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A fase de limitada regulamentação das cidades brasileiras, como São Paulo, corresponde ao período de economia agrário-exportadora, em que os núcleos urbanos desempenhavam primordialmente funções religiosas, político- administrativas, estratégicas e militares. Neste período, que em São Paulo se estende desde sua fundação até o final do século XIX, não se pode dizer que a cidade é palco de conflitos de classe; pelo contrário, trata-se muito mais de um “baluarte do poder” e local de passagem, dependente economicamente do campo, de onde provinha de igual modo o poder político30.

À medida em que o capitalismo industrial se instala nas cidades, com a conseqüente ampliação da população, das funções urbanas e da demanda por infra-estrutura e serviços, acirram-se na mesma proporção os conflitos: a cidade passa a abrigar não apenas a luta de classes, patente nos múltiplos instrumentos de controle e segregação

30 Segundo Silva (1995, p. 43), “a convivência urbana pressupõe regras especiais, que a

ordenem. Compreende-se que, inicialmente, essas regras tenham surgido com base nos costumes, e só mais tarde se tornaram regras do direito legislado. Eram regras simples, referentes aos aspectos mais primários da urbanificação, como o arruamento e o alinhamento. Assim tinha que ser, porque também as cidades eram simples”.

social, mas também a concorrência capitalista. O solo urbano cresce em valor; a localização adquire importância para o funcionamento do sistema produtivo, além de uma carga simbólica, que lhe conferem valor. A cidade mecaniza-se, cabendo ao Estado zelar pelo seu funcionamento eficiente: o sistema viário deve atender adequadamente às necessidades de deslocamento de mercadorias e de fatores de produção; a infra-estrutura urbana, incluindo energia, esgoto, abastecimento de água e de comunicações, deve estar disponível na medida da demanda dos produtores e do mínimo essencial à sobrevivência do exército anônimo de trabalhadores e consumidores; a estes últimos deve ser posta habitação à venda em quantidade suficiente e concedido o “privilégio” do lazer nas horas vagas.

Simultaneamente, a cidade se mercantiliza: a venda de lotes torna-se lucrativo negócio; a construção civil firma-se como importante setor da economia, em função tanto das obras privadas como, principalmente, das obras públicas, onde são aplicados vultosos recursos, a fim de que a cidade “funcione” adequadamente; a verticalização, inicialmente admitida e mais tarde incentivada pelo Estado, multiplica o solo e, conseqüentemente, a renda fundiária urbana31; a acessibilidade e a disponibilidade de recursos infra-estruturais criam áreas “nobres” e periféricas na cidade, pelas quais se denota não somente a divisão da sociedade em classes, mas também o destino dos investimentos do Estado.

Todos estes aspectos, que podem ser considerados essenciais no contexto das cidades industriais, estão contidos na legislação urbanística e, através da

31 A este respeito, vide a interessante tese de Somekh (1987), onde se demonstra que, por

mais paradoxal que possa a princípio parecer, mesmo a restrição à verticalização feita pelo zoneamento urbano redunda na criação de valor, uma vez que: a) os terrenos “libertos” dos inconvenientes da verticalização tornam-se locais privilegiados para as classes abastadas (vide os bairros-jardim em São Paulo) e b) os terrenos em que se permite a construção em altura valorizam-se em função das restrições impostas pelo zoneamento a outras áreas da cidade, conferindo-lhes, portanto exclusividade.

análise interna cuidadosa e do cotejo com outras fontes de dados, podem conduzir à compreensão da real natureza e papel do Estado em uma economia capitalista industrial.

Os autores que se ocupam do estudo do direito urbanístico são unânimes ao apontar para duas características peculiares ao ordenamento jurídico brasileiro: as competências concorrentes para legislar sobre matéria urbanística e a falta de sistematização das normas existentes.

Mukai (1987, p. 55) nos fala que “a legislação urbanística continua sendo, no Brasil, uma verdadeira colcha de retalhos, sem nenhuma sistematização coerente de suas normas para todo o território nacional”. Já Andrade (1966, p. 318) afirma que “as disposições legais brasileiras, que na atualidade regulamentam o uso do espaço e determinam o exercício de atividades e que afetam a vida e a economia urbanas (...) são em grande número e oriundas de órgãos governamentais federais, estaduais e municipais. Versam, muitas vezes, sobre a mesma matéria, com contradições, desatualizações, e não obedecem a um critério único na sua formulação e apresentação”. Silva (1995, p. 55), por seu turno, ao sustentar que a questão da competência para criação de normas urbanísticas tornou-se mais clara na Constituição Federal de 1988, reconhece que “a competência para a criação das normas urbanísticas constituiu um problema de difícil solução no regime constitucional anterior”. Porém, o mais enfático na denúncia desta anomalia é Villaça (1978, pp. 61-2), que afirma:

“A quantidade de leis e decretos, regulando o uso do solo urbano, vindos das mais variadas origens, sem um mínimo de coordenação, sequer dentro de cada esfera de governo e totalmente desvinculados de qualquer aparelho administrativo de controle e fiscalização, vem crescendo bastante nos últimos anos”, salientando ainda que “neste panorama destaca-se o Estado de São Paulo, que talvez pelo seu desenvolvimento e maior complexidade de sua máquina administrativa (maior quantidade de órgãos setoriais especializados) vem emitindo, desordenada e fragmentariamente, uma grande quantidade de diplomas legais regulando o uso do solo urbano”.

Isto torna claro que qualquer análise da legislação urbanística não pode se restringir aos diplomas expedidos por uma única esfera da administração, como o município, pois as normas urbanísticas, conforme aponta Silva (1995, p. 54), têm esta peculiar característica de coesão dinâmica; ou seja, “sua eficácia somente (ou especialmente) decorre de grupos complexos e coerentes de normas e tem sentido transformacionista da realidade”.

É preciso, contudo, ter ciência de que a concorrência entre as diversas esferas de governo para legislar sobre matéria urbanística não decorre de qualquer tipo de “falha” do ordenamento jurídico brasileiro. Para além disto, as competências concorrentes se explicam na exata medida em que interessa aos três níveis de governo a planificação físico-social do território, podendo-se vislumbrar aí um jogo de poder entre os interesses locais, regionais e nacionais. A este respeito, temos o instigante trabalho de Rocha Filho (1986), intitulado O município e a política urbana no Brasil, em que é demonstrado o surgimento, a partir de 1930, do que o autor chama de ideologia do urbano, e de um conseqüente processo de subordinação dos municípios, através do ordenamento jurídico, às políticas de planejamento urbano federais, em particular nos períodos de marcada centralização, como o Estado Novo e os governos militares pós-64. Esta tese é retomada e aprofundada, com relação a este último período, por Serra (1991, p. 70), que em seu Urbanização e centralismo autoritário disseca o conteúdo ideológico inerente ao processo de planejamento e tomada de decisões sobre investimentos nos centros urbanos, a partir dos governos militares. Corroborando nossa hipótese de trabalho, este autor nos fala que:

“Com freqüência, este processo [de decisão frente às obras urbanas] tem sido objeto de abordagens que poderíamos chamar de positivistas, no sentido específico de que consideram a questão como técnica e científica e, portanto, passível de ser tratada por metodologias adequadas e distantes da política. Essas metodologias são por vezes bastante complicadas, propondo algoritmos e fórmulas que pressupõem ser o objeto final da decisão o 'bem-comum'. Justamente por deixarem de lado o aspecto essencial da negociação entre diferentes grupos de interesse, a parafernália metodológica proposta tende a obnublar o conflito, fornecendo a cobertura ideológica necessária às decisões tomadas pelos grupos dominantes”.

Estas considerações são importantes na medida em que configuram a legislação urbanística como campo de luta entre interesses que poderíamos chamar de “particulares” do capital, identificados com as forças de influência política locais, e os interesses “globais” do capital, identificados, através da manipulação da estrutura hierarquizante do ordenamento jurídico, com as forças de influência política centralizadoras. Ao mesmo tempo, pode-se constatar, particularmente no período colonial, o confronto entre as prerrogativas e interesses das esferas temporal e eclesiástica, como instâncias de poder concorrentes, na jurisdição de matérias pertinentes ao ordenamento urbano, num processo também marcado, conforme veremos a seguir, pela progressiva afirmação da soberania absoluta do poder laico centralizado.

“Tivemos Estado antes de haver povo: lembrem-se de Tomé de Souza desembarcando com toda a

organização administrativa – um Estado completo – entre palmeiras e índios”

João Camillo de Oliveira Torres Razão e destino da revolução

II.1 - Do feudo à monarquia: o ressurgimento das cidades e a construção do