquanto agência ligada ao poder central, espalhava-se por todos os estados, através dos ‘daspinhos’, funcionando eles como uma espécie de legislativo estadual e como corpo superior para o interventor e o Ministério da Justiça: os municípios tinham que se submeter ao interventor e ao D.A.S.P., mesmo sendo o interventor o responsável pelo estudo, aprovação e declaração de todos os decretos e leis estaduais. Ao presidente do ‘daspinho’ correspondiam as funções da antiga Câmara e Senado do Estado e da maioria das Câmaras Municipais”.

Reiterando o caráter centralizador inerente ao Estado Novo, o decreto-lei nº 1202/1939 também determinou, em seu art. 13, que mesmo os membros dos D.A.S.P.s estaduais seriam nomeados diretamente pelo presidente da República, e não pelos interventores ou governadores.

A atribuição de competências aos D.A.S.P.s estaduais, pelo decreto-lei nº 1202/1939, foi generosa, pois além de reproduzir, no âmbito estadual, aquela estabelecida para o D.A.S.P. federal pelo decreto-lei nº 579/1939, incluiu, em seu art. 17, “aprovar os projetos de decretos-leis que devam ser baixados pelo Interventor, ou Governador, ou pelo Prefeito”, bem como “receber e informar os recursos dos atos do Interventor, ou Governador” e “dar parecer

nos recursos dos atos dos Prefeitos, quando o requisitar o Interventor, ou Governador”.

Outrossim, selando definitivamente o que se poderia considerar, na prática, a anulação do regime federativo no Brasil durante o Estado Novo, o art. 32 do decreto-lei nº 1202/1939 condicionou a vigência de decretos-leis versando acerca de um extenso rol de matérias – como transporte, comunicações, saúde pública, educação, fixação dos efetivos das forças públicas estaduais e organização judiciária, entre outras – à prévia aprovação pelo presidente da República, mesmo lavrados e tendo passado pelo crivo dos interventores e dos D.A.S.P.s estaduais131.

Conforme visto, um dos principais pontos por que se batia parte considerável das forças políticas que se opunham ao regime da Primeira República era a necessidade de profundas reformas no aparelho estatal, de maneira a capacitá-lo a estender seu campo de atuação para além da defesa dos interesses particularistas de um segmento econômico – a cultura cafeeira – e de uma classe – formada pelo binômio aristocracia rural/burguesia agro-exportadora.

Para tanto, era necessário “liberar” o Estado dos laços políticos que o ligavam de forma estreita aos grupos dominantes durante a Primeira República, por meio do clientelismo, dotando-o do profissionalismo e da racionalidade necessários ao planejamento e à gestão de médio e longo prazos.

No momento em que é instaurado o Estado Novo, introduz-se a concepção de que a política partidária, como praticada na democracia republicana liberal, seria incompatível com os ideais de eficiência e racionalidade administrativa do Estado.

131 Vide, acerca da atuação do D.A.S.P. no âmbito dos estados e municípios, Nascimento

Nesse sentido se expressa Azevedo Amaral (1938, p. 14):

“O regime ora vigente, identificando o Estado com a Nação e substituindo o velho conceito de política partidária pela idéia de uma política nacional, em que os interesses dos grupos de pontos de vista restritos se acham submetidos ao ritmo ditado pelo bem da coletividade, envolve a necessidade lógica de imprimir a todas as engrenagens da maquinaria estatal esse sentido político a que não podem deixar de obedecer todas as forças do Estado”.

De se notar que, muito embora a antinomia racionalidade/política tenha fincado fundas raízes na cultura e no imaginário nacional, na verdade a ideologia do Estado Novo se volta exclusivamente contra a política partidária. Neste contexto, para que o Estado possa exercer sua função precípua de árbitro imparcial dos interesses conflitantes, faz-se mister que se dispa de qualquer conotação “político-partidária” – visto que tal atividade passa a restringir-se ao âmbito da sociedade civil, organizada em partidos políticos -, erguendo-se, como o Leviatã de Hobbes, acima dos grupos imbuídos de interesses opostos que digladiam entre si na sociedade civil. Para Amaral (1938, p. 14), o Estado deve identificar-se com a Nação, sendo toda sua atividade, resultante de tal identificação, “política”, na medida em que seus fins são os mesmos almejados pela coletividade.

Conforme expresso por Capanema (apud Schwartzman, 1982, p. 48), subjacente à criação dos Departamentos federais, dentre os quais se destacava o D.A.S.P., encontrava-se a difusão de teorias administrativas racionalistas norte americanas – como o “manifesto da racionalização americana” lançado em 1921 pela Federated American Engineering Society – e alemãs - como os trabalhos desenvolvidos pela Reichskuratorium für Wirtschaftlichkeit em 1927132.

132 O Reichskuratorium (RKW) foi fundado em 1921 por Carl Friedrich von Siemens e Carl

Köttgen, com a finalidade de implementar medidas de eficiência organizacional e industrial na Alemanha de Weimar, seguindo os princípios de F.W. Taylor e Henry Ford (Shearer, 1997).

Tratava-se, portanto, de aplicar à administração pública brasileira a organização e os métodos desenvolvidos empiricamente por Ford e sistematizados por F. W. Taylor, cujo trabalho no campo da administração representa a resposta intelectual à “transição do capitalismo liberal para o monopólio, a transformação da empresa patrimonial em burocrática, a substituição da energia a vapor pela eletricidade” (Tragtenberg, 1980, p. 193). Assim, atendendo ao anseio do Estado Novo de promover a neutralização das forças políticas em conflito no âmbito social, transforma-se ideologicamente o interesse privado em universal, a contradição em unidade, a dominação em consenso (Penha, 1993, p. 53), erguendo-se o Estado não como entidade autônoma e eqüidistante dos interesses conflitantes, mas em abstração que “incorpora” a sociedade, formando um todo orgânico apto a ser observado, analisado, sistematizado e ter suas funções e atividades racionalizadas, otimizadas e padronizadas, como no modelo industrial fordista. Se em Taylor encontramos o apogeu da alienação do trabalho no modo de produção capitalista, na medida em que “o operário não utiliza os meios de produção”, mas “são estes que o utilizam” (Tragtenberg, 1980, p. 194), no regime instituído com o Estado Novo, não são mais as classes que lançam mão do aparelho estatal para atingir seus fins particulares, mas é o Estado que instrumentaliza a sociedade para a consecução de seus objetivos, que se confundem com os da Nação.

Por outro lado, identifica-se na lógica racionalizadora aplicada à administração pública pelo regime do Estado Novo a superação de formas de dominação fundadas no carisma pessoal de líderes políticos locais e na disposição de meios compensatórios para o exercício do poder – característicos do coronelismo patrimonialista – em favor da dominação legal com administração burocrática, de

inspiração weberiana133. Inclusive, aplica-se empiricamente ao próprio D.A.S.P. a formulação teórica passível de ser extraída do trabalho de Weber de que “uma burocracia racional na área administrativa pode tornar-se irracional na área das decisões políticas”, pois “para ele, os políticos são elementos de equilíbrio ante a burocracia, razão por que formula a tese do controle parlamentar da burocracia pelas comissões de inquérito” (Tragtenberg, 1980, p. 210). De acordo com Vieira da Cunha (1963, p. 92), a hipertrofia de tarefas atribuídas ao D.A.S.P. e seu prestígio junto à presidência da República, pela qual era chamado a opinar acerca dos mais diversos assuntos, conferindo um verniz “técnico”134 às decisões desta, não tardou eivar o órgão de dogmatismo, divorciando-o da realidade social e econômica. Para o mesmo autor,

133 Reconhecemos que não é pacífico o entendimento – talvez irrelevante - sobre a posição

de Weber diante da questão da burocracia (crítico ou ideólogo?). Interessa-nos, aqui, indicar que a análise feita por Weber acerca dos instrumentos de dominação social identifica na administração burocrática – seja ela aplicada ao Estado ou à empresa privada – a forma mais avançada, por racional, de exercício da dominação na sociedade capitalista, em vista de seus atributos de “precisão, continuidade, disciplina, rigor e confiança; calculabilidade, tanto para o soberano quanto para os súditos; intensidade e extensão dos serviços; aplicabilidade formalmente universal a toda sorte de tarefas e possibilidade técnica de aperfeiçoamento para alcançar a otimização de seus resultados” (Weber, 1944, p. 232).

134 Exemplo emblemático do “tecnicismo” de que se encontrava imbuído o D.A.S.P.

encontramos em um dos primeiros números da Revista do Serviço Público, veículo oficial daquele órgão. Da lavra de Berlinck (1938), trata da “padronização da tinta de escrever ‘azul-preta’”, discorrendo longamente acerca dos requisitos e características físico-químicas da tinta de escrever a ser adquirida e empregada nas repartições públicas brasileiras. Explicita que, como paradigma de qualidade, foi adotado o padrão norte-americano aprovado pelo “Federal Specification Board”. Todavia, diante de crítica sobre a qualidade da tinta “padrão”, manifesta por funcionário público, que afirmou a mesma evaporar-se mais depressa do que conseguia gastá-la, o articulista abandona sua fleuma tecnocrática para replicar nestes termos: “Todos nós sabemos que um tinteiro, mesmo aberto, em condições normais, leva vários dias para deixar escapar inteiramente seu conteúdo. Isso quer dizer que o funcionário que induziu seu chefe a assinar uma reclamação desse quilate, ou não trabalha senão esporadicamente, ou está realizando um ato de sabotagem burocrática, tão bem caracterizado por Urbano C. Berquó, no seu magistral artigo ‘Eficiência administrativa e sabotagem burocrática’, publicado nesta Revista, em abril” (p. 15).

“de ordinário, buscou [o D.A.S.P.] as suas soluções em esquemas abstratos, sediçamente repetidos. Tendeu a um dogmatismo dotado de esoterismo, que lhe facilitava a imposição das suas decisões. E da implantação das suas soluções resultou para a administração uma disciplina artificialmente sobreposta às reais condições de trabalho e a uma honesta e verdadeira colimação dos objetivos visados pelos órgãos públicos. Conquanto tudo se realizasse com o propósito da melhoria técnica e da maior eficiência da administração, na verdade, o D.A.S.P., incapaz de resistir às exigências do Ditador, quanto à sua colaboração no jogo das forças políticas informais, não pode imprimir à administração pública brasileira senão falsas medidas de eficiência e não impediu o crescimento de um corpo burocrático céptico, mal disciplinado e mal pago”.

Portanto, cremos ser possível vislumbrar no advento do Estado Novo e, empiricamente, na organização e nos métodos imprimidos pelos Departamentos criados pelo regime - tendo o D.A.S.P. à frente -, à estrutura e ao funcionamento da administração pública brasileira, a implantação do moderno conceito de Estado no Brasil, em contraposição ao “diletantismo da administração” de que nos fala Weber (1944, p. 232), referindo-se às formas de dominação anteriores ao moderno Estado capitalista, nas quais os conceitos de governo e de Estado se confundem e o poder sobre os súditos não é fundado num saber profissional apto a impor sua dominação pelo condicionamento, mas sim na personalidade do soberano ou nas relações promíscuas que os detentores do poder compensatório estabelecem com o aparato estatal.

Após a consecução da obra reformadora empreendida pelo regime do Estado Novo, o Estado brasileiro se habilitou a enfrentar os desafios impostos pela administração da sociedade de massas que, com a acelerada industrialização e o crescente ritmo de urbanização, surgia na década de 1930, no Brasil. Por outro lado, a própria formalização de procedimentos, visando enfrentar os indesejados vínculos pessoais estabelecidos entre o Estado e as oligarquias dominantes durante a Primeira República, a par de retirar da administração seu “rosto” visível, distanciou-a da sociedade civil, dando margem não apenas à “burocratização” do Estado brasileiro, em decorrência da qual a busca de seus fins se perde na proliferação de órgãos e

na execução automática – “sem amor e sem entusiasmo” no dizer de Weber – de dispositivos legais e regulamentares, como também ao mascaramento sistemático de novas relações promíscuas entre este mesmo Estado e as forças, econômicas e políticas, detentoras de poder e interessadas em se servir da administração para impor sua dominação, mas sob uma aparência impessoal, técnica e racional. Ou seja, com o aperfeiçoamento das formas de que se reveste a dominação, retira-se de vista seu conteúdo – o qual, todavia, continua a existir.

“Para as cidades européias, a passagem dos séculos constitui uma promoção; para as americanas, a dos anos é uma decadência. Pois não são apenas construídas recentemente; são construídas para se renovarem com a mesma rapidez com que foram erguidas, quer dizer, mal”

Claude Lévi-Strauss Tristes trópicos