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António Ramos Rosa ou a respiração poética do mundo

No documento Rosalume (páginas 72-74)

Com quase uma centena de livros publicados, António Ramos Rosa não é apenas o poeta português mais prolífico da segunda metade do século XX, é também aquele que, de modo singular, se tem mantido fiel a uma entrega absoluta à Poesia, entendida esta como trabalho concentrado sobre algumas palavras que se erguem com a solenidade de uma revelação ontológica.

Nascido no Algarve (Faro, 1924), mas radicado há quase cinquenta anos em Lisboa, António Ramos Rosa cedo se resgatou a si mesmo do quotidiano de um simples “funcionário”, sujeito a rotinas e superficialidades, que muito facilmente poderiam tê-lo afastado da criação de um imaginário poético à altura da mais plena e radical liberdade e dignidade humanas.

Embora o seu primeiro livro de poemas (O Grito Claro)tenha vindo a lume apenas em1958, para trás tinham já ficado muitos anos de dedicação intensa à poesia, quer como autor esparso em publicações periódicas, quer como leitor, crítico e co-editor daquelas que viriam a impor-se como as mais fecundas revistas literárias no Portugal dos anos 50e dos inícios de 60 (Árvore, Cassiopeia, Cadernos de Poesia).

A Poesia como “diálogo com o universo”, propósito que reuniu alguns dos principais colaboradores da Árvore, e cuja formulação ficara a cargo do próprio António Ramos Rosa que se destacava, já então, pela sua informada consciência crítica sobre o fenómeno poético, viria a tornar-se o centro irradiador do seu próprio “caminho das palavras”. Entretanto, como intenso leitor que sempre foi, António Ramos Rosa acabaria por impregnar esse dialogismo cósmico de uma profunda cumplicidade intersubjectiva, que se foi transformando em múltiplas “afinidades electivas” com outros criadores.

Com efeito, no panorama da cultura portuguesa germinadora nas décadas de 50 e 60, ninguém como o autor de Versões/ Inversões viria a revelar uma abertura tão descentralizada, espontânea e continuada a diferentes propostas de poesia (e pintura) modernas, tanto portuguesas como estrangeiras, levando essa permeabilidade ao ponto da mais estreita e declarada cumplicidade de escrita a quatro (ou mais mãos). Esse processo seria sempre assumido sem excesso de ludismos provocatórios, como aconteceu nalgumas experiências vanguardistas, mas antes com a solenidade de um dialogismo poético a partir das fontes comuns (vd. por exemplo, Rotações (1991), em interacção com Agripina Costa Marques e Carlos Poças Falcão ou Meditações Metapoéticas/ Méditations Métapoétiques (2003), escrito a meias com o poeta e ensaísta francês, Robert Bréchon).

Entretanto, António Ramos Rosa foi acompanhando o seu trabalho poético com uma também intensa actividade crítica, ora reunida em livros de ensaios (Poesia, Liberdade Livre; A Poesia Moderna e a Interrogação Real I e II ; Incisões Oblíquas, A Parede Azul), ora dispersa por numerosas recensões na imprensa literária e por colaborações nos mais diversos projectos editorais. Por isso mesmo, ficaram a dever-se à sua curiosidade voraz e generosa muitas das revelações ou das primeiras análises da poesia de diversos autores portugueses, bem assim como a divulgação em Portugal de poetas estrangeiros, sobretudo francófonos (Paul Éluard, Henri Michaux, René Char, Jean Tortel, Yves Bonnefoy, Roger Munier, Fernand Verhesen…), mas também espanhóis (Juan Ramón Jimenez, Vicente Aleixandre, Pedro Salinas, Jorge Guillén, Carlos Edmundo d’Ory) e

     

hispano-americanos (Vicente Huidobro; Roberto Juarroz, Eugénio Montejo, Octavio Paz, Olga Orozco, Ulalume González de León).

Se nos seus primeiros poemas, prevaleciam as inquietações existenciais de quem não pode “adiar o coração”, o poeta passaria depois, nos anos 60 e 70, por uma fase bastante centrada num universo tendencialmente descarnado de auto-reflexão textual. Já a partir de meados dos anos 80, a poesia de Ramos Rosa tornar-se-ia cada vez mais receptiva a uma mística da imanência, à adesão sensorial e sensual ao mundo, radicada em alegorias particularmente luxuriantes que, por sua vez, traduzem toda uma dinâmica genesíaca de amorosa integração do sujeito poético no cosmos. Mas, antes mesmo desse mais declarado sensualismo efabulatório, já se encontrava na sua poesia vários sinais da entrada na “secreta idade da ignorância”, que nos faz lembrar a “quietude perfeita” da sabedoria oriental. Embora o poeta, ao contrário da filosofia zen, nunca chegue a prescindir das palavras, e prolongue até com “Três adágios” a “Investigação do Silêncio em Forma de Koans”, que lhe apresenta outro poeta (Casimiro de Brito, no livro também conjunto Duas Águas, Um Rio), existe em António Ramos Rosa uma contínua demanda de plenitude e de coincidência com o âmago do real. Estas, por sua vez, vão ao encontro da “redondez profunda do intacto”, da “fulguração tranquila” que acaba por unir todos aqueles que, tanto a Oriente como a Ocidente, anseiam por (con)fundir-se com a respiração do mundo ou com a “facilidade do ar”.

Desde sempre entusiasmado por um conhecimento errante que atravessa as imagens da poesia, da filosofia e da pintura, o poeta de Estou vivo e escrevo sol construiu e divulgou uma “biblioteca viva” de poesia e poética modernas, de raiz fraterna e transfronteiriça, isto é, cujas demarcações imaginárias apontam não para limites estritamente linguísticos, nacionais ou disciplinares, mas para uma comunhão de cosmovisões demiúrgicas que desencadeiam visões outras, transfiguradas, do mundo.

O universo poético de António Ramos Rosa traduz, por conseguinte, uma existência que é também uma forma de resistência à uniformização paralisante dos tempos modernos, na exacta medida em que o poeta acaba por envolver os seus leitores num compromisso partilhado de construção de uma sempre nova, liberta e libertadora, realidade sígnica, naturalmente integrada numa mais vasta ordem cósmica:

“Escrevemos ainda palavras para que cintile o muro da separação para que respire ainda

a sede que em nós se levanta numa coluna quase exausta e quer abrir-se extensa sobre o verde harmónio do mar”

(in Génese, 2005) ______________________________

* Salvo explícita indicação em contrário, todo o material fotográfico constante deste dossier dedicado a António Ramos Rosa é da autoria de Gisela Ramos Rosa., a quem aqui se agradece a generosidade de disponibilizá- lo. (Nota da Direcção)

     

No documento Rosalume (páginas 72-74)