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Em sua seminal análise da formação de um “pensamento político autoritário” durante a Primeira República, Bolívar Lamounier (1977) enxerga na obra de intelectuais como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos não apenas tentativas de interpretação da realidade objetiva, mas a construção de um sistema ideológico tendente a atuar politicamente, em oposição à ordem estabelecida pelo regime da Constituição Federal de 1891.

Muito embora aquele autor admita não ser pacífica a questão da coerência interna de tal “pensamento autoritário”, e tampouco as explicações para sua origem e disseminação, fato é que as últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX assistiram ao sistemático esforço de “formação de um sistema ideológico orientado no sentido de conceituar e legitimar a autoridade do Estado como princípio tutelar da sociedade” . Tal sistema enfatizava, entre outros aspectos, a centralização político-administrativa e o fortalecimento do Poder Executivo, no contexto da tripartição de poderes vigente na estrutura republicana tradicional. Outros aspectos característicos de tal “ideologia de Estado”, apontados por Lamounier (1977, p. 359) figuram do quadro 1, abaixo:

Quadro 1 – Características da “ideologia de Estado” segundo Lamounier

Aspectos característicos

Definição estendida

Predomínio do princípio ‘estatal’ sobre o princípio de ‘mercado’

Fundamental hostilidade ao princípio de mercado [que se manifesta], em termos positivos, por uma tendência a exaltar as virtualidades criadoras da intervenção deliberada, e do controle coercitivo através de um poder burocrático; e em termos negativos, pela negação de qualquer racionalidade dos mecanismos de coordenação fundados em processos competitivos ou em ajustamentos automáticos compensatórios (p. 359) Visão orgânico-corporativa

da sociedade A transformação orgânico-vitalista impulsionada e dirigida pelo Estado permitiria, de início, salvar o país do processo de degenerescência, ou pelo menos do amorfismo invertebrado que, segundo o diagnóstico desses ideólogos, o caracteriza. E em seguida estruturar a divisão do trabalho e a vida social de modo a permitir que cada órgão encontre sua ‘verdadeira’ função e essência (p. 363)

Objetivismo tecnocrático A tarefa científica da sociologia é produzir o diagnóstico que conduzirá à socioterapia tecnocrática. (...) Por política, nessa ideologia, deve entender-se, de um lado, com valoração positiva, uma opção técnica respaldada num definitivo ato de vontade; e de outro, com valoração negativa, a atividade de partidos e instituições representativas (p. 365) Visão autoritária do

conflito social A sociedade é vista mais ou menos como uma panela de pressão, inofensiva, ou facilmente controlável, desde que manipulada com prudência. Assim como o conhecimento sociológico positivo identifica na luta de facções e no regionalismo as fontes reais das perturbações do corpo social, ele também revela que o nível de pressão nas demais linhas de clivagem, e notadamente nas relações entre classes sociais, é e deverá permanecer baixo, a menos que o exacerbe alguma interferência imprudente e artificiosa (pp. 367-8)

Não organização da

‘sociedade civil’ Dessa concepção [autoritária] do conflito social depreende-se facilmente que o estado ‘natural’ da sociedade é aquele em que nenhum interesse se organiza de forma autônoma. (p. 368)

Não mobilização política Partido único integrador, messianismo político, nada disso se coaduna com essa estrutura ideológica: um cultivadíssimo realismo mescla-se aqui com a percepção elitista da irracionalidade dos menos esclarecidos, dando como resultado uma inclinação essencialmente não mobilizadora na condução do processo político (p. 369)

Elitismo e voluntarismo como visão dos

processos de mudança política

O ideólogo anseia pelo fortalecimento do Estado a fim de organizar e dar direção harmônica à sociedade e entende que esse projeto, necessariamente altruísta e racional, requer somente a persuasão das elites e um emprego temporário e limitado da força, até criar as condições objetivas para o esclarecimento dos menos esclarecidos, entre os quais se contam, naturalmente, os adversários do momento. (p. 370)

O Leviatã benevolente O Leviatã benevolente que aparece no pensamento autoritário brasileiro é o guardião e a força vital de uma sociedade igualmente benevolente, ‘cordial’ e cooperativa. Ele é benevolente porque a reflete em suas boas qualidades, e porque a corrige, severa mas afetuosamente, nas más: nos impulsos infantis do comportamento rebelde; nas ações altruístas, mas errôneas, porque carentes de esclarecimento; e sobretudo, naquelas que se alimentam de motivações alienígenas, alheias à sua índole e essência (p. 370)

De uma forma ou de outra, pode-se afirmar tal ideologia de Estado encontrava-se presente no discurso de urbanistas da época, como Victor da Silva Freire e Luiz Ignácio de Anhaia Mello, e de certa maneira norteou suas respectivas visões dos problemas da administração pública, entendida como elemento-chave para a efetivação de seus projetos urbanísticos.

O positivismo, tendo exercido enorme influência junto aos intelectuais brasileiros desde, pelo menos, o ano de 1840, mas com maior intensidade a partir de 1870 (Dantes, 1996, p. 51), representou, em última análise, a matriz intelectual subjacente a referida ideologia de Estado, mormente no que concerne à atitude objetivista tecnocrática em face das questões políticas e sociais.

Tal atitude se manifestava, inclusive, nos meios jurídicos paulistanos. Já em 1899, na Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, encontramos artigo da lavra de Pedro Lessa95 intitulado Philosophia do Direito, no qual o autor esforça-se por definir o lugar do direito no campo científico, diferenciando-o da moral96 e estabelecendo suas possíveis relações com a sociologia, a antropologia, a economia e a política, em estrita consonância com o positivismo:

95 Pedro Augusto Carneiro Lessa, nascido em Serro, Minas Gerais, em 25/09/1859,

bacharelou-se na Faculdade de Direito de São Paulo em outubro de 1883. Foi presidente da província do Maranhão durante o Império, chefe de polícia e deputado pelo estado de São Paulo, em 1891 e catedrático de filosofia e história do Direito na escola onde se formou. Em 1907, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras.

96 Nesse aspecto, estabelece distinção entre o que chama de moral prática ou arte da

moral e a moral-ciência ou ciência da moral. Sem grande clareza, afirma que “o direito é uma parte da moral” (Lessa, 1899, p. 310) e que “a moral prática (...) tem seu fundamento na moral-ciência, ou desta é deduzida, como toda arte é deduzida de uma ou mais ciências”, para logo em seguida asseverar que “cronologicamente, a moral prática precedeu a ciência da moral” (p. 311) e que “as generalizações da ciência, baseadas sobre uma prolongada observação, aparecem depois que a arte foi praticada por diuturno espaço de tempo”. Trata-se, portanto, de diferenciação com fundamento meramente epistemológico, que objetivava, acima de tudo, afastar o direito de qualquer vínculo com a religião e a idéia de

moral revelada, e adequar sua posição no sistema positivista, como ciência empírica

“Augusto Comte reputava a sociedade, como objeto de investigações científicas, um todo indivisível. A ciência social para ele é uma só. O direito, a economia política e a política, são partes desse todo. A palavra – sociologia – nessa acepção é o denominador comum das ciências sociais” (Lessa, 1899, p. 317)

Consoante tal premissa, Pedro Lessa insurge-se contra o liberalismo estrito, que reserva ao direito a função única de garantir a manutenção da ordem econômica, de acordo com seus próprios princípios e leis, não lhe alterando nem o conteúdo, nem a direção, pois, para ele, a economia, assim como a política, submetem-se a “verdades gerais” e “leis que regem a sociedade considerada como um todo”:

“Bem conhecemos a razão por que Augusto Comte não admitiu ciências sociais particulares: os fenômenos sociais estão de tal modo ligados, conexos, entre si, que o estado de qualquer parte do todo social tem sempre uma relação íntima e indissolúvel com o estado contemporâneo de todas as outras partes, não sendo possível dar-se uma modificação em qualquer das partes sem que o fenômeno repercuta nas outras” (Lessa, 1899, p. 318)

Assim, do confronto entre a “escola clássica”, que “quer a conservação da propriedade, tal como tem sido juridicamente organizada, a manutenção da liberdade nas relações entre o proletariado e o capitalismo, da herança ab-intestato, das leis que permitem o luxo” e os “socialistas de diversos matizes”, que querem “que o Estado intervenha, modificando o curso dos fatos econômicos”, Lessa se posiciona em favor do que denomina “socialismo evolucionista”, que lança mão dos “subsídios da ciência econômica”, mas se vale da legislação como meio para modificar o curso dos fenômenos da produção, circulação, distribuição e consumo de riquezas, “corrigindo-os, suavizando-os, de conformidade com o princípio da igualdade” e em nome daquelas “leis superiores” que regem a vida social e que são objeto de conhecimento da sociologia97.

Raciocínio análogo emprega Lessa em relação à política: como havia feito com o direito, o autor enxerga um movimento evolutivo de transformação de uma “arte”

97 Reconhecem-se, aqui, ecos das idéias de León Duguit, introdutor da filosofia comteana no

mundo jurídico e que defendeu “a função social da propriedade como uma superação da concepção individualista de propriedade consagrada na Declaração de Direitos de 1789 e no Código Civil napoleônico de 1804" (Pinto, 2001, p. 126)

em “ciência”, igualmente submetida não apenas às suas próprias “leis”, mas em íntima relação com as demais “ciências”, em particular o direito. Deste modo, a política deixa de constituir objeto da mera experiência, passando a sede de um saber técnico, do qual resulta o imperativo de “conferir as funções políticas unicamente aos competentes, a uma classe de homens privilegiados pelos méritos pessoais” [grifo no original], cuja missão consistiria em “averiguar: 1º. se a instituição, a reforma, o ato que pretende realizar, se conforma com os princípios; 2º. se é oportuno; 3º. quais os meios técnicos que devem ser empregados para a conversão da idéia em realidade concreta” (Lessa, 1899, p. 334)

Os princípios da ideologia de Estado reaparecem em lição inaugural proferida por outro lente da Faculdade de Direito de São Paulo, Braz de Sousa Arruda98, em 1925. Em sua preleção, apesar de fazer a apologia dos movimentos revolucionários então vitoriosos na Rússia e na Alemanha de Weimar, o jurista restringe sua defesa do socialismo a certa modalidade que denomina socialismo harmônico, de inspiração católica e índole reformista, no qual o Estado assume e defende os interesses e valores do “povo”, do “trabalho”, do “civismo”, das “idéias” e da “fé” em face das estruturas sociais injustas e desiguais resultantes do predomínio, no Brasil, até então, da “política”, das “facções”, dos “conluios”, das “oligarquias”, do “medo” e do “ceticismo”. Recorre ao positivismo de Spencer como fundamento para o conceito de Estado como elemento garantidor da sociabilidade em face das ameaças representadas, de um lado, pelo liberalismo darwinista, em que “vence o mais forte e é esmagado o fraco, o honesto”, e de outro pelo anarquismo, que deseja “acabar com Deus e a autoridade” (Arruda, 1926, p. 16). Para o autor,

98 Filho do também jurista e lente da Faculdade de Direito de São Paulo, João Braz de

Oliveira Arruda, Braz de Sousa Arruda nasceu em Campinas, em 03/02/1895. Bacharelou-se naquela escola em 1916, tendo se tornado professor catedrático de direito público internacional em 1925. Foi diretor da instituição de 1949 a 1955.

“A sociedade é de todos, todos têm direito à vida, ao lado do forte deve viver o fraco, o humilde, o desgraçado, amparado, dirigido pelo Estado, pelos super-homens, pelos intelectuais, apóstolos do bem, guardas da sociedade, cuja missão é dirigir as forças sociais, com o mínimo sacrifício individual e o máximo proveito social, para a realização do fim último da sociedade, a felicidade geral!” (Arruda, 1926, p. 17).

Apesar de não rejeitar inteiramente a política – a qual, para ele, deveria ser também objeto de disciplina científica própria – Braz Arruda defende a submissão do Estado à ciência da administração99, como meio de consecução de seus fins últimos.

No contexto da crise econômica decorrente do decréscimo na exportação de café durante a Primeira Guerra Mundial, Braz Arruda expressava a opinião de crescente parcela da elite brasileira de que o liberalismo laissez-faire não era capaz de responder, com a celeridade necessária, às abruptas oscilações na demanda e na capacidade produtiva do país, associadas ao mercado de café, e tampouco garantir, com a segurança necessária, a reprodução do próprio sistema produtivo e a manutenção das relações de poder existentes na sociedade.

Este diagnóstico é expresso por Braz Arruda (1920b) no artigo Em relação à parede de operários, elaborado em julho de 1917, em reação à greve de operários iniciada no Cotonifício Crespi e que se alastrou pelo estado de São Paulo, paralisando as atividades econômicas na Capital, entre os dias 12 e 18 daquele mês (Saes, 2004, p. 232): muito antes da difusão das teorias keynesianas e da implementação do new deal, o autor atribui a deflagração da greve geral à “imprevidência verdadeiramente infantil” do governo, que deveria ter tomado medidas para adquirir gêneros de primeira necessidade açambarcados pelas “grandes casas industriais”, a fim de “prover, a preços ordinários, as classes laboriosas, no momento de penúria” (Arruda, 1920b, p. 374). Deveria também o governo garantir emprego aos operários despedidos das fábricas, por meio da abertura de fazendas e consecução de obras públicas, vez que “hoje, o

99 Braz Arruda procurou definir o campo teórico da ciência da administração em outro artigo

direito ao trabalho, entendido com certa cautela, é uma aquisição da ciência” (Arruda, 1920b, p. 375).

Verifica-se, assim, que naquele momento histórico de gênese da ideologia de Estado e de propositura de soluções harmônicas e reformistas para a crise social, alternativas às ideologias radicais então em voga, emergia o conceito de que o direito à propriedade privada deveria relacionar-se a certos pressupostos - necessários mesmo à sua própria perpetuação -, dentre os quais o atendimento à sua função social. Será nesse contexto, portanto, que não exatamente o urbanismo, como disciplina científica, mas o direito urbanístico, entendido como interface entre aquele e os mecanismos de manifestação da atividade do Estado, encontrará as condições indispensáveis à sua transição da teoria à prática.

Como bem observou Victor de Carvalho Pinto (2001, p. 112), "o princípio da função social da propriedade constitui a peça-chave do direito urbanístico", princípio este que, conforme visto, encontra sua origem remota na filosofia positivista de Comte100. Por outro lado, "em nenhuma outra política pública teve o positivismo tamanha aplicação prática como na política urbana. O movimento modernista incorporou o positivismo e o traduziu para o urbanismo" (p. 121).

100 Porém mais especificamente nas idéias de Saint-Simon, que as expôs de maneira mais

completa em sua obra Systéme de Politique Positive, de 1824, e que consistem, em síntese, na defesa de um Estado tecnocrático, comandado pelo Executivo e fortemente intervencionista (Pinto, 2001, p. 112).

Rejeitando as instituições políticas tradicionais, em particular o parlamento – segundo as concepções positivistas, uma reminiscência do estado metafísico, a ser superado pelo estado positivo -, Saint-Simon concebe o controle do Estado pelo Poder Executivo, sob o comando de técnicos: “A hegemonia da formação jurídica, própria às instituições parlamentares, seria substituída pelo governo dos engenheiros, que serviriam de intermediários entre os filósofos positivistas e os empresários encarregados de dirigir diretamente a produção" (Pinto, 2001, pp. 119-120).

Todavia, apesar do reconhecimento do caráter anárquico do mercado, o positivismo não defendia a estatização dos meios de produção, mas a completa regulamentação, pelo Estado, da atividade produtiva promovida pelos agentes privados (Pinto, 2001, p. 113).