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1 Do feudo à monarquia: o ressurgimento das cidades e a construção do Estado Nacional

O processo de colonização e de implantação de uma rede de cidades nas terras descobertas pelos portugueses nos séculos XV e XVI não pode ser compreendido sem que se abordem, previamente, as estruturas políticas e institucionais subjacentes à construção do Estado moderno e das monarquias absolutas na Europa. Com efeito, se, por um lado, a descoberta e exploração de novas terras serviram de importante reforço à posição das monarquias centralizadas européias em relação à dispersão e ao localismo próprios da sociedade feudal; por outro, pode-se considerar igualmente verdadeiro que, sem a capacidade de investimento e conjugação de esforços dos monarcas, o projeto de conquista e exploração do Novo Mundo teria sido inviável. Assim, a expansão ultramarina e o surgimento dos Estados Nacionais europeus afiguram-se como fenômenos conexos, portanto impossíveis de serem compreendidos em separado. No caso específico de Portugal, Estado surgido no contexto da Reconquista da península ibérica aos muçulmanos, a relação entre a instituição da monarquia centralizada e a expansão territorial reveste-se de especial complexidade, na medida em que, primeiramente, pressupõe um “objetivo” implícito à criação de um novo Estado no interior da Cristandade; em segundo lugar, pelos próprios antecedentes políticos e sociais de Portugal, onde, desde o início, a monarquia assume a primazia na gestão dos interesses nacionais, em detrimento dos poderes locais - tornando-se o Estado português, nos séculos XVI e XVII, verdadeira “máquina mercante”, de que nos fala Gregório de Matos32.

32 Vide Bosi (1992, pp.94-118).

A partir do século XII, toda a Europa conheceu um período de grandes transformações em suas estruturas econômicas. O fim do ciclo de invasões que a assolavam desde a derrocada do Império Romano do Ocidente desmobilizou imensos contingentes, antes envolvidos nos esforços de defesa e guerra, fazendo-os retornar às atividades ligadas à produção. Expandem-se as fronteiras agrícolas na direção de áreas cobertas previamente por matas33. Novos tipos de relações passam a ligar senhores da terra e trabalhadores; por toda parte, servos antes submetidos às pesadas exações feudais empregam-se como “hóspedes” nos domínios das abadias e nos campos recém-desbravados dos senhorios leigos. Além disso, toda uma série de vantagens e franquias passaram a ser concedidas pelos monarcas europeus aos que se dispusessem a arrotear e cultivar novas terras. Era a forma de que dispunham para atenuar a forte pressão demográfica exercida sobre os reinos, em virtude do intenso crescimento populacional da época.

Tal é o conteúdo de um foral, datado de 1182, subscrito por Filipe II de França, e dirigido a qualquer camponês que ajudasse a fundar aldeia em suas florestas:

“Os habitantes ficarão isentos e livres de tolta e tallia e de todas as exações injustas. Não prestarão serviço militar, nem a pé nem a cavalo, sem voltar a casa no próprio dia, excepto em tempo de guerra... Em casos de mau comportamento, as multas serão de cinco solidi por ofensas multadas a sessenta solidi, doze denarii pelas de cinco solidi, enquanto que qualquer homem que deseje livrar-se de culpa mediante juramento poderá fazê-lo sem pagar seja o que for”34

As transformações na agricultura européia ocorridas a partir do século XII deram ensejo a profundas modificações na paisagem: as longas extensões de matas que antes cobriam boa parte da Europa e tanto dificultavam o comércio e as

33 Duby (1980, p. 216) nos dá a medida da importância desta expansão do processo de

“arroteamento”, ou abertura de novas terras agricultáveis em substituição aos campos já exauridos: “esta derrota do mato foi, sem qualquer dúvida, o grande empreendimento econômico do século XII da Europa Ocidental”.

34 Delaborde, H.F., ed. Recueil des actes de Philippe Auguste, roi de France. Paris, 1916,

comunicações, paulatinamente foram cedendo lugar a plantações, pastagens, aldeias e, acima de tudo, cidades.

Nascida à sombra dos castelos e dos templos, com funções a princípio defensivas, a cidade medieval gozava, tradicionalmente, de amplos privilégios; segundo Pirenne (1966, p. 62), “o burguês escapa, como o clérigo e o nobre, ao direito comum; como eles, pertence a um estado (status) particular, que mais tarde se designará pelo nome de terceiro estado. O território da cidade não se torna menos privilegiado que os seus habitantes. É um asilo, uma imunidade, que põe a salvo dos poderes exteriores aquele que nele se refugia, tal como se estivesse abrigado em alguma igreja. Em uma palavra, sob todos os conceitos, a burguesia é uma classe de exceção, se bem se deva observar que é uma classe sem espírito geral de classe. Cada cidade forma, por assim dizer, uma pequena pátria por si só, ansiosa por conservar suas prerrogativas e em oposição a todas as suas vizinhas”. Aos burgos medievais vem se juntar, a partir do século XII, um grande número de “cidades- novas”, para abrigar os colonos das frentes agrícolas. Estas towns, se não desfrutavam de autonomia comparável à dos burgos em relação aos senhores de terra - pois a jurisdição e o domínio real permaneciam nas mãos destes últimos -, representavam, sem sombra de dúvida, um imenso contraste com o regime de exploração rural que havia caracterizado a Europa por quase um milênio. Além do trabalho livre, baseado no cultivo em pequena escala, e da isenção de uma série de exações vassálicas, as “cidades-novas” eram dotadas do mesmo direito municipal aplicado aos grandes burgos (Pirenne, 1966, p. 79).

Neste contexto de incremento da vida urbana, favorecido não apenas pelo comércio de longa distância, mas também pela maior oferta de excedentes dos mercados locais das cidades (Antonietti, 1977, p. 21), é natural que mercadores e burgueses

venham reivindicar a ampliação de suas franquias - de início, pacificamente; mais adiante, no transcurso do século XII, por meio de revoltas (Pirenne, 1966, p. 57). Deste modo, é contra os mesmos senhores que lhes conferiam privilégios que a classe burguesa, fortalecida, irá se insurgir nos séculos seguintes, visto que seus objetivos econômicos não mais de conformavam aos estritos limites do ambiente medieval; explica-o Mumford (1961, p. 80):

“Estações alfandegárias, postos de pedágio, postos fiscais em rios, barreiras em cidades - tais exigências econômicas tinham estado a se multiplicar precisamente no momento em que as vias de comércio estavam se estendendo e o fluir constante de bens tornava-se mais importante para um mercado econômico estável. Por acréscimo, a falta de moeda uniforme, combinada com as dúbias políticas inflacionárias de que um ou outro governante ou cidade necessitava, oferecia outro embaraço ao comércio”.

Em suma, o ressurgimento do comércio, favorecido pelas conquistas dos cruzados e pelo intercâmbio de produtos com o Oriente, somado ao crescimento demográfico e ao desenvolvimento da técnica - que permitiram um sensível aumento da produção -, fizeram nascer nas cidades uma nova classe de homens livres, ambiciosos e pouco à vontade para agir entre a miríade de feudos. Os castelos, embora fossem os principais consumidores dos artigos produzidos e comercializados pelos burgueses, representavam de igual modo o principal empecilho ao pleno desenvolvimento do comércio, visto que os tributos, medidas, moedas e normas variavam na exata medida da autonomia de cada feudo.

Portanto, à classe burguesa emergente, mais do que qualquer outra, interessava a superação da fragmentação feudal em favor de monarcas que estendessem seus domínios por vastos territórios, impondo exação única, peso único, lei única. O comércio não tolera a taxação e a imprevisão - sua meta é a liberdade de atuação e a máxima segurança. Disto decorre a convergência de interesses entre os reis e a burguesia: enquanto aos primeiros era necessário dispor de recursos para fazer frente, militarmente, aos senhores feudais, submetendo os recalcitrantes aos

laços de vassalagem, aos últimos era vantajoso estabelecer vínculos com o único dos senhores feudais portador de justo título para se impor frente aos demais. Trata-se de uma complementaridade de interesses35. Sob esse aspecto, Mumford (1961, p. 80) assinala, mais uma vez:

“A unificação territorial, a paz interna e a liberdade dos movimentos eram todas condições altamente necessárias para o novo sistema de indústria capitalista. O poder centralizado desenvolveu-se em Estados, como a Inglaterra e a França, tendo pelo menos a conivência pacífica das corporações e comunidades subjacentes, por causa dos benefícios palpáveis que decorriam do estabelecimento da paz do rei, da justiça do rei, da proteção do rei, que assegurava o direito de viajar pelas estradas do rei”.

Este momento de transformações gerais das estruturas econômicas e políticas feudais se fez acompanhar de importantes modificações no campo do direito. De fato, é na passagem do milênio que as formas jurídicas próprias do mundo medieval, como o direito costumeiro, passam a sofrer a concorrência de outros sistemas normativos36 mais adequados - por sua racionalidade, logicidade, segurança e uniformidade - às novas demandas sociais: “a romanização significava, portanto, modernização. O direito romano parecia ser um sistema moderno, progressista, orientado para o futuro, enquanto o direito consuetudinário era tradicional, antiquado e ligado a um estágio de desenvolvimento que se tornava cada vez mais obsoleto” (Caenegem, 1995, p. 73). No extremo oposto do projeto político encabeçado pelo consórcio entre monarquia e burguesia, temos a Igreja Católica, legítima sucessora do extinto Império Romano, do qual incorporou não apenas a estrutura administrativa, o direito e a dignidade dos altos postos, mas também a pretensão de soberania sobre todo o mundo conhecido.

35 Pirenne (1966, p. 222) muito claramente define a complementaridade de interesses entre

os príncipes e a burguesia nascente: “seja qual for a variedade das suas origens, os capitalistas dos séculos XIV e XV têm por força que recorrer aos príncipes. Entre estes e aqueles se estabelece uma verdadeira solidariedade de interesse. De uma parte, sem a intervenção constante dos financistas, os príncipes não poderiam cobrir os gastos públicos nem os privados; mas de outra, os grandes mercadores, os banqueiros, os armadores, contam com os príncipes para protegê-los contra os abusos do particularismo municipal, para reprimir as insurreições urbanas, para garantir a circulação do seu dinheiro e das suas mercadorias”.